29 dezembro 2005

Professor nº 968666600

21 dezembro 2005

Daltónicos



É irresistível este recente blogue dos Irmãos Daltónicos, a que pertence o fragmento acima.

19 dezembro 2005

Cruzamentos genéticos


Quando o cinema transita da sala de espectáculos para uma sala de museu, já não lhe chamamos cinema, mas outra coisa: video-instalação, multimedia, expanded cinema... Mas se o ecrã de vídeo cresce à dimensão de uma parede de sala e nos encosta à parede em frente, como se estivéssemos nós mesmos no interior de um contentor-televisão, isso já é cinema. No entanto, a ausência de cadeiras, ou o seu número escasso, indica uma relação subjectiva diferente. Esta forma de cinema não convida à contemplação, mas ao trânsito.

Em Serralves, vi as exposições-video de Pedro Costa, cineasta, também documentarista, formado na escola de cinema, discípulo do cinema como montagem, que, pela primeira vez aqui, abdica dela e se estende ao comprido no tempo: as 8 horas que dura um dos filmes expostos. Um quarto onde estão Ventura e Vanda, sentados na cama, com a televisão ao canto, conversando. É um plano geral do quarto, fixo sobre tripé, e pode considerar-se um registo documental em bruto (que aparentemente pertence a um filme anterior, O Quarto de Vanda). O espectador é convidado assistir à cena, enquanto lhe interessar. O som é pouco perceptível, a conversa mole, a acção estática e não esperei mais de 15 minutos para saber o que adiante viria. À porta o visitante recolhe um folheto agrafado com a transcrição extensa do diálogo. O processo fílmico inverteu-se: o registo documental foi transformado em argumento. A obra resultante é texto. (Acho isto notável.)

Noutra sala, isolada e escura, dois homens conversam junto a uma janela. Parece interessante, mas como não há cadeiras onde sentar, não deu para entrar no filme. Pois é assim que funciona este dispositivo: uma pessoa entra, casualmente, no filme, e sai, aceitando que não verá tudo, pois admite que dura muito (apesar de este só durar 10’). Aqui ver é viver. A tela de projecção é uma janela sobre outro mundo: aquele. O cineasta não tem um discurso, nem uma história. Tem um acontecimento, cuja história se conta a si; e afirma um só propósito: mostrar aquele espaço, aquelas pessoas, o tempo delas. Não pretende cativar o visitante, nem torná-lo em espectador. O visitante leva e traz consigo sensações, imagens, associações, uma certa vivência que é só sua, e não controlada pelo autor do filme.

Noutra sala, um longo corredor com uma luz ténue ao fundo, aproximamo-nos devagar e a medo, enquanto nos habituamos à escuridão, de um ecrã onde o mesmo Ventura em grande plano fala. Esta forma de instalação torna fortíssima a sua estranha aparição, quase de fantasma. Percebem-se as palavras, mas o discurso escapa-nos na sua vaguidão. Só depois, lendo o folheto, percebemos que o texto não é a voz do próprio, mas a leitura de uma carta de escritor em Auschwitz, o que, de repente, parece de uma violência abusiva. O efeito de real e de despojamento conseguido nas outras salas, aqui transforma-se num artifício teatral, desmesurado e confusamente político.

A experiência de ir a um museu moderno asséptico como um hospital para assistir à melancolia sem fim de duas pessoas num quarto, ou seus dramas, ou seus sussurros - é brutal. A coragem de apresentar um bruto de 8 horas, de que ninguém vai ver a mesma parcela que outro espectador, parece um gesto talvez vão, ou no mínimo, a negação total da ideia de cinema. É uma estética negra, um caminho difícil. O que leva um cineasta maduro ao grau zero da expressão (como Kiarostami)?

Na verdade, estas peças de vídeo resultam de uma encomenda e foram pensadas para dialogarem com as esculturas (horrorosas) de Rui Chafes, o que acontece de forma muito ténue, pela proximidade apenas. Em comum, resta talvez a atitude: uma afirmação de violência quotidiana, uma aceitação niilista do limbo, a poder das formas contra o espaço sacralizado do museu onde estas instalações só por sarcasmo se lêem.

