30 maio 2006

Caça à baleia



A caça à baleia nos Açores (1979), no extraordinário arquivo audiovisual online do INA.

No cinema português, há um registo de caça à baleia - acompanhada musicalmente pela Cavalgada das Valquírias - e seguida do seu esquartejamento, no filme "Quando o mar galgou a terra" (1954) de Henrique Campos.

29 maio 2006

Cinema-caçada



Da caça ao golfinho e ao lobo marinho, passando pela matança do porco, até à caça ao alce, aos ursos, aos coelhos, perdizes, patos e ouriços – a obra de Perrault evidencia uma ligação permanente às práticas de sobrevivência do animal-homem, pescador, camponês ou caçador. É desse mundo verdadeiro que nos fala, por ele esquecendo quase tudo o mais que caracteriza a sociedade urbana moderna (onde matar é uma prática escondida).

O país da terra sem árvores” (1980) acompanha três expedições – de caçadores e de arqueólogos - à tundra quase não habitada, onde o animal-urbano vai à procura da sua natureza em combate com o alce, onde os índios reencontram as suas raízes num respeito sacralizado pelo animal caçado, e onde os arquéologos procuram os vestígios antigos (pontas de sílex) da ocupação milenar do território – que assim recupera identidade como terra habitada.

Nestas expedições, Perrault usa (pela primeira vez*) o plano-sequência, pelo qual a câmara procura a cumplicidade com as personagens, e particularmente com a auto-ironia dos cientistas, pela qual reflecte e revela a natureza mesma do seu cinema: um cinema de caça ao homem e de arqueologia da cultura tradicional.

Em “A besta luminosa” (1982), Perrault acompanha um grupo de homens que durante uma semana vai para a floresta caçar. Isolados do mundo e cercados uns de outros, desenvolvem relações intensas – que passam pela tensão da caça e pela distensão das bebedeiras – onde se solta o animal humano de que Perrault anda à caça. Quando os homens escrutinam a paisagem em busca de um animal, a câmara faz como eles; enquanto eles olham são olhados; quando vacilam de bêbedos, a câmara vacila atrás deles.

Neste filme, o plano-sequência e a montagem criam uma espécie de fusão-directa entre homem-câmara e homem-objecto, numa identificação do realizador com o personagem-poeta-caçador que é protagonista e que se expressa intimamente, em conversa com os amigos, como num quase monólogo interior. É o puro discurso directo, que o realizador partilha inteiramente.

É aqui que Perrault expõe as conclusões de toda uma obra de tese sobre a natureza do homem, que, passo a passo, ao longo de 20 anos o cineasta foi desenvolvendo, sempre atraído por uma autenticidade primordial que encontrava nas comunidades de pescadores, camponeses e índios.

Mais do que o cineasta-poeta, como lhe chamaram, vejo nele um cineasta-caçador. Raras são as metáforas visuais (aparte as metáforas literárias dos primeiros filmes) que encontrei na sua extensa obra, muito atenta à palavra, é certo, mas sem alusões, sem ilusões, sem jogo formal. O que haja nele de poético é um extremo encanto pela vida prosaica, um idealismo.

Poeta, sim, mas em campo distinto, o da sua obra literária: « Para eles o alce não é apenas o animal a abater, mas um animal a amar, a tornar uma lenda, a recitar, para justificar a floresta e esse incrível refúgio fechado de certos homens que se fecham no seu mito.» (citado de Ainda não começámos a pensar)

(*neste ciclo da Cinemateca)

26 maio 2006

Recorrência



As recorrências, na obra de Pierre Perrault, mais do que definirem um estilo de autor, salientam as diferenças e as soluções originais de cada filme e oferecem-nos os benefícios do método de leitura comparativa. O “reino”, esse, continua o mesmo. Preocupado sempre com uma visão histórica e identitária do Quebeque, e menos poeta do que o epíteto com que ficou marcado, em “Le retour à la terre” (1977) Perrault liberta-se totalmente do discurso indirecto. Já não é o manipulador exímio das frases alheias, é sobretudo o seu relator crítico e omnisciente.

