29 abril 2006

Retratos (lisboetas)



Partindo de uma personagem e do seu quotidiano centrado na profissão, o retrato assume-se como um género documental que, neste caso, resulta de uma proposta escolar (curso de documentário da Gulbenkian) talvez por ser fazível num tempo curto e num regime de experiência. São retratos sucintos, mas não superficiais, antes são revelações. Quatro retratos que mostram uma verdade simples: cada pessoa é um mundo.

Vestígios, filme de Tiago Afonso, é o retrato de um artesão de estatuetas de gesso, cuja oficina repleta de ícones suscita curiosos comentários, e cujo antigo hobby de cineasta amador, de filmes super8 que ele projecta e comenta, nos surpreende e constrói um personagem único.

Quinta da Curraleira, de Tiago Hespanha, acompanha o dia de um tratador de pombos e de um miúdo que o visita, através de cujas conversas entrevemos um bairro e a sua vida oculta decifrada pelos intervenientes. (E é muito curioso que o documentário se passe, aparentemente, no mesmo local que serviu de cenário e embrião para a ficção de Rosa Coutinho Cabral, Lavado em Lágrimas.)

Do Fundo da Gaveta, de Joana Pinho Neves, é um retrato mais interior, o que decorre da actividade reflexiva da protagonista, pesquisadora de arquivos botânicos, mas também do tom da conversa desenvolvida, que desvenda uma perspectiva muito pessoal da vida.

Pé na Terra, de João Vladimiro, sobre um homem e a sua horta num baldio perto da linha de comboio, é um filme de poucas palavras, tal como o seu personagem, cuja solidão ocupa o mundo vegetal que ele rodeia de muros.

Nestes retratos, perante a força das personagens, o trabalho do realizador pode parecer muito discreto. Mas, na verdade, não é assim. Em documentário, este é talvez o género mais delicado, pois depende de uma relação próxima com o retratado e de uma sensibilidade e um respeito que permita construir um retrato no qual o próprio se reveja; tarefa quase impossível, pois ninguém se vê a si mesmo como os outros o vêem e nenhum retrato consegue evitar o choque do protagonista diante desse espelho falso que é a própria imagem projectada por outro.

E se qualquer retrato é sempre incompleto, nunca definitivo, há no entanto uma aproximação à verdade da personagem que é tocante, que nos abre a uma compreensão humana maior que a permitida na vida do dia-a-dia, onde olhamos para os outros como turistas.

É importante notar que este tipo de retrato não tem nada a ver com aquele outro género biográfico mais televisivo, apologético, encomiástico e mitificador de pessoas que se salientaram no espaço público: actrizes, escritores, artistas. Ao contrário, estes documentários jogam sempre na corda bamba, numa relação de afecto, complexa como todas as relações humanas.

(Filmes vistos no IndieLisboa)

27 abril 2006

A imagem-matéria (3)

War in Vienna é um filme de 1989 que desenvolve uma relação matérica com as imagens. Michael Glawogger reúne e alterna imagens de televisão (noticiários sobretudo) e imagens do real anódino, numa espécie de equiparação factual entre umas e outras, como um longo zapping universal feito a partir de um espaço real (a cidade de Viena de Áustria) onde se diluem os episódios da vida quotidiana no fluxo das hecatombes e das guerras mundiais.

Por este processo exclusivamente matérico, onde a justaposição de imagens (e sons) se substitui a qualquer expediente narrativo, ressalta o contraste abissal entre a realidade sensacionalista dos media e a realidade banal da vida. E inversamente, a banalidade dos noticiários choca com a variedade da vida quotidiana. Umas imagens invadem o espaço das outras, indiferenciadas já, e assumindo uma forma de vida per se.

Este filme anuncia a realidade da televisão global e dos homens-câmara que hoje se generalizou. A experiência do digital funde sob um mesmo critério todas as imagens, sejam elas impressas, projectadas, radiadas, emitidas, captadas, visuais ou sonoras, analógicas, digitais, virtuais ou apenas imaginárias. Tudo é a mesma matéria: a imagem.

26 abril 2006

Comentário



Um Pouco Mais Pequeno que o Indiana, de Daniel Blaufuks (IndieLisboa), não é um documentário mas mais um comentário, como o próprio o definiu. Tem toda a razão. Por isso gostaria de deixar aqui um comentário um pouco mais pequeno: caro Daniel, já não há paciência para o discurso da chaga nacional.

A imagem-matéria (2)



Retomo a ideia: a matéria da vida coincide com a matéria do cinema. A imagem não é já uma forma de mediação do real exterior a ela. A imagem-matéria é o real tangível. Muitos filmes hoje reflectem esse universo