Este o resultado duvidoso de um casamento arranjado entre um escultor e um cineasta, estratégia mais de marketing que artística, pois pega em dois “consagrados” e vamos lá a ver o que dá. Uma experiência de cruzamento genético semelhante já tinha sido feita com o escultor e a bailarina Vera Mantero (para a 26ª Bienal de S. Paulo em 2004). Os comissários de hoje assumem-se como criadores de programas artísticos. E os criadores aceitam ser programados.

Como os próprios dizem: «Rui Chafes - [...] O meu ponto de partida é tentar chegar a algum ponto, não sabemos qual, partindo do princípio da impossibilidade, da incompatibilidade. Com essa consciência, a gente há-de chegar a algum ponto, não no sentido da ilusão que seja possível, mas sim da certeza que é impossível. [...] A ideia foi uma proposta concreta do João Fernandes [ director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves], que depois ficou cheio de medo do resultado.» (in Público - Mil Folhas de 22/10/2005. Retirado de http://ocritica.blogspot.com/2005/11/opresso.html)

14 dezembro 2005

Manicómio (3)



O filme mais antigo desta tríade é Titicut Follies de Frederick Wiseman, filmado em 1966 e proibido nos EUA durante 25 anos (até 1991). Isto porque revela condições e tratamentos chocantes no espaço de um hospício prisional, dito “casa correccional”: homens nus vivendo em celas nuas e tratados como indigentes de forma que consideramos sub-humana.

O filme começa com um espectáculo de variedades – intitulado Titicut Follies - em que os prisioneiros cantam e dançam, numa imitação desajeitada de cabaret. Esta festa anual marca o início do filme, pontua-o a meio e conclui-o. Se estas actividades de animação se destinam a dar uma imagem de recuperação dos doentes ou a recuperá-los, não sabemos, porque não assistimos à sua preparação nem sabemos quem é o público deste sarau. Nesta omissão - ou delimitação da informação - está expressa uma intenção do realizador. Ele estabelece desta forma que há uma fachada da instituição que contrasta com o seu interior.

A segunda cena do filme, encadeada com uma mudança de cena no espectáculo e com a justificação da troca de roupa dos "rapazes", salta para uma grande vestiário colectivo, onde os homens nus trocam de roupa e são revistados por guardas. Não há violência expressa nem nada de anormal se passa aqui, para além da vulnerabilidade da nudez e da eficiência dos profissionais. A cena parece crua talvez para a sensibilidade de quem nunca foi à tropa. Mas parece cruel porque não está explicado de onde vêm, onde estão ou quem são estes homens - e porque está montada em contraste total com a cena musical anterior.

A terceira cena – numa escalada de choque - mostra uma espécie de conversa que, tendo a forma de um interrogatório, não se percebe bem se é uma consulta psiquiátrica ou jurídica, de tal modo as perguntas se sucedem e confundem, profissionalmente feitas sem inflexões de voz, a um homem novo, confesso violador de meninas, incluindo a sua própria filha, crime que ele atribui a um "problema". Aqui, finalmente, entendemos que estamos numa instituição prisional, onde os motivos do crime podem ser associados à doença mental.

Na sequência desta conversa, o preso, interrogado sobre a prática de masturbação, responde que a faz três vezes por dia, ao que o interrogador rapidamente replica: “É demais. Isso não é normal. Sente culpabilidade?”. Neste momento, propositadamente escolhido pelo realizador, a masturbação adquire o mesmo valor patológico que o abuso sexual de crianças. Neste momento, a instituição que julga, avalia e trata é posta em causa, pois os seus critérios tornam-se confusos. Se a sequência da conversa foi esta ou a inversa, não podemos saber, pois há uma intencionalidade que ultrapassa a questão da veracidade: a deliberação de provar um ponto de vista sobre a instituição.

Não vou aqui contar o filme todo. A mesma técnica, de demonstrar um ponto de vista através da montagem, aplica-se a todos os casos seguintes do filme: os homens nus que saem das celas para despejar os bacios na latrina; o ex-professor de matemática que berra de fúria, exposto em voz alta (e humilhado) por ter sujado a sua cela; aquele que, recusando-se a comer, é alimentado por uma sonda enfiada no nariz, e cuja cena é montada em paralelo com a da preparação de um morto, transformado assim em destino esperado do grevista de fome.