O método, simples e maravilhosamente aplicado, consiste na alternância estrutural entre as opiniões políticas de um camponês em campanha eleitoral nos anos 70 e o discurso oficial das autoridades coloniais em filmes dos anos 30. Entre um registo e outro, a 40 anos de distância, os tópicos são os mesmos: como foram colonizadas as terras, os sacrifícios por que passaram os agricultores-pais, o esforço de construção de uma comunidade, o apoio do poder central e, mais recente, a provável extinção desta economia de sobrevivência pelo desprezo estatal e pelo fecho das escolas locais.

Entre o registo oficial dos anos 30 – propaganda sob a forma jornalística, com valsas vienenses sobre imagens de índios – e o discurso de oposição e reinvindicação do candidato dos anos 70 e seus interlocutores, não podia haver maior disparidade. E não é uma questão de época ou de linguagem; é a negação completa – orquestrada pelo realizador - de uns factos pelos outros, uma acusação frontal sobre a exploração de que os agricultores (e os índios) foram objecto. Resulta dessa contradição factual, cotejada em sequência, uma percepção altamente irónica dos discursos de uns e outros, discursos que Perrault mantém em estado bruto, respeitando-os na sua autonomia ideológica; mas alinhando pelo candidato da região de Abitibi, protagonista recorrente de outros documentários de Perrault: Un royaume vous attend (1975) e Gens d'Abitibi (1980).

Reincidência (2)



Afinal a caça aos golfinhos brancos reencenada em “Pour la suite du monde” (mas já antes filmada em "L’anse aux Basques”, 1960) parece ter reactivado a tradição, documentada em 1968 por Perrault no breve filme “Le beau plaisir” – o belo prazer de matar um marsuíno.

Reincidência



É extraordinário que Pierre Perrault, filmando repetidamente a mesma Île-aux-Coudres e sua região, consiga continuar a surpreender-nos. É como se cada filme concluído o deixasse ainda insatisfeito porque ainda há mais a contar. Assim, anos depois de ter filmado em 1959 a construção da última “goleta” ou escuna, sentindo talvez que faltava vida a esse filme, repetia o tema em “Les voitures d’eau” (1968), agora usando o método do som directo e dando a palavra aos marinheiros protagonistas que, desta vez, constroem apenas uma canoa.

Descartando os trejeitos de poesia (“neve verdejante”, “areias silenciosas”) que enformavam os primeiros filmes para televisão, Perrault olha agora mais prosaicamente para a fissura de tempo que se abre diante dele e concentra-se nas questões de sobrevivência da economia artesanal e na pressão da mudança que se manifesta nas banais conversas do quotidiano dos pescadores-armadores-capitães-carpinteiros, seja em reacção à greve dos estivadores, seja na equação dos direitos à educação: “a educação até ao 12º ano é uma necessidade humana”, diz um dos homens, “só depois disso é que começam os estudos” (estava-se em 1967).

É um filme, tal como o anterior “Le règne du jour”, baseado na palavra alheia, não apenas pela importância que lhe concede, mas sobretudo na sua apropriação como método de montagem: a palavra é cortada em fatias laminares e sequenciada de modo a construir um argumento verbal ideologicamente moldado pelo realizador. É raro ou mesmo inexistente que as situações coloquiais se desenvolvam com fluidez, são sempre segmentadas e atravessadas de outros fragmentos de discurso directo metidos a talho ao serviço de uma demonstração em discurso indirecto mais intelectual. Praticamente não há planos-sequência, quando muito há planos-emergência, em que a câmara, hábil e ágil, sulca os ares em busca da palavra solta apanhada na rede de pesca aos grandes planos. Apesar da grande espontaneidade que transpira dos momentos conviviais e humanos, há qualquer coisa demasiado artificial nesta modelagem. Que mais surpresas nos trará esta insatisfação...?

25 maio 2006

Imagem sonora



A obra de Pierre Perrault (vista até agora no ciclo em curso na Cinemateca) apresenta surpresas contínuas, as surpresas naturais de reconhecer como um autor evolui e muda a sua linguagem, menos do que muda a ideologia ou mensagem, embora esta seja afectada por aquela.

Os primeiros filmes televisivos, sujeitos possivelmente às limitações do meio, das técnicas e dos objectivos, expressavam-se através de um discurso para-poético na voz off do seu autor, palavrosamente manipulador de sentimentos e valores.

