27 setembro 2006

Privacidade



É isto que me anda a preocupar. Por isso transcrevo na íntegra:

JOSÉ VÍTOR MALHEIROS _ COMENTÁRIO _ in Público, 26-09-2006

1. Faça uma pesquisa no Google. Verá aparecer na parte de cima da sua página e na barra da direita uma série de links identificados pela fórmula “links patrocinados”. Estes links remetem para sites relacionados com aquilo que pesquisou e o seu aparecimento obedece às regras da publicidade. Tudo o que o anunciante tem de fazer é escolher a expressão ou expressões a que pretende associar o seu site. Uma pastelaria que pretenda anunciar no Google pode, por exemplo, escolher a expressão “chá e torradas” de forma que, sempre que alguém a escreve na caixa de pesquisa, o nome da pastelaria apareça nos links patrocinados. A tecnologia enriquece a pesquisa, pois oferece ao utilizador, para além dos resultados que satisfazem exactamente os termos da sua pesquisa, uma colecção de links relacionados que podem ser interessantes. E oferece aos anunciantes, por outro lado, um públicoalvo que já se inclui numa faixa de interessados pela sua actividade. Um casamento perfeito.

2. Abra uma conta no Gmail (o serviço gratuito de correio electrónico do Google). Verá que, ao lado da sua caixa de mail, aparece igualmente uma coluna de “links patrocinados” que, curiosamente, têm também alguma coisa a ver com o teor das suas mensagens. São também links de anunciantes que escolheram determinadas expressões e que a mesma tecnologia do Google consegue associar a determinadas mensagens. Nas suas páginas de Ajuda, o Google garante que “o Google NÃO lê a sua correspondência”. Como é que faz então? A explicação vem na linha seguinte: trata-se de “um processo totalmente automatizado”. Não há ninguém no Google a ler a sua correspondência, mas há um programa que a lê e que pesquisa os termos relevantes para poder associar a uma mensagem sobre automóveis um anúncio de gasolina e a uma declaração de amor o link de uma florista.

3. O programa secreto de escutas sem autorização judicial que a National Security Agency lançou nos Estados Unidos por ordem do Presidente George W. Bush, que monitoriza correio electrónico e telefonemas, recorre também a tecnologia semelhante. Os telefonemas são ouvidos por programas que conseguem identificar os indivíduos que incluam na mesma chamada expressões como “Bush” e “bomba”, mas não existe uma batalhão de pessoas a ouvir as chamadas. O facto permite que os defensores do programa (cuja existência só recentemente e relutantemente foi reconhecida pela Casa Branca) digam que não se trata de um programa de escutas. O programa de intercepção de comunicações Echelon, lançado pelos EUA e pela Grã-Bretanha, faz a mesma coisa a nível mundial.

4. O sociólogo espanhol e teórico da Sociedade da Informação Manuel Castells já tinha alertado para o fim da privacidade na era da Internet, mas o que sucede é que um número considerável de pessoas olha para estes excessos com resignação, como se eles fossem inerentes à tecnologia, como se a tecnologia obrigasse ao seu próprio abuso e não houvesse escolha possível no seu controlo. A ameaça terrorista, por outro lado, veio reforçar a convicção da bondade da redução das liberdades individuais quando está em causa a segurança.

5. Seja em nome do marketing (que promete adequar a oferta publicitária aos nossos desejos se permitirmos o escrutínio da nossa vida pessoal) ou da segurança (que nos jura que o escrutínio da vida pessoal dos cidadãos é essencial à identificação dos terroristas), a verdade é que a invasão da vida privada está em curso. Por ignorância, comodidade ou crença na absoluta benevolência das autoridades, os cidadãos têm permitido que essa vigilância se alargue. E, por espantoso que pareça, o facto de essa invasão estar em grande medida a ser realizada por robôs constitui um descanso para muita gente, como se os robôs não fossem os mais obedientes servidores do poder.
■ Jornalista

24 setembro 2006

Comentário

Obrigado, Leonor, pelas palavras simpáticas. Temos trabalhado juntos nalguns projectos e isso criou alguns pontos de vista comuns, sobretudo ao nível da criação artística. Gosto do "Fora da Lei" como se fosse meu, podia, agora, tentar, pelo menos, corresponder à tua simpatia. Não é o caso. Não vai ser o caso.

Num post recente (Passado e futuro do documentário) falavas "numa inundação geral de obras informes, subjectivas e caóticas, que levarão os programadores de festivais ao colapso e os realizadores à depressão profunda", agora perguntas "Será que há demasiados filmes?". Bem, obras subjectivas e caóticas costumam estar entre as minhas obras de eleição, se os programadores não conseguem responder a essa "inundação" que deleguem responsabilidades, arranjem novos espaços.

Tenho uma desconfiança profunda em relação a vários aspectos organizativos do doclisboa, a começar pelo espaço de eleição. Havendo mais filmes, seriam necessários novos espaços (não me recordo doutro festival nacional confinado a um espaço único), bem, com outros espaços, a frase de apresentação do festival "e conseguiu trazer às salas da Culturgest um público muito numeroso e entusiasta" deixaria de fazer sentido.

Tratando-se do "único festival de cinema em Portugal exclusivamente dedicado ao cinema documental", haverá algum acordo de exclusividade entre Culturgest e o doclisboa, pergunto. É que nestas coisas de apoios, é dado público que os bancos só operam com exclusividades.

