19 maio 2006

Cinema vivido



Na mesma época em que, em Portugal, António Campos filmava “Almadraba Atuneira” (1961), registando a última campanha da pesca ao atum na ilha de Tavira, Pierre Perrault e Michel Brault, no Canadá, filmavam a pesca aos marsuínos (marsouins, belugas ou golfinhos brancos) que tinha sido abandonada desde 1925, mas que os realizadores e os habitantes da Ilha das Aveleiras (l’île aux Coudres) decidem em conjunto recuperar, para deixar um testemunho para os que vierem depois: “pour la suite du monde”, frase que dá título a este documentário de 1962.

O que é original neste filme é que Perrault e Brault vão também filmar a decisão e o processo de recuperação colectiva dessa espécie de caça-à-baleia, que será usada como motor do filme, dando início a uma expectativa da qual os habitantes, tal como os espectadores, a certa altura começam a descrer... Desta reunião de vontades entre realizadores e protagonistas presume-se uma encenação partilhada de situações preparadas – mas filmadas como “cinema-directo”, ou seja, sem ensaios nem repetições – portanto, autênticas na sua espontaneidade. Assim: trata-se de um documentário, mas o olhar que reflecte é o produto de uma construção colectiva; será por isso que Perrault prefere a expressão “cinema-vivido” (cinéma du vécu) e o genérico final refere “todos os que viveram e representaram este filme” (“tous qui ont vécu et joué ce film”).

A empresa de recuperação do velho método de pesca – através de um cerco de paus na maré-baixa – vai-se encadeando nas actividades sociais da aldeia – a igreja, as reuniões de pescadores, as festas familiares, as danças, o carnaval, a quaresma, a páscoa, as brincadeiras infantis, etc. – numa reconstrução do seu modo de vida organizado e harmonioso. A uma distância de 40 anos, parece mesmo um paraíso perdido e intemporal; poucas marcas há que o situem necessariamente nos anos 60 - a não ser a previsível ida do homem à lua, cuja influência cósmica é discutida recorrentemente.

Apesar de ser também um retrato social, a acção centra-se nos pescadores, quase omitindo a voz (que não a presença) das mulheres e das crianças, aqui figurantes apenas. É um mundo recriado pela palavra: as conversas entre homens são estruturantes da acção e mostram uma sociedade cujas relações de desenham mais pela cooperação do que pela competição ou pela imposição de autoridade. Uns acham que a invenção da armadilha ao marsuíno é de génio, outros dizem que tem origem nos “selvagens” anteriores à colonização europeia, e discordam serena e sabiamente quanto aos métodos de captura e morte dos animais. Mas a palavra lida – a partir dos diários do navegador do século XVI Jacques Cartier – tem a primazia da verdade e aparece como fundadora da identidade histórica e mítica desta população do Québec. A palavra instaura o mundo como ele é dito e propõe uma cosmologia.

Deleuze (1) diz que Perrault encontra “a pura e simples função de fabulação que se opõe ao modelo de verdade da ficção”. “A personagem torna-se outra, quando se põe a efabular sem jamais ser fictícia”. “É o devir da personagem real, quando se põe a ficcionar (...) e contribui assim para a invenção do seu povo” - em comunicação com o cineasta. É um cinema-verdade porque “se torna criador, produtor de verdade: a verdade do cinema”.

Inovador à época, este filme do cinema-directo aparece-nos hoje, no entanto, com uma construção típica do cinema clássico (seguindo as categorias de Deleuze): a acção, contada através da imagem-movimento, cria uma imagem indirecta do tempo, cujo ritmo de construção, ágil e elaborado, é próximo do da ficção clássica. Nessa definição formal espelha um todo, uma sociedade ideal, onde se representam vários tempos: o tempo dos antepassados perdidos, o tempo da pesca antiga, o tempo cíclico das estações, o tempo de espera ao marsuíno, o tempo dos que virão “pour la suite” e o tempo da viagem ao futuro - que é a ida a New York para entregar o animal no aquário - contada em flashback e, assim, habilmente reintegrada neste cosmos insular. Hoje, porém, é já difícil perceber em que medida aquela auto-representação é mais idealizada do que anacrónica... E é o que torna este filme maravilhoso.

(Filme visto na Cinemateca, onde principiou um ciclo sobre Perrault.)

(1) Cinéma 2, 1985, Ed. Minuit, p. 196-197


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