O assumido primeiro filme, “Pour la suite du monde”, co-realizado por Perrault e Brault, já usava as possibilidades do som directo, tendo subjacentes as mesmas premissas de preservação da memória nacional e dos valores tradicionais da comunidade de pescadores. Era inovador na apropriação respeitosa da palavra do outro como acto de fabulação, aquilo «que Perrault chama “o flagrante delito de fazer lenda”»; e inovador ainda na maneira de contar a lenda recriando num documentário formas narrativas típicas da ficção.

Em “O reinado do dia” (1965-67), Perrault oferece aos seus protagonistas favoritos, a família Tremblay, uma viagem a França, ao “berço dos seus ancestrais”. Na montagem, justapõe e contrapõe o registo da viagem ao seu relato filmado após o regresso. Além dos temas da vida camponesa que se destacam como cultura comum e de contacto entre canadianos e franceses – e que são o pomo das comparações conversadas e relatadas – há um carácter de peregrinação que é sobretudo assumido pelo ancião pai de família – e pelo realizador – que releva dos mesmos anteriores pressupostos de uma procura de identidade nacional.

Perrault, optando por uma estrutura de alternâncias, contrapontos, comparações e redundâncias (que tornam, na minha opinião, o filme excessivamente confuso), desfaz a sequência linear da narrativa, criando capítulos temáticos, e apoia-se vincadamente na palavra, desta vez trabalhando o discurso directo das personagens e transformando-o em discurso-indirecto-livre (na terminologia de Pasolini). Como diz Deleuze (citado em Ainda não começámos a pensar): «O acto de palavra mudou de estatuto. Se nos referirmos ao cinema “directo”, encontramos plenamente este novo estatuto que dá à palavra o valor de uma indirecta livre: é a fabulação.»

Neste filme, usando as palavras de Deleuze, «é verdade que o cinema moderno implica a ruína do esquema sensorial motor, o acto de palavra já não se insere no encadeamento das acções e reacções e já não revela uma trama de interacções. Curva-se sobre si mesmo, já não é uma dependência ou uma pertença da imagem visual, torna-se inteiramente uma imagem sonora, toma uma autonomia cinematográfica e o cinema devém verdadeiramente audiovisual.»

Mas, no primeiro filme, o acto de palavra insere-se no encadeamento das acções e reacções e revela uma trama de interacções, razão pela qual acho, como defendi abaixo, que é uma obra que pertence ainda ao cinema clássico, de cujas leis o segundo filme se libera. Nessa evolução estética, Perrault liberta-se também da anterior perspectiva tradicionalista, por meio desse jogo de confrontos e de comparações culturais em que participam as personagens, questionando-se entre si e introduzindo a divergência de opiniões entre marido e mulher e filhos e netos e amigos. E vêem-se os traços de inquietação de Alexis Tremblay em relação ao futuro – finalmente assumidos por Perrault –, a sua resistência à mudança de hábitos e valores das gerações mais novas, as suas incertezas em relação às máquinas em geral, às motas de neve, aos estudos, às mulheres de calças, etc. Entre as memórias procuradas, recolhidas e imaginadas e o futuro encarado como um mundo louco, este filme é muito mais cinema-verdade.

23 maio 2006

Imagem falada



Os primeiros filmes de Perrault (de que é autor, mas ainda não realizador) pertencem a uma série de programas de 30 minutos feitos para a televisão canadiana, com o intento de caracterizar o “Pays de Neufve-France” e preservar traços de cultura e civilização que no final dos anos 50 estavam já em vias de desaparecimento: a construção colectiva de escunas de madeira, a travessia de bote da superfície de água coberta de pedaços de gelo em fases diferentes de consistência, a migração estival para as ilhas, levando todos os haveres em barcos e as casas a reboque, a caça ao lobo-marinho que irá alimentar os cães, etc.

