DUAS REALIDADES, ENTRE OUTRAS...
por MANUEL DA FONSECA
RARAMENTE entramos
na Brasileira do Chiado. Mas, acontece isso a tanta gente, no País,
que supomos não valer a pena contar os motivos das longas ausências.
Ontem, por nosso mal, entrámos. Café cheio. Uma única mesa vaga,
junto à porta. Sentámo-nos, a olhar em volta.
As mesmas figuras do
costume. Figuras que se repetem, monotonamente, dia a dia, ano a ano,
e todas igualzinhas umas ás outras sabe-se lá por que milagre,
desde que o Café abriu.Causa tonturas.
Sempre a mesma gente, desde há dois séculos!
Fechámos
rapidamente os olhos, de modo a apagarmos as imagens do soturno
panteão. E os ouvidos, esses, quem os consegue fechar? Só dormindo.
Por infelicidade, estávamos e continuámos acordados. Pior ainda:
perto de nós, dois sujeitos atacavam, forte e feio, o cinema
nacional!
«Você já viu o
«Acto da Primavera»?, perguntava um deles, com enrugada e rouca
ironia.
«Vi. Vi até mais
que uma vez...», respondeu o outro, o do olho redondo, frio. «Obra
de arte, dizem os críticos... Arte!... Oito dias, e os últimos já
com a casa às moscas...»
«Pudera! Essas tais
obras de arte!... Mas o «Miúdo da Bica» aguentou-se meia dúzia de
semanas.» «Pois sim. Agora compare você as críticas ao «Miúdo
da Bica» com as críticas ao «Acto da Primavera»... O melhor filme
português, disseram. E por aí adiante; arte, arte e mais arte...
Claro que tem coisas bem feitas. Quase duas horas de fita!...»
«E o Manuel, como
amador, é estupendo.»
«Uum... Muito
dinheiro, multas facilidades, subsídios...»
«Bom. Com isso
tudo, qualquer um acaba por conseguir uns pedaçotes de arte. Mas,
repito, como amador, o Manuel é estupendo.»
«Será. No entanto,
veja você, os críticos tanto falaram do «Auto», que se esqueceram
das «Realidades Portuguesas n.2». E’ o que me chateia!»
«Infelizmente não
vi as «Realidades 2». Não tive tempo, não tenho tempo, nunca mais
terei tempo! Esta minha vida, sabe?... E o «Auto»?»
«Já lhe disse:
arte. Estaria tudo dito se, ainda por cima, não fosse arte popular.
Arte popular!... não é que não goste. Todos sabem que eu gosto.
Gosto imensamente da arte popular. Mas no sítio próprio. Aí, entre
o povo, a gozar e a beber um copázio, para me meter na cor local.
Mas um filme inteiro só com isso do nosso povo e da sua arte!... A
mim não me enfiam barretes até aos calcanhares! Enfiem-nos aos
críticos, a esses que nem falaram das «Realidades Portuguesas n."
2»! Bem os conheço a todos!...»
«Ora!... Já cá
estou há muito mais tempo que você, sei bem o que é a nossa
crítica e o nosso cinema...»
«Uma desgraça...»
«Não há dinheiro.
Não se encontra dinheiro. Ninguém entra com dinheiro. E sem
dinheiro que é que se faz?» «E’ preciso dinheiro. Já não digo
muito dinheiro. Mas algum dinheiro.»
«Algum dinheiro,
não. Muito, Muito dinheiro. Dinheiro, hem!» «Pois esses tipos
conseguem dinheiro... E onde vão eles gastá-lo? Em filmes sobre a
vida do povo, a arte do povo, as actividades do povo...
«Neo-realistas, é o que eu lhes chamo.»
«Verdade,
humanidade, sofrimento... E é com estas balelas que eles julgam
conquistar o pagode.
«Neo-realistas, e
basta!»
«Acto da
Primavera»!... E, diga-me cá, qual foi o crítico que falou como
devia das «Realidades Portuguesas n." 2»?»
Desisti de ouvir
mais. Paguei o café e, antes de desandar para a porta, abri os
olhos, de modo a não encalhar nas cadeiras e nas mesas. Só então
vi quem eram os dois sujeitos. Ambos realizadores. Um, de imagens com
entrecho. O outro, de imagens sem nenhuma espécie de entrecho.
Enfim, dentro do nosso cinema —- 2 realidades portuguesas.
In Diário de
Lisboa, 22-10-1963