No que se refere a escolhas de programação, a selecção dos filmes também não me satisfaz. Vejo as referências, mas não vejo o desejo. As referências são os sete temas recorrentes (e cada vez mais previsíveis) na totalidade dos filmes seleccionados nos últimos dois anos: o passado/presente das memórias do fascismo, o confronto entre as leis vigentes e o uso do corpo e o papel dos media nesse confronto, caricaturas do povo português e particularidades do seu modo de vida, biografias ligadas ao cinema e/ou artes plásticas (no caso são seleccionados em função do currículo do biografado), a emigração, a felicidade humana (esse grande enigma que nos preocupa a todos), a música nacional e a guerra. Falta o desejo (de programar) porque o desejo não é assim tão sistematizável (se o fosse seria masturbação). Recordo-te que, desde 2001, quando o filme "Dentro" da Regina e do Saguenail foi agraciado com o prémio de melhor documentário português (lembras-te do quase inverosímil choque da crítica da época?) que não são seleccionados trabalhos que olhem, equacionem, como tu dizes, os "processos de legitimação do indivíduo perante o estado" (serviços, escolas, polícias ou militares, etc.).

Se o único festival dedicado ao documentário deveria reger-se unicamente por critérios de inclusão, não estou certo. São os festivais e a crítica que dão legitimidade às obras, essa legitimidade não é passível de ser inclusiva ou exclusiva, o que não pode acontecer é um festival abdicar das suas funções. Por acaso interessa a alguém um festival que não atribui legitimidades?

Sobre o concurso do icam não posso deixar, novamente, de discordar, quando referes que a "quantidade de ideias, de projectos escritos, de realizadores em expectativa, ultrapassa a sua possibilidade." A quantidade de ideias, de projectos escritos, de realizadores em expectativa, é o único sintoma que o documentário português está vivo e se recomenda. A programação de documentário nos canais públicos nunca foi tão elevada, não vejo é quem pergunte (a apordoc claro está) porque razão não existem nas televisões apoios directos à produção desses documentário, porque é que temos que aguentar as xaropadas massivas das cobras no deserto à hora do jantar, porque é que os documentários apoiados não passam.

Como vai o documentário português? Caricato mas o pessoal gosta assim, caladinhos ou ainda nos tomam de ponta, este ano não deu, no próximo será melhor. O filme "Como vai o documentário português?" já podia começar a ser feito.

Desculpa se contamino com o meu pessimismo o teu blog sempre tão cordial, espero que a discussão que aqui se inicia possa continuar aqui e noutros fóruns, e com outros protagonistas.

Porto, 24 de Setembro de 2006

Miguel Marques

miguel.marques70(at)gmail.com

23 setembro 2006

Grandes esperanças



E pronto, já foi divulgado o programa do festival Doclisboa. Grandes esperanças tinham os realizadores dos 120 filmes portugueses enviados para selecção. Foram escolhidos 20. Eu tive sorte, embora “sorte” não seja a palavra adequada. Por detrás desta selecção há decisões, grandes decisões, pois afectam grandemente a vida de cada realizador. Tal como as não-decisões, que afectam ainda mais. É que, sendo o funil tão estreito, ter um filme escolhido, para além do reconhecimento do trabalho feito, é uma vaga promessa de se poderem fazer outros filmes, cujos financiamentos dependem geralmente de concursos que valorizam os currículos que se valorizam em função do número de festivais frequentados (sem falar nos prémios).

E pronto, souberam-se também os resultados do concurso do ICAM para produção de documentários. Em 80 filmes candidatos, foram apoiados 6-seis-6. Somos demasiados cães a um osso. A quantidade de ideias, de projectos escritos, de realizadores em expectativa, ultrapassa a sua possibilidade. Muito trabalho e esforço, para parcos resultados. Grandes expectativas postas em poucas hipóteses. Poucas perspectivas, ainda, de se verem os filmes que vierem a ser a feitos.

Se a vida já é injusta (como dirão os que esperavam dela alguma providência divina), então os concursos são a figura travestida dessa injustiça. Porque, apesar da sua aparente lógica do prémio, os concursos baseiam-se na exclusão e, logo, por inerência são injustos. Um festival de filmes deveria ter um critério de inclusão – daquilo que se considera bom ou interessante. Para poder fazer jus a cada filme. Será que há demasiados filmes?

Fiquei desiludida por saber que o filme “Grandes Esperanças” do Miguel Marques (em que participei) não foi seleccionado para o Doclisboa. Este documentário é o resultado de um mês de filmagens contínuas na Loja do Cidadão do Porto, uma “loja” que agrega todos os serviços devidos ao cidadão, aliás, todas as obrigações que ele tem a cumprir, e mais alguns produtos da vida moderna.

Entrar nos meandros da burocracia já é uma aventura q.b. cómica. Mas este filme dá-nos uma visão de conjunto e quase trágica dos processos de legitimação do indivíduo perante o estado, mostrando como toda a nossa existência depende, do nascimento à morte, da Instituição que organiza a vida em sociedade e que aqui aparece na sua dimensão abstracta e coerciva. E só lhe vemos a ponta do icebergue.

Por outro lado, é um filme totalmente humanista, focado nas dificuldades do indivíduo em defrontar as leis a que não pode fugir. É um filme revelador como uma esponja impregnada de sabão ideológico. É um filme radical, nos meios, no ponto de vista e nas ilações. Não conheço outro documentário que faça assim o escalpe à psicose da instituição. Que ele fique privado de chegar ao seu público é uma grande pena.

16 setembro 2006

Festivais



Após dois meses de inactividade, reabriu a época dos festivais e ciclos de cinema e eu talvez volte a escrever aqui. Enquanto isso, e a título de auto-promoção, posso anunciar que o documentário Doutor Estranho Amor será exibido no Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa na próxima quinta-feira, 21 de Setembro, às 15h30 no cinema Quarteto.

Segue-se a Semana do Cinema Espanhol, depois o ciclo Figuras da Dança no Cinema, depois a Festa do Cinema Francês, depois o DocLisboa...