Sendo filmes muitos bonitos e muitos nostálgicos, testemunhos etnográficos únicos de modos de produção artesanais, omitem no entanto tudo o que tem a ver com a mudança social que levou ao abandono das tradições camponesas, as suas dificuldades, as migrações para as cidades, ou as tensões sociais latentes nas pequenas povoações cujo modo de vida estava em declínio rápido. Portanto, tudo aquilo que em “Pour la suite du monde” (1962-1963) também não é explicado - a ausência dos adultos jovens que partiram para a cidade - tema que Michel Brault agarra numa sua ficção um pouco posterior, “Entre la mer et l'eau douce” (1965-1967), filmada na mesma ilha.

O cinema, na sua mimesis perfeita de vida, sempre se prestou a tábua de salvação para preservar um rasto do mundo em desaparecimento. Esta missão começou, neste caso, por ser um programa de rádio que, ao passar para televisão, não perdeu a componente discursiva principal. São filmes agrilhoados à sua origem literária e poética, e onde a relação da palavra com a imagem é um tanto arbitrária. Ora a palavra, por ser demasiado descritiva, é redundante; ora, sendo demasiado explicativa, se distancia da imagem que não lhe corresponde. A preponderância da palavra tem um efeito perverso: o mundo como ele é dito tem a primazia sobre o mundo que é visto.

Estes filmes ainda não têm som directo e possivelmente foram feitos com câmaras pesadas, mostrando ainda assim uma agilidade incrível e uma capacidade para recolher planos de todos os pontos de vista. A ausência de som de fundo é colmatada, além da palavra condutora, pela persistente banda sonora constituída de música folclórica. O espectador é conduzido sem poder quase respirar, sem ter tempo de ver, de perceber, de absorver, nem as imagens, nem as palavras, nem mesmo a música – sempre relegada para uma mera função de pastilha elástica para encher o fundo e para fugir ao vazio, esquecendo-se que ela também é densa e pede atenção. A acumulação de estímulos perceptivos - a imagem, a música, a voz - não deixa espaço ao espectador para fazer a sua própria reflexão, ou para contrariar a voz directiva que explica como deve ser o que é, mas não explica o que não é.

Os seus pressupostos ideológicos são o desejo de guardar registo de um passado recente, antes que acabe, e de afirmar uma identidade nacional, antes que se perca, mas não a evidência de outro pressuposto esquecido: a de que também o presente se tornará passado, no tempo de uma geração, e que não ficarão então registadas as mutações do presente.

Já lá vai quase meio século desde que estes filmes foram feitos, e isso deveria ser o suficiente para uma certa complacência e mesmo admiração, se não fosse grande parte do actual documentário-televisivo se escorar ainda sobre os mesmos truques e vícios: planos com cadência de 5 segundos, voz off autoritária, redundância ou desajuste entre palavra e imagem, sobrecarga do espaço cognitivo, mensagem ideológica subjacente, omissão das tensões inerentes ao real, personagens sem voz, recurso fácil ao depoimento directo ou entrevista.

Muitos documentários sofrem, hoje ainda, desta contradição, que é afinal a de uma nostalgia retardada que não toma o tempo e a vida como aquilo que são. Não procuram a expressão da existência humana nem aceitam a mudança permanente. Falta a estes filmes escolherem a vida, em vez de quererem transmitir ideias feitas sobre ela.

(Filmes vistos na Cinemateca)

19 maio 2006

Cinema vivido



Na mesma época em que, em Portugal, António Campos filmava “Almadraba Atuneira” (1961), registando a última campanha da pesca ao atum na ilha de Tavira, Pierre Perrault e Michel Brault, no Canadá, filmavam a pesca aos marsuínos (marsouins, belugas ou golfinhos brancos) que tinha sido abandonada desde 1925, mas que os realizadores e os habitantes da Ilha das Aveleiras (l’île aux Coudres) decidem em conjunto recuperar, para deixar um testemunho para os que vierem depois: “pour la suite du monde”, frase que dá título a este documentário de 1962.

O que é original neste filme é que Perrault e Brault vão também filmar a decisão e o processo de recuperação colectiva dessa espécie de caça-à-baleia, que será usada como motor do filme, dando início a uma expectativa da qual os habitantes, tal como os espectadores, a certa altura começam a descrer... Desta reunião de vontades entre realizadores e protagonistas presume-se uma encenação partilhada de situações preparadas – mas filmadas como “cinema-directo”, ou seja, sem ensaios nem repetições – portanto, autênticas na sua espontaneidade. Assim: trata-se de um documentário, mas o olhar que reflecte é o produto de uma construção colectiva; será por isso que Perrault prefere a expressão “cinema-vivido” (cinéma du vécu) e o genérico final refere “todos os que viveram e representaram este filme” (“tous qui ont vécu et joué ce film”).