O caso que mais me impressionou foi o do jovem esquizofrénico que prefere voltar para a prisão, onde espera recuperar melhor do que no ambiente de berros e manicómio onde foi encarcerado há ano e meio contra sua vontade, e que, com argumentos perfeitamente lúcidos sobre os seus motivos e a sua saúde, é considerado pelos psiquiatras como paranóico típico sem apelo. Esta situação - em que uma pessoa clamando a sua sanidade é, na medida da sua insistência, considerada insana - é tão demente e inverosímil que só parecia possível em filmes de ficção.

Não é só a montagem que define esta abordagem. A decisão de Wiseman sobre o que filmar é muito importante. Ele opta por registar situações de interacção e diálogo - entre os doentes e os guardas, enfermeiros e médicos - as quais se tornam chave para revelar a equação de forças do sistema, que parece funcionar por si só, com uma indiferença pelo caso individual e com uma falta de intenções ou justificações expressas (que desconhecemos se é inexistente ou resultado de uma opção de montagem). Não há nada de equívoco neste olhar. Trata-se da denúncia de um sistema.

A diferença que vai deste filme para os outros posteriormente feitos em hospícios, é uma diferença de olhar. Depardon privilegiou situações de deambulação; Philibert, as de intimidade. Ambos se centraram nos sujeitos, alvos de um ensaio de compreensão. Wiseman apontou para a instituição. As suas intenções são diferentes, revelando não só a evolução da clínica psiquiátrica nas suas circunstâncias locais ou temporais, mas também a relação de cada realizador com elas.

(Visto no IFP, dia 12/12/2005, no ciclo “O mundo é um grande asilo”)

P.S. Olhamos para este filme como uma coisa do passado. Mas situações de encarceramento semelhantes continuam a existir. Por exemplo: os 30% de idosos que são maltratados em “lares”; os armazéns de imigrantes ilegais à espera de repatriamento, no Porto ou em Itália; a educadora de infância que, numa escola de Carcavelos, pôs pimenta na língua de um menino de 4 anos que disse “cocó” e que desde então se recusa a fazer cocó, apesar de ter mudado de escola, dos esforços da família, dos laxantes, do psicólogo...

12 dezembro 2005

Manicómio (2)



La moindre des choses é um documentário de Nicolas Philibert filmado numa “clínica psiquiátrica” dos anos 90, que podemos comparar com o “manicómio” San Clemente de Depardon. A maior diferença, para além de o filme ser a cores e logo menos contrastado, é que estes doentes, embora enfrascados em químicos como os outros, têm ocupações: na cozinha, no atendimento telefónico, desenhando e fazendo teatro. Actividades cuja acção terapêutica parece notória e que os aproximam de nós (os que os observamos) muito mais do que se apenas os víssemos pela diferença que têm, pelo seu desajuste, essa coisa mínima que, para nós, é sinal suficiente de uma desadequação maior.

Aliás, não há equívocos. Desde os primeiros planos, em que vemos passar a distância alguns dos personagens, percebemos que eles são doentes mentais. A mínima coisa é suficiente: um braço descaído, um passo trocado, um vaguear. Depois o realizador aproxima-se e vamos conhecendo alguns deles, através da reacção de descoberta da câmara e da relação com o seu operador, que por vezes os interpela como conversando, e ao qual respondem sem receios. Desde o início percebemos que esta câmara é cúmplice e amiga. E isso faz de nós, espectadores, que por intermédio dela vemos, cúmplices e amigos. Poderei chamar a este processo tão simples: transferência do olhar.

Mas estas pessoas são fechadas, são prisioneiras de si-mesmos num mundo do qual é quase impossível sair ou entrar. E no entanto, elas participam das tarefas sociais – entre as quais se destaca a preparação de uma peça de teatro – com uma receptividade, e um prazer de assumir outras personagens, que torna difícil, para nós, distinguir precisamente doentes e enfermeiros, distinção que o olhar do realizador faz diluir propositadamente.

Neste olhar sente-se sobretudo uma gentileza. E uma capacidade de contar uma história - feita de coisas pequenas com grande importância - por meio de uma linguagem cinematográfica que constrói personagens e encadeia as acções. A atenção ao gesto mínimo, e à dificuldade máxima, fazem deste filme uma espécie de encontro com vivências humanas vitais mostradas na sua relação ténue com o real envolvente.

(Visto no IFP, dia 09/12/2005, no ciclo “O mundo é um grande asilo”)

10 dezembro 2005

Genealogia da repressão


Na tradução francesa chama-se “Inquérito sobre a sexualidade”, o documentário Comizi d’Amore de Pier Paolo Pasolini feito em 1964, que em jeito de cinema-verité, como assinala Alberto Moravia, procura fazer um diagnóstico da sexualidade em Itália.

Pasolini, de microfone em punho, começa pelas crianças: como nascem os bebés e (saltando de pergunta em pergunta) como é que a cegonha os traz ou se é ela ou deus que pega no bebé, etc. Aos jovens e adultos pergunta, por exemplo, se o sexo é importante nas suas vidas, se o casamento resolve todos os problemas sexuais, se o divórcio deveria ser permitido, se as mulheres têm mais ou menos liberdade, sobre o que é a honra sexual e o ciúme, sobre os “invertidos”, sobre a família, os namoros, a prostituição, etc. etc. As perguntas iniciais são abertas, mas perante a hesitação dos entrevistados, PPP - perguntador ágil - rapidamente pede uma confirmação, ou logo inverte os termos da equação e coloca o outro em necessidade de se explicar.

O método adoptado é aquele que hoje reconhecemos como típico das entrevistas televisivas de rua, mas com uma importante diferença: aqui as perguntas sucedem-se continuamente às respostas, até obterem satisfação ou se esgotarem. Apesar de fora do ecrã, a presença do realizador – adaptável, aceitando todas as respostas, mas levantando os porquês – é a voz condutora desse inquérito e assume o seu ponto de vista por várias vezes, expondo dúvidas e afixando textos com alguma ironia. Quando as palavras ditas excedem o nível de tolerância socialmente aceite, Pasolini, evitando a censura (presume-se), não retira as imagens do filme, apenas lhes suprime o som e escreve em grandes letras: AUTOCENSURA (a dele, claro).

As entrevistas são feitas na rua no meio de ajuntamentos populares e grande atenção. As opiniões reforçam-se ou divergem, mas manifestam-se com vigor e convicção, apesar daqueles que, reconhecendo o tabu do assunto, se escudam de responder. Essa consciência é mais clara nas entrevistas aos burgueses (principalmente mulheres jovens, entre as quais Oriana Fallaci), que também tendem a considerações abstractizantes: falam em geral, mas pouco de si mesmos. Essa falta de receptividade da burguesia, por oposição aos populares pululantes, é alvo de uma tentativa de explicação final, por Moravia, algo a ver com uma hipocrisia jocosa. E conclui: é preciso sempre tentar compreender; a indignação é uma expressão da insegurança.

PPP admite não ter aprendido muito com o inquérito. Talvez não fosse fácil, nos anos 60, num país católico, pôr as pessoas a falar em público de um assunto privado e tabu. Hoje, apesar de quebrados praticamente todos os tabus, talvez ainda não seja fácil. A sexualidade, apesar de omnipresente nas mensagens da publicidade e da tv, continua a pertencer à esfera da intimidade. E alguns dogmas daquela época continuam subjacentes. Mesmo nas aulas de educação sexual ainda é difícil falar francamente.

Como as entrevistas são sempre em espaço público, com uma chusma de assistentes em roda, é de presumir que as pessoas não expressem exactamente o que sentem ou pensam, mas o que acham que é aceitável pensar ou sentir. Assim, torna-se, não tanto um inquérito à sexualidade, mas às regras da sexualidade. A diferença entre o Norte e o Sul de Itália resulta evidente, com um operário chegando à conclusão de que “a liberdade vem do trabalho” e que se as mulheres italianas (do sul) pudessem, como as alemãs, trabalhar (se os patriarcas as deixassem), haveria menos pobreza.

Visto 40 anos depois, este filme, reproduzindo uma mentalidade conhecida, persistente, mas já desactualizada, pode até parecer não ir muito longe no diagnóstico da sexualidade (se o compararmos, por exemplo, aos estudos americanos tipo Kinsey ou Hite), mas tem uma qualidade extraordinária: diz tudo sobre as crenças e representações socialmente partilhadas acerca da vida sexual, naquele tempo e naquele espaço, de forma mais rica que um estudo sociológico. Define por completo uma ideologia, nomeada “tradicional” ou “conformista”, parte importante da nossa genealogia cultural. Mas, porque também há muitas respostas divergentes, põe em evidência as questões fracturantes à época, que eram sobretudo o divórcio e a liberdade das mulheres. (As divergências sobre a virgindade ou a homossexualidade, por exemplo, ainda não se acusam.)

(Visto no IFP, dia 05/12/2005, no ciclo “O mundo é um grande asilo”)

07 dezembro 2005

O que seria a escola

A exposição Anschool, de Thomas Hirschhorn, apresenta, em Serralves, uma visão delirante da escola. Primeiro, a escola toma forma a partir das suas cadeiras e carteiras alinhadas. Depois, usando as técnicas do bricolage escolar – feito de materiais pobres: cartões, revistas recortadas, fita-cola, canetas de feltro, alguns livros – expande-se exuberantemente enchendo as paredes de mapas disformes e cartazes manuscritos com grandes textos filosóficos, inúmeros cartões de recortes que digerem pacificamente as mensagens dos media, pilhas de fotocópias que o visitante recolhe para ler mais tarde, etc. etc.

Parece uma demonstração do que aconteceria se a escola fosse deixada sem professores e se reproduzisse livremente como um tumor benigno a partir dos materiais elementares, as técnicas ensinadas e os ecos da civilização recolhidos como lixo reciclado. Aliás, Thomas Hirschhorn é como um aluno diligente que nunca tivesse saído da incubadora escolar e se afincasse a reconstruir alegremente ad infinitum o propósito central da escola. A repetição cíclica das aprendizagens, das descobertas, das mensagens, é um retrato de uma escola de onde desapareceu a tutela professoral e onde se reflectem como num espelho deformado as vivências dos seus habitantes, neste caso o mundo segundo Thomas.

Sem controlo superior, a criança amestrada e seus exercícios fazem irromper, como ervas daninhas luxuriantes, visões adjacentes que provêm do mundo exterior, tipo invasão de cogumelos ou praga de gafanhotos, que num processo de proliferação intensa (ele trabalha por uma população de centenas de alunos) enchem as paredes livres que rodeiam as carteiras e cadeiras alinhadas segundo o propósito de reprodução infinita da ordem do mundo e dos saberes.

Como a densidade aqui é muito maior do que em qualquer escola real, chegamos a pensar que não é possível um só homem produzir tanto e que ele deve ter os seus discípulos, acessores, operários, hordas de mãos a dar à fita-cola e à tesoura e à cola. (Gostava de ter filmado a montagem desta exposição.)

Os mapas-múndi com ‘tumores’ localizados sugerem o mundo como um corpo humano – que finalmente, na última sala, vamos encontrar representado por manequins com suas excrescências análogas e através das extensões que são os quartos alinhados (tipo ikea de bonecas), todos com cama, candeeiro, espelho, televisão e recortes nas paredes, enfim, o indispensável numa ilha deserta que é qualquer apartamento.

Os escritos teóricos que enchem as paredes e se multiplicam em pilhas de fotocópias, traduzindo reflexões para-filosóficas do artista enquanto tal, pouca relação têm com a parte 3D da exposição, numa espécie de desajuste cúmplice entre teoria e prática.

O exercício da liberdade é empolgante. As suas invenções deixam-nos de boca aberta e surpreendem-nos para além dos limites do que tínhamos imaginado (quando andávamos na escola). Isto é uma descoberta tão curiosa como exótica. Um devaneio sobre a escola como lugar de inscrição e oficina de moldagem, segundo o método da reprodutibilidade manual.

05 dezembro 2005

O que é a escola



A escola é o nosso sistema de reprodução cultural (tal como a família o da reprodução humana). Uma reprodução de saberes, onde cada novo aluno terá que apreender uma súmula do conhecimento humano até à actualidade, começando pela aprendizagem do código de escrita e da matemática, passando pela literatura romântica, a química e a física, a filosofia e a informática. A escola é a instituição que assegura essa reprodução dos conhecimentos, considerados importantes no período de crescimento dos cidadãos.

A família encarrega-se da reprodução dos valores e convicções, mas sem programa definido, por incorporação e mimetismo. A televisão incute os valores da socialização, do lazer e do consumo. Estas duas instituições actuam na reprodução social e ideológica, de formas não-articuladas, não-reflectidas, não-voluntárias, não-responsáveis.

Portanto, a escola é ainda a instituição mais estável, na qual a transmissão de modelos sociais e culturais é definida, objectivada, programada e controlada. Independente das outras instituições e habituada à sua autonomia, a escola depara-se apesar de tudo com a invasão dos problemas gerados pelas outras instituições, a família e os media, para os quais não tem respostas imediatas, mas tem soluções mediatas que resultam da análise das situações conflituosas no seu seio.

A escola, na sua auto-organização perfeita de hierarquias democráticas e baseadas numa premiação do mérito e do esforço, é um microcosmos que difere bastante da sociedade em que se insere, mas no qual se reflectem todos os problemas exteriores, que a escola absorve e para que procura soluções de modo a manter a estabilidade e autoridade da sua missão a nível da reprodução cultural. Por exemplo, com a sua estrutura tutelar, as escola combate as desigualdades sociais, através da uniformização das oportunidade e pela compensação activa dos desequilíbrios, processo inevitavelmente em curso e sempre inacabado.

Este microcosmos é uma espécie de caldo laboratorial da sociedade do futuro. Por isso os filmes sobre escolas se tornam interessantes em termos desse diagnóstico em embrião das tensões exteriores em campo. As crianças e os jovens, na sua espontaneidade, exprimem mais autenticamente as convicções e crenças da cultura viva.

Que seria da nossa sociedade sem escola? Sem governo ainda nos aguentávamos, como se viu durante o directório de Santana. A televisão também não faz falta. Sem ela, seríamos mais alegres e mais livres. Mas a escola? É uma instituição admirável, capaz de conter e dirigir a energia latente de milhares de crianças, organizar durante 12 anos o seu quotidiano e prepará-las para vir a ocupar o seu lugar de adultos renovando sem crises a estrutura social vigente. Quando a escola não consegue fazer esse papel, surgem outros problemas sociais (como em França).

Se a escola não consegue resolvê-los, é porque os problemas vêm do exterior. Mas surge a habitual culpabilização dos professores, bodes expiatórios deste nosso judaísmo recalcado. E não bastando, a sumidade Eduardo Prado Coelho (Público, 25/11/05) ainda vem dizer mal “desses profissionais de uma ciência inexistente a que dão o nome de pedagogia” (por sinal um dos ramos mais activos das ciências sociais e humanas). Pensem duas vezes antes de dizer mal da escola, ou vão para lá fazer melhor.

04 dezembro 2005

O gene fascista



Na Culturgest, um “documentário” japonês sobre pós-adolescentes que vivem a sua solidão urbana em pequenos quartos conectados à internet. A moda lolita-gótica (estilo boneca de porcelana) aparece como uma forma de encontrar uma identidade substituta da falta de sentimento de individualidade. A mania – ou hobby - de colocar minúsculas câmaras de video para espiar pessoas nos seus apartamentos ou nas casas de banho públicas, mostrando-as num site de internet chamado Peep TV Show (o título do filme de Yutaka Tsuchiya), serve de fio narrativo principal. Outros personagens cruzam este terreno das comunicações virtuais, entre linhas eróticas interactivas e replays do ataque de 11/9.

É um filme perturbador, opressivo, não apenas pelo tema (que bem poderia integrar-se no actual ciclo de cinema Vigiar e Punir), mas pela estética fragmentada, convulsa, ruidosa, torturada. Um filme terrível, centrado em personagens alienadas e voyeuristas. Apresentado como um documentário, pareceu-me, a mim e a outras pessoas, uma pura ficção. É certo que muitos filmes hoje navegam numa zona indefinida entre ficção e documentário. Mas acho que um documentário só o é se conseguir estabelecer com um mínimo de clareza que referente real é o seu. O que não acontece aqui. Nunca percebemos que real está para além desta história, que toda ela parece inventada e conduzida para chegar a um final conclusivo: o dia de aniversário do ataque de 11 de Setembro.

Filmado com uma cadência e variedade de ângulos que, analisados, vemos que teria que haver uma dúzia de operadores móveis em campo, mesmo usando a técnica de multi-mini-câmaras-simultâneas, ou que as cenas foram construídas e repetidas várias vezes como se faz numa ficção - é difícil perceber que isto seja um documentário a não ser por um equívoco qualquer, ou por uma hipotética autenticidade dos personagens convocados para agirem dentro de uma acção planeada e aceitando fazer o seu próprio papel enquanto executantes do desafio de se encontrarem por procuração do realizador...

Há um countdown diário, que começa a 15 de Agosto de 2002 e vai até 11 de Setembro, dia em que os dois protagonistas se fazem participar, em projecção, no ataque às torres gémeas. A obsessão e o fascínio por esse acto terrorista é comum a outras personagens secundárias e é visto como um teste à capacidade de sentir emoções e dar sentido de realidade às imagens omnipresentes de televisão. O problema da sensibilidade é permanente neste jogo de limites. A lolita principal debate-se com essa necessidade de sentir algo para além da irrealidade que a televisão lhe ensinou. E nem sequer a visão em peep tv show do namorado a fornicar a amiga “como macacos” consegue comovê-la. Quando o rapaz protagonista sufoca um gato dentro de um saco de plástico, já algumas emoções mexem, contraditórias: mata, tira, esfola... E quando ele mesmo se mete dentro do saco debatendo-se, consegue levar à histeria uma espectadora online. Os personagens reflectem periodicamente sobre a sensação de falta de realidade, que afinal procuram, não no exterior, não na relação com outros, mas na sua reacção às imagens mediatizadas imperantes.

Em todo o caso, ficção ou não, é um filme que apresenta, com uma lente de aumento impressionante, a tentação, actualmente quase irresistível, para espiar a vida dos outros, como parece que já fazem os poderes judiciais em Portugal, impunemente, com as suas escutas telefónicas ad-hoc, como claramente denuncia Miguel Sousa Tavares no Público de 2 de Dezembro.

O outro olhar

Incorpora as quatro dimensões do espaço, inclui o tempo. Provoca sensações. Deixa impressões. É mais o que se diz visão, e tem traços de identidade. Aquele de que só falamos por modo descritivo ou metafórico, um olhar que enforma o mundo, é o chamado olhar cinematográfico.

03 dezembro 2005

O olhar crítico



Quando se fala de olhar crítico num documentário, podemos estar a pensar em várias coisas ao mesmo tempo e a baralhá-las.

Há um primeiro olhar - visual e selectivo – que é o filtro do momento de registo, uma opção de enquadramento e do foco de atenção pessoal, resultando numa determinada imagem em que se expressa uma escolha por um só aspecto do real filmado em vez de qualquer outro.

Um segundo olhar – subjectivo e crítico – é aquele que mais tarde, no trabalho de argumento e montagem, relaciona os diferentes aspectos captados do real, criando uma espécie de discurso (verbal ou visual), aquilo que metaforicamente se chama ponto de vista, ou ainda, perspectiva, ou visão, mas que deveria ter uma expressão literal para a qual realmente não encontro termo certo. Também não é opinião, nem posição, nem convicção, nem versão...

É a essa coisa sem nome próprio que chamamos afinal o olhar crítico. Crítico porquê? Para destacar que não é um mero olhar. E para salientar ainda que há uma vontade por detrás desse olhar. No entanto, facilmente, o adjectivo crítico pode ser entendido no sentido de crítica, expressa ou implícita. Assim, as pessoas leriam uma cena ou um filme em função duma possível crítica contida nele. É uma abordagem válida eventualmente.

Mas, para mim, ter um olhar crítico não significa fazer crítica. Aliás, como documentarista, sou incapaz de criticar os meus protagonistas. Tomo-os como eles são, compreendo-os e gosto deles. Penso sempre neles como os destinatários primeiros do filme que os retrata perante a sociedade dos futuros espectadores. Excluo cenas em que julgo eles não gostassem de se reconhecer. Não tenho a certeza de acertar, mas essa é minha atitude.

É também natural que o público não venha a ser tão compreensivo como eu. Claro, uns gostam, outros não. Uns aplaudem uma educação dos afectos com uma abordagem sensível das questões da sexualidade, outros criticam os eufemismos e a falta de explicitação dessa abordagem. O filme, aí, voltou a fazer parte da vida das pessoas. Cada um vê nele o que lá quer encontrar.

Para mim, o olhar crítico significa – no ensino, na medicina, no documentário ou em qualquer outra área – saber diagnosticar uma situação, perceber-lhe os pontos críticos ou vitais, ou seja, os aspectos que são importantes para caracterizar uma tal realidade, observando-a na sua constituição, funcionamento, tensões, desajustes, problemas.

02 dezembro 2005

A crítica do olhar



Todos os filmes, e particularmente os documentários, ganham em ser discutidos, como aliás é prática corrente nos festivais. Esse debate de ideias que se sucede ao primeiro olhar, permite reflectir melhor sobre o filme, em vez de o arquivar imediatamente numa gaveta obscura da memória.

No debate que se seguiu à projecção do meu documentário Doutor Estranho Amor, levantaram-se várias divergências. Onde uns vêem desigualdade social, outros vêem integração escolar. Onde uns vêem um percurso de aproximação entre formadores e formandos, outros vêem uma fragilidade na explicitação de objectivos. Onde uns vêem uma atitude ríspida do professor, outros vêem a indisciplina dos alunos. Onde uns vêem uma turma de rapazes apaixonados por uma rapariga, outros vêem uma rapariga demasiado sedutora. Onde uns vêem o esforço e a paciência dos professores, outros acham-nos culpados pelo analfabetismo dos alunos. Outros, extrapolando, vêem um sistema de ensino em causa, um país em ruptura, uma democracia em risco. Inventar é livre.

O mais interessante é que todos têm razão. E as coisas são muito menos claras do que parecem. Num gesto de cabeça sobre um ombro de rapariga, uns vêem a ternura do rapaz, outros reparam no constrangimento dela, outros ainda encontram a representação da distância que vai entre o que diz e o que se mostra. O que só demonstra que a situação é complexa e ambígua. Não resulta daqui uma posição crítica ou ideológica evidente. Pelo contrário, a coexistência de pontos de vista diferentes é que vem propiciar a discussão colectiva. O filme, assim, é também uma forma de intervenção nesse social.

Se fosse um documentário que tivesse como intenção promover um certo projecto educativo, seria um chamado filme institucional. Se fosse dirigido por uma voz off, seria possivelmente um documentário de estilo televisivo, com uma mensagem explícita de reforma social. Em qualquer dos casos, o espectador era suposto aderir e anuir. Sendo um documentário livre desses constrangimentos exteriores ou incorporados, aceita todas as interpretações e pede ao espectador uma reflexão própria.

De todas estas opiniões divergentes, o que é que sobra do “olhar pessoal” do realizador? A possibilidade de revelar as contradições inerentes ao real - em vez de revelar convicções pessoais. Este não é um filme de opinião, portanto. É um documentário de observação. Tenho a minha opinião, claro, mas vale tanto como a de qualquer outro espectador do filme. Prefiro até não a manifestar antecipadamente para não condicionar a leitura individual do filme, que, sendo um documentário, facilmente resvala para uma leitura do real preexistente.

(Porque em documentário há sempre uma realidade que suscita esse olhar. Ao contrário da ficção, onde o olhar é que suscita a criação de um real.)