Quem não aparece esquece, lá diz o ditado. Vidas sem Rumo, terceira longa-metragem de Manuel Guimarães estreada há mais de 50 anos - uma história passada entre mendigos, estivadores e contrabandistas dos cais de Lisboa - será exibido na segunda-feira, dia 1 de Outubro às 22 horas, na Cinemateca, onde não é visto há já 10 anos. Este é o momento único de o podermos apreciar e de reavaliar a má memória que lhe deram.
Vidas sem Rumo era projecto de filme pelo menos desde 1948, mas a sua rodagem só se iniciou em 1952, com um segundo argumento feito em colaboração com Alves Redol. Pouco antes, MG acabara de realizar dois filmes de enfiada: Saltimbancos (1951), aclamado pela crítica neo-realista, e Nazaré (1952) com argumento de Alves Redol, mas tendo sofrido cortes de censura que bastante o prejudicaram. Nessa época, Guimarães (que nascera em 1915) ainda era considerado uma esperança de renovação do cinema português.
Porém, Vidas sem Rumo haveria de sofrer inúmeros cortes da censura e o realizador só o deu por concluído em 1956, depois de ter refilmado uma boa parte e substituído uma actriz, para conseguir que o filme resultante tivesse ainda inteireza. Ainda assim, foi aprovado com cortes da censura e estreou-se em Setembro de 1956 no Teatro da Trindade, onde esteve em cartaz durante 3 semanas. Segundo Manuel Guimarães este foi um filme que se pagou a si mesmo (sem subsídios, note-se).
Dizia o realizador, em 1963, numa entrevista ao Diário de Lisboa: «Vidas sem Rumo era uma história minha, e talvez por isso o considere, entre todos os meus filmes, o melhor. Acontece que do verdadeiro filme que fiz, apenas uns 50 por cento foram apresentado ao público. Muita gente é disso testemunha. Considero que este filme teria sido o salto para um cinema português de expressão. Foi mal apresentado, mal compreendido e tive de consentir – ao fim de quatro anos da sua realização – a sua estreia porque de outro modo seria a ruína dos seus produtores. Caso curioso: foi o meu único filme que deu lucros apesar da sua mutilação. Foi um filme barato, 550 000$, o primeiro que, em Portugal, foi realizado sem estúdios, em compartimentos acanhadíssimos duma casa particular, na Ameixoeira.»
A crítica histórica foi todavia impiedosa e construiu um anti-mito acerca deste filme. Luís de Pina, que em 1977 (1) ainda reconhecia algum valor a este filme («mostrava a pobreza urbana e a dificuldade de viver, apesar das mutilações que sofreu.»), em 1986 (2) diria que “a censura [o] tornou irreconhecível”; depois Bénard da Costa (3) chama-lhe “desastre” e Jorge Leitão Ramos (4) afirma que “Guimarães tem o futuro negado e inúmeras dívidas às costas, fruto do insucesso”, o que não é propriamente correcto.
Desde então, são vários os autores que negam a existência de um neo-realismo no cinema português, mormente por não estar à altura ao seu modelo italiano, como se fossem equiparáveis as situações socio-políticas na Itália do pós-guerra e da libertação e em Portugal, cada vez mais fechado e apertado pelo regime fascista. Para circunstâncias diferentes, respostas diferentes, evidentemente. O neo-realismo no cinema português foi o que foi; talvez incipiente, talvez “melodramático e sentimental” (JBC), talvez aquém das expectativas, mas é uma falácia afirmar que não existiu. Importa ainda frisar que, na década de 50, Guimarães foi o único cineasta resistente, o único que então desafiou corajosamente a cultura oficiosa do Estado Novo, e sempre perdeu com isso. Os seus filmes são os sobreviventes possíveis desse paciente extermínio da cultura portuguesa às mãos da censura de Salazar, e devemos saber olhá-los, senão como obras perfeitas, como obras de resistência. É essa a minha proposta para dia 1.
(1) A Aventura do Cinema Português, 1977, p.56
(2) História do Cinema Português, 1986, p. 122
(3) Histórias do Cinema, 1991, p.108
(4) Dicionário do Cinema Português (1962-1988), 1989, p. 191