31 março 2006
Paranóia
A paranóia da vigilância já está instalada. Hoje fui a uma escola, em Lisboa, para filmar um plano geral do pátio. Dirigi-me ao conselho-directivo para pedir autorização. Expliquei para que era, identifiquei-me. Resposta negativa: só com autorização da DREL (direcção-regional-de-educação-de-lisboa). Expliquei melhor: é só um plano geral, com céu nublado, com crianças no pátio. Já filmei em muitas escolas, nunca puseram obstáculos. Que importância pode ter? Hoje, toda a gente filma com os telemóveis... Respondeu o professor: não pode ser, já temos tido muitos problemas com os pais, porque não querem que os filhos sejam filmados nem fotografados (nem sequer pelo fotógrafo que faz as fotos escolares de grupo). Mas porquê? Receiam que as fotos apareçam na internet. Ah! Percebi: então é mesmo por causa de haver tantos telemóveis e câmaras por aí espalhados que ninguém se sente seguro. Os pais temem o roubo de imagens, a pornografia, a pedofilia, sei lá... Eles é que saberão. E de nada adianta identificar-me, sou tão suspeita como todos os anónimos ladrões de imagens... Quanto mais fácil parece o uso da tecnologia, menos confiança há naqueles que a usam. É lógico. Maus augúrios para quem quer fazer documentários.
29 março 2006
28 março 2006
Simplexo
«A avaliação do impacto normativo constitui hoje uma ferramenta técnica
indispensável ao processo legislativo. A deslocação da problemática da
lei do paradigma tradicional da aplicação aos casos concretos de normas
jurídicas neutras e formuladas de forma geral e abstracta, para o campo da
sua criação e dos efeitos que, directa e indirectamente, produzem na vida
social e nas relações económicas, impõe ao legislador o dever de garantir a
sua qualidade, racionalidade e eficiência.» (p.12)
Nota: adivinhe quantas vezes aparece escrito Kafka no Programa de Simplificação Administrativa e Legislativa.
indispensável ao processo legislativo. A deslocação da problemática da
lei do paradigma tradicional da aplicação aos casos concretos de normas
jurídicas neutras e formuladas de forma geral e abstracta, para o campo da
sua criação e dos efeitos que, directa e indirectamente, produzem na vida
social e nas relações económicas, impõe ao legislador o dever de garantir a
sua qualidade, racionalidade e eficiência.» (p.12)
Nota: adivinhe quantas vezes aparece escrito Kafka no Programa de Simplificação Administrativa e Legislativa.
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FALAR DE BLOGUES 2006
Organização: José Carlos Abrantes e Almedina
PRÓXIMA SESSÃO: Falar de Blogues Temáticos - 30 de Março, 19:00 horas
Livraria Almedina / Atrium Saldanha, Loja 71, 2.º Piso - Lisboa
Doc Log , Leonor Areal
Educar para os Media , Vitor Relvas
Margens de Erro , Pedro Magalhães
Organização: José Carlos Abrantes e Almedina
PRÓXIMA SESSÃO: Falar de Blogues Temáticos - 30 de Março, 19:00 horas
Livraria Almedina / Atrium Saldanha, Loja 71, 2.º Piso - Lisboa
Doc Log , Leonor Areal
Educar para os Media , Vitor Relvas
Margens de Erro , Pedro Magalhães
27 março 2006
A lei da terra
A Lei da Terra é um filme típico do pós-revolução. É um documentário totalmente engajado, tanto pelas posições políticas veiculadas como pelo seu (aparente) modo de produção: feito por um colectivo – a cooperativa de filmes Grupo Zero – cujos membros se assinam sem diferenciação de funções, a sua realização é no entanto atribuída a Alberto Seixas Santos, em cuja mostra retrospectiva pude vê-lo.
Concluído em 1977, incorpora o início da reforma agrária e o seu fim anunciado pela contra-ofensiva dos proprietários e a retomada das terras ocupadas pelas cooperativas. O desenlace da situação fica ainda por conhecer, terminando-se o filme no impasse desta luta frontal pelas mesmas terras.
Embora ideologicamente empenhado e claramente apoiando a luta dos trabalhadores, o documentário opta por uma abordagem de estilo objectivo: há uma narração em voz off que expõe os factos com (aparente) objectividade e contextualizando historicamente a luta dos trabalhadores alentejanos com recurso a fotografias e filmes mais antigos.
Pela voz de alguns entrevistados, declaram-se as condições de vida dos trabalhadores sujeitos ao emprego sazonal, ao trabalho jornaleiro incerto e árduo, às caminhadas longas, à fome e à miséria. Depois, testemunhando alguns casos, é explicado pelos próprios como as cooperativas se organizaram para trabalhar as terras abandonadas. A voz de narração reforça os exemplos, concluindo e generalizando. Neste salto do particular para o geral, o exemplo tomado como regra cumpre uma função de validação e assume uma posição partidária da luta.