A empresa de recuperação do velho método de pesca – através de um cerco de paus na maré-baixa – vai-se encadeando nas actividades sociais da aldeia – a igreja, as reuniões de pescadores, as festas familiares, as danças, o carnaval, a quaresma, a páscoa, as brincadeiras infantis, etc. – numa reconstrução do seu modo de vida organizado e harmonioso. A uma distância de 40 anos, parece mesmo um paraíso perdido e intemporal; poucas marcas há que o situem necessariamente nos anos 60 - a não ser a previsível ida do homem à lua, cuja influência cósmica é discutida recorrentemente.

Apesar de ser também um retrato social, a acção centra-se nos pescadores, quase omitindo a voz (que não a presença) das mulheres e das crianças, aqui figurantes apenas. É um mundo recriado pela palavra: as conversas entre homens são estruturantes da acção e mostram uma sociedade cujas relações de desenham mais pela cooperação do que pela competição ou pela imposição de autoridade. Uns acham que a invenção da armadilha ao marsuíno é de génio, outros dizem que tem origem nos “selvagens” anteriores à colonização europeia, e discordam serena e sabiamente quanto aos métodos de captura e morte dos animais. Mas a palavra lida – a partir dos diários do navegador do século XVI Jacques Cartier – tem a primazia da verdade e aparece como fundadora da identidade histórica e mítica desta população do Québec. A palavra instaura o mundo como ele é dito e propõe uma cosmologia.

Deleuze (1) diz que Perrault encontra “a pura e simples função de fabulação que se opõe ao modelo de verdade da ficção”. “A personagem torna-se outra, quando se põe a efabular sem jamais ser fictícia”. “É o devir da personagem real, quando se põe a ficcionar (...) e contribui assim para a invenção do seu povo” - em comunicação com o cineasta. É um cinema-verdade porque “se torna criador, produtor de verdade: a verdade do cinema”.

Inovador à época, este filme do cinema-directo aparece-nos hoje, no entanto, com uma construção típica do cinema clássico (seguindo as categorias de Deleuze): a acção, contada através da imagem-movimento, cria uma imagem indirecta do tempo, cujo ritmo de construção, ágil e elaborado, é próximo do da ficção clássica. Nessa definição formal espelha um todo, uma sociedade ideal, onde se representam vários tempos: o tempo dos antepassados perdidos, o tempo da pesca antiga, o tempo cíclico das estações, o tempo de espera ao marsuíno, o tempo dos que virão “pour la suite” e o tempo da viagem ao futuro - que é a ida a New York para entregar o animal no aquário - contada em flashback e, assim, habilmente reintegrada neste cosmos insular. Hoje, porém, é já difícil perceber em que medida aquela auto-representação é mais idealizada do que anacrónica... E é o que torna este filme maravilhoso.

(Filme visto na Cinemateca, onde principiou um ciclo sobre Perrault.)

(1) Cinéma 2, 1985, Ed. Minuit, p. 196-197


17 maio 2006

Questões de género (2)

Voltando aos campos cinematográficos e aos géneros documentais: posso considerar o documentário como um género, mas apenas dentro da território da televisão, onde se equipara aos noticiários, aos talkshows, aos concursos, etc. Na verdade, em televisão os géneros são chamados de “formatos”, de tal modo as suas características comuns são definidas a priori e não a posteriori.

Nesse sentido, o documentário televisivo poderá considerar-se um género dentro do campo do documentário. Embora mantendo afinidades com o documentário chamado cinematográfico, é tendencialmente diferente, pois vive noutro meio e fala outra língua. Documentário cinematográfico e documentário televisivo são como dois irmãos, um vive no Campo do Cinema, outro vive na Cidade da Televisão, têm muitas parecenças mas nem sempre se entendem bem, talvez porque o primeiro é mais livre e o segundo tem mais dinheiro. Mas não são inimigos, e existe até um grande número de documentários polivalentes que estão numa zona indefinida entre televisão e cinema.

A televisão está para o cinema como a música gravada está para a música ao vivo. Não é a linguagem que distingue os dois meios, mas as condições de recepção. O ecrã pequeno ou a sala escura determinam estilos narrativos e vivências muito diferentes. Que não são meios incompatíveis é evidente, tanto que os filmes de cinema passam sem problema na televisão; mas o inverso já não é válido. E há outros filmes de cinema (e muitos documentários) que as televisões evitam ou recusam passar, exactamente porque a televisão propõe (ou exige) um modo de recepção ligeiro.

A minha definição de cinema é: entrar numa sala escura e ficar lá até ao fim do filme. O cinema suscita uma vivência. A definição de televisão é em tudo oposta. E suscita uma indiferença. São irredutíveis, como experiência. Um filme não é o mesmo visto em sala de cinema ou em televisão.

15 maio 2006

Questões de género

Será o documentário um género cinematográfico? (1) Não o considero como um género (2), mas antes como um campo, uma área vasta da criação cinematográfica. Diria que o território do cinema tem dois grandes campos: a ficção e o documentário (além de outras zonas, que incluem, por exemplo, o cinema experimental ou a videoarte); ficção e documentário são áreas razoavelmente diferenciadas, mas com fronteiras incertas e continuamente atravessadas de objectos cinematográficos híbridos. São tendências, que podem radicalizar-se e mutuamente opôr-se ou podem também coincidir num mesma obra fílmica.

É consensual que toda a ficção tem algo de documental e todo o documentário tem algo de ficcional. Isso porque entendemos por “documental” o que remete para um referente exterior e pré-existente, e por “ficcional” o que remete para uma construção autónoma, anterior ou posterior. As ficções são construções imaginárias mas têm de documental o pressuporem situações e espaços do real; enquanto os documentários são também construções mentais mas a partir de situações dadas do real. É uma diferença de grau, portanto, visto que há sempre uma base de real (documental) sobre a qual se constrói uma história (ficcional).

Discordo de todo da diferenciação geral feita por alguns (3) entre ficção e não-ficção. Um filme “híbrido” – por exemplo, o recente e extraordinário Pavee Lackeen (The Traveller Girl) de Perry Ogden, mostrado no IndieLisboa - não pode simultaneamente ser ficção e não-ficção, visto que a segunda categoria anula a primeira. Estas definições inter-exclusivas não são sustentáveis na teoria do cinema, quanto mais na sua prática.

Dentro do campo do documentário haverá géneros (biográfico, social, observacional, ensaístico, diarístico, etc. o que mais quiserem), tal como no campo da ficção os há (comédia, policial, aventura, fantástico, melodrama, etc. e tantos mais). Os géneros são uma comodidade, uma forma de arrumar os filmes por aproximação e semelhança, uma forma de antecipação para os espectadores, talvez; mas o género dum filme não deve ser tomado como sua definição enquanto obra singular. O filme não tem de ter um género, assim como não tem que pertencer à ficção nem à não-ficção nem ao não-documentário. Um filme é o que é.

Apesar de tudo existem diferenças que nos permitem perceber qual a tendência dominante de um filme. Para mim, a diferença essencial entre ficção e documentário está em que na ficção as personagens são desempenhadas por actores (tanto faz se profissionais ou não), enquanto no documentário as personagens estão a representar o seu próprio papel como pessoas (4). O segundo critério, menos decisivo, será o grau de encenação de uma cena. Mas há muitas outras diferenças, evidentemente. Por último, as opções da montagem e da narrativa serão o factor mais subtil e onde é mais difícil identificar as diferenças.

No caso misto de Pavee Lackeen, acontece que temos actores não profissionais a desempenhar o seu próprio papel, personagens-de-si-mesmos, mas segundo um guião e situações criadas – uma fusão dos dois registos portanto, o que não me parece que diminua em nada o interesse, o efeito e a qualidade do filme. Mas pode gerar confusão, porque, no fundo, existe uma espécie de contrato implícito com o espectador acerca do estatuto de verdade de um filme: se a história é inventada, o espectador dispõe-se a aceitar o faz-de-conta (a “suspensão da descrença”); se a história é real, o espectador dispõe-se a acreditar nela. Está na altura de o Espectador fazer uma evolução e dispôr-se a aceitar que toda a ficção tem a sua verdade e todo o documentário as suas mentiras, manipulações e invenções.

O estatuto de verdade de um filme – em cada cena, cada imagem ou cada representação - é algo de mutável e em constante remodelação. Para certos teóricos do cinema, não é possível aferir esse estatuto e essa verdade apenas através das características formais e estilísticas ou das marcações genéricas e narrativas de um filme – características que o documentário e a ficção partilham. Não penso assim. Acho, pelo contrário, que quase sempre é possível aferir da situação mais ou menos verosímil que estamos a presenciar: o espectador treinado (ou com literacia) tem meios para decidir, se quiser, sobre o carácter mais-ficcional ou menos-ficcional de um filme.

Por exemplo, na primeira cena de Pavee Lackeen, uma velha cigana lê a mão de uma menina de 12 anos e vai-lhe dando conselhos para a vida. A câmara salta sucessivamente das mãos para a rapariga e para a velha, usando a técnica do campo/contracampo que inequivocamente assinala uma construção típica da ficção, pela repetição da cena em vários takes.

Outro exemplo é o filme Coming Apart, onde entrei desprevenida e sem saber bem ao que ia. O filme era tão extraordinariamente espontâneo e tosco que parecia um documentário puro e duro; por outro lado, era tão íntimo, como nenhum documentário consegue ser, que me questionei todo o tempo se seria possível que fosse verdade. Afinal, era um tão perfeito fake de documentário que chegava a ser inacreditável.

Para aferir da veracidade ou verosimilhança destes filmes, usei apenas elementos intrínsecos à obra. E se me equivoquei foi porque, neste último caso, o realizador optou por uma estratégia ilusionista comparável à de Orson Welles em F for Fake. A diferença entre eles é que Welles jogou com a credulidade adormecida do espectador, e Milton Moses Ginsberg apostou na sua perspicácia.

No Movimentos Perpétuos de Edgar Pêra, também é fácil distinguir em que medida a música e a voz de Carlos Paredes são originais, fiéis e verdadeiras e até onde vai a manipulação pontual; assim como é fácil ver que as imagens captadas nas ruas são na origem documentais, enquanto a sua articulação/montagem vai bem mais além do ficcional – da história reinventada – e chega ao cúmulo de uma criação autónoma para lá de dicotomias realistas.

Em resumo: as discussões genéricas sobre as diferenças entre documentário e ficção parecem-me improdutivas, a não ser que nos centremos em casos específicos e os olhemos em termos relativos; a distinção, entre o que em cada caso é documental ou ficcional, é intrínseca aos próprios filmes e pode ser identificada sem recurso a informações anexas, a não ser em casos excepcionais, aqueles que procuram deliberadamente confundir o espectador ou que jogam no fio da navalha dos registos; essa distinção decorre da praxis do filme e pode ser lida ao nível da origem da imagem (a captação) e no plano das intenções autorais, que se define geralmente através da montagem (a construção).

(1) “O Documentário como género cinematográfico” foi o mote para o debate (realizado no Teatro Rivoli na
3ª Mostra Internacional de Escolas de Cinema organizada pela ESAP) em que participei junto com Manuela Penafria, Jorge Campos e José Alberto Pinto.
(2) “Le documentaire n’est pas un genre”, diz Guy Gauthier (1995), Le documentaire un autre cinéma, Armand Colin, 2005, p.11
(3) cf. Noel Carrol (1997), “Ficção, não-ficção e o cinema da asserção pressuposta: uma análise conceitual” in Ramos, Fernão Pessoa (org.) Teoria Contemporânea do Cinema – Vol II – Documentário e narratividade ficcional, São Paulo, Ed. Senac, 2005.
(4) Como li algures e hei-de voltar a encontrar a referência...

14 maio 2006

Imagem-música (2)



Movimentos perpétuos. Jalsaghar - O Salão de Música - de Satyajit Ray
(Cinemateca, 13-05-06).

10 maio 2006

Imagem-música



O filme de Edgar Pêra, Movimentos Perpétuos - Tributo a Carlos Paredes, é uma espécie de sinfonia-visual construída sobre a banda-sonora de um concerto de Carlos Paredes em 1984 no Porto - cujas músicas o próprio intercala de intervenções orais em jeito de conversa com o público onde se revela o universo humano-e-musical do compositor-guitarrista - e sobre cuja estrutura de números Edgar Pêra organiza os 17 “movimentos” que constituem este filme e a base da sua invenção cine-visual.

O filme intercala ainda vários depoimentos de amigos, contribuições para uma biografia, único recurso que o aproxima do estilo documental-panegírico. Aparte essa concessão, as imagens, captadas em super8, riscadas, atravessadas de interferências, movimentos, surpresas, têm uma cadência que impede a sua descrição e pede para serem vistas e revistas, como quem vira o disco e toca o mesmo. É uma viagem hipnótica conduzida por um cineasta delirante e um músico exultante e barroco.

Mas a hipnose é relativa, pois o que o filme provoca é um estado-aumentado-de-consciência que, acompanhando uma estrutura simples e linear, nos deixa pensar melhor: pensar musicalmente e pensar visualmente, duas formas de actividade altamente abstractas – que não implicam discursos, sentidos nem verbalização – mas implicam a sensibilidade, os afectos e as memórias - e se conjugam perfeitamente.

A música-prodigiosa e a voz-maviosa são de Paredes, sem disfarces, mesmo se Pêra faz uns truques (mudança de registo sonoro ou repetições) que são explícitos, intervenções claras. A imagem corre em simultâneo como uma outra-música: um encadeamento de instantes plásticos, sensações cromáticas e alusões poéticas, um fluxo de encantamentos fugazes, imagens breves de impacto longo, memórias retidas no movimento, gestos de evocação, melodia cinética, errante, berrante e matérica.

A imagem, aqui, tal como como a música, não é memória do passado, apesar de este ser um tributo póstumo; é a memória em estado bruto, instantes fixados, momentos que perduram, junto com a música com que casaram.

(Em exibição em Lisboa, Porto e Coimbra.)

02 maio 2006

Retratos (austríacos)



Em State of the Nation (2002), Michael Glawogger faz um retrato colectivo que se compõe de retratos individuais e familiares. É uma espécie de inquérito pela Áustria em que ele regista o que as pessoas têm a dizer sobre: a família - o trabalho - os emigrantes - a segurança social - os impostos - a política, numa sequência causal através da qual faz um diagnóstico do renascimento do sentimento conservador e pró-fascista que levou Haider ao poder em 2000.

Ao ouvi-los falar da desintegração da família tradicional, das famílias imigrantes, da religião muçulmana, do desemprego, das escolhas políticas afectivas, entre a ignorância dos conceitos “conservador” e “liberal”, desenha-se um quadro de ideias-básicas em que o outro é visto como ameaça à identidade nacional. E onde é preponderante um desejo de restabelecimento da ordem: na família, na religião, nos costumes.

As frase típicas: “Não tenho nada contra os judeus, mas Hitler podia tê-los mandado embora sem ser daquela maneira...”; “Não tenho nada contra os muçulmanos, mas não gosto deles”. Se todos colaborassem, dizem, vigiando os outros e denunciando os que estão fora da lei às autoridades, resolvia-se tudo facilmente. O obrigatório-politicamente-correcto apenas esconde o seu reverso: um “gene” fascista.

O casal que, no plano final, discursa ininterruptamente começa por dizer mal de Bush, da sua estupidez, da sua ambição de dominar o mundo; logo derivam para o receio da ameaça islâmica e, pouco tempo depois, acabam a exprimir o seu desejo que fazer explodir todos os países que não lhes agradam! (Como é que a antropologia explica isto?)

P.S. Tive pena de não ver, deste autor, Megacities (1998) e Workingman’s Death (2005), que o blogue Ponte das 3 Entradas comenta desenvolvidamente: http://3entradas.blogspot.com/2006/04/sobre-workingmans-death-michael.html
http://3entradas.blogspot.com/2006/04/vastas-emoes-pensamentos-sempre.html
http://3entradas.blogspot.com/2006/04/olhar-o-mundo-algumas-reflexes.html