Será lançado - na próxima sexta-feira, 15 de Junho - o número 5 da revista
Docs.pt, com dossier dedicado às relações entre televisão e documentário. Que o interesse das televisões pelo chamado documentário de criação, ou documentário social, ou documentário cinematográfico, é ténue, já se adivinhava. Mas, ao confrontar os agentes televisivos com as suas opções, percebemos então que voltámos à pré-história do documentário - em Portugal.
De que serviram 10 anos de actividade da associação
Apordoc e de promoção, debate e divulgação de cinema documental? De que serviram 12 anos de festival da Malaposta, ao longo dos quais Manuel Costa e Silva foi educando um público que não existia e apoiando os criadores nacionais? De que serviram 4 edições cheias de público do festival Doclisboa, mais os pitchings do LisbonDocs, ou a programação de documentários exibidos em espaço próprio na RTP2 por Diana Andringa e Jorge Campos?
A RTP - serviço público - continua alheia à existência de documentários. A RTP2 continua a gabar-se de passar muitos documentários de animais e de "cultura portuguesa", tipo
A Alma e a Gente - que são outro tipo de documentário, o chamado "documentário televisivo", com as suas regras próprias, a sua formatação, os seus limites. Mas por que ignora o potencial, o interesse e a existência de outro tipo de filmes? Os documentários - tanto, aliás, como as ficções de longa-metragem que durante anos tiveram espaço privilegiado na RTP2 (lembram-se das "5 noites 5 filmes"?) - desapareceram subitamente com a anterior direcção de Manuel Falcão.
A RTP2 de hoje, com a sobranceria que o seu director de programas Jorge Wemans demonstra na entrevista dada à Docs.pt, nega até a existência documentários portugueses. A pergunta feita pela Docs.pt é claríssima: “
Então a RTP não exibe documentários portugueses porque não há?» E a resposta lapidar: «
Claro! Pensa-se que há uma produção imensa e que a RTP2 não quer exibir.» Ora é isso mesmo que se pensa o que acontece.
Há muitos documentários em Portugal que a RTP não quer exibir: a maior parte dos documentários de que é co-produtora por via do protocolo de apoio ao cinema português que tem com o
ICA. Têm-nos lá, são filmes financiados oficialmente, mas a RTP recusa-se a emiti-los e a devolvê-los à sociedade de onde provêm, que reflectem e a quem se dirigem, impossibilitando o seu escrutínio público, a existências de crítica, de discussão e de vozes diversas no espaço público de televisão (nem que fosse tarde e a más horas!).
Diz Wemans: «
Sendo mais claro, eu acho que há documentários de autor que não foram feitos a pensar em televisão e que portanto eu, como programador, acho que não têm lugar na grelha.» E ainda diz: «
Eu não tenho nenhum espaço televisivo permanente que corresponda à ideia mais estreita de documentário de autor e nem estou interessado em criá-lo porque acho que ele deve dialogar com outros documentários.» Ora, exactamente, parece-me que a ideia de documentário de Wemans é que é muito estreita e demonstra falta de visão e de conhecimento.
«
É verdade que se o documentário de autor me surge como uma proposta em que eu não decidi nada, (...)
que foi realizado por quem quis, com o olhar que quis, recorrendo aos financiamentos que pôde, esse documentário tem um espaço mais limitado na RTP2.» Ou seja, Jorge Wemans arroga-se, enquanto director de programas, o papel a ter uma palavra sobre o olhar e a realização de cada filme, recusando-se a entender que documentário-de-autor é realmente de autor, e não de programador. Parece não saber que fazer um documentário é uma actividade que se exerce no campo da liberdade de expressão, tal como um livro, uma crónica ou um debate televisivo. Só a diversidade pode garantir a liberdade de expressão.
Não cabe a um programador impor o seu programa estético e ideológico centralizado, mas dar abertura e espaço a que a diversidade de perspectivas se manifeste e chegue aos seus interlocutores: a sociedade, o público. O programador deve servir o espectador, não enquanto público-alvo, como em publicidade e televisão comercial, mas enquanto sociedade – isso é que é serviço público.
Houve já muitos exemplos de como este tipo de documentário – até pelo seu conteúdo social e humano – encontra boa recepção junto do público e consegue afirmar a sua identidade na criação de novos públicos. Mas a RTP parece não se interessar por essa coisa – que é serviço público – que é criar novos públicos e promover a cultura. Para Wemans, serviço público é “
a nossa iniciativa fundamentalmente centrada nos documentários sobre a cultura e património português”, visão tradicional e estreitíssima do conceito de documentário. A televisão portuguesa ainda não passou o cabo Bojador, como diz José Manuel Costa noutro artigo da Docs.pt.
Não te parece, leitor, que a obrigação moral da RTP seria exibir os documentários portugueses e cumprir um serviço público que “se a RTP não fizer, ninguém mais fará” (como diz Leena Pasanen acerca da televisão finlandesa)?