A entrevista a dois rendeiros – pequenos agricultores que arrendavam e exploravam parcelas das grandes propriedades e que constituíam uma classe socio-profissional intermediária entre os latifundiários e os trabalhadores braçais – mostra a sua duplicidade insolúvel: na procura de uma posição fora do conflito entre uns e outros, o seu juízo prefere distinguir entre os que querem trabalhar e os que não querem fazer nada (sejam proprietários ou trabalhadores). Os proprietários, por seu lado, reclamam as terras em manifestações exaltadas, com a mesma linguagem e técnicas dos trabalhadores - como avisa a narração. Neste ponto do conflito, o filme acaba, prenunciando uma derrota que não será mostrada, porque talvez ainda não se acreditasse nela.
Hoje poderá fazer-nos confusão o engajamento cego deste documentário, não porque o género documental não continue a ser um território de convicções pessoais e muita subjectividade, mas mais porque tendemos a olhar para a realidade como uma matéria mais ambígua e com poucas certezas. Naquela época havia princípios políticos inquestionáveis, noções colectivas do politicamente correcto, dogmas mesmo - que hoje não conhecemos e cujos pressupostos não expressos aparecem como omissões, enquanto os corolários expressos soam a doutrinação. O recurso à narração-objectiva é quase como uma compensação para a impossível distância crítica.
E a sensação com que fiquei é a de nos faltam imensos dados para perceber aquele percurso. O filme não explica, não abrange, não documenta com coesão os factos. Não acompanhamos apenas uma ou duas cooperativas; pelo contrário, assistimos a um encadeamento de casos diferentes, aparentemente não relacionados, misturados com imagens de arquivo dos assaltos às sedes do Partido Comunista no norte, cujas repercussões chegam depois ao Alentejo sob a forma de retaliação dos proprietários. O filme, nesta mistura de registo do real com uma versão oficializada da história recente, mostra uma concatenação arbitrária. Os meios de persuasão são desadequados à expressão de uma verdade relativa. A 30 anos de distância, o filme levanta mais incógnitas do que esclarece um processo. Tudo o que, na época, por ser recente e óbvio, não é equacionado, hoje levanta dúvidas e lacunas em relação às tensões presentes.
O filme é um testemunho riquíssimo de acontecimentos, depoimentos, histórias e, principalmente, de uma crença revolucionária extinguida. Mas ficamos com a sensação incompleta de que, para bem o entendermos, teremos que o cotejar com outros filmes ou fontes da época.
* A Lei da Terra está editado em DVD na colecção do Público 25 Abril-30 anos (Vol.6)
25 março 2006
18 março 2006
O mundo é pequeno
Se “O Céu Gira” é uma cosmogonia, “O Mundo” de Jia Zhang Ke será uma cosmopolia. Este mundo cabe numa pequena cidade artificial e essa cidade representa todo o mundo. Nos subterrâneos do mundo de fantasia que é o parque temático O Mundo nos arredores de Pequim, vivem as personagens desta história: dançarinas, seguranças, obreiros, etc. E cerca-os uma concepção do mundo reduzida a clichés monumentais, uma súmula inabalável do kitsch universal.
Enquanto o Céu sobre a cabeça e a terra sob os pés de Mercedes Alvarez revelam dimensões intemporais de uma visão ampla do território, o Mundo de Jia Zhang Ke concentra num pequeno espaço a representação total do globo terrestre e demonstra por extrapolação um modo de vida actual. No desenraizamento, na solidão, nos horizontes acanhados do subemprego, onde se cruzam também migrantes russos, os empregados deste parque temático são mais universais do que chineses. Por trás do simulacro mascaram-se vidas em quartos pobres e angústias sem destino. Pequenas histórias do quotidiano pesadas de condenação.
Este filme não é um documentário, mas tem algumas afinidades estilísticas: definida a cena, a câmara acompanha em plano único, fixo ou móvel, a acção iniciada, numa estética de montagem interdita. As cores sujas do vídeo emprestam às paisagens falsas a decomposição que o mundo real contém. O contraste entre cenários e espaços vividos torna visível o sistema que - tal e qual como noutro qualquer shopping ou programa televisivo ou pastilha publicitária – perverte a relação do pessoal com o social, através da alienação pelo trabalho e para o consumo.
Este parque mundial, visto à lupa, é assim uma prefiguração do sistema multinacional e da implacável lógica da economia global. Na redução da cultura histórica universal a ícone esvaziado, uma visão humanista desencantada mostra a impossibilidade de resistir.
(Em exibição no King em Lisboa)
10 março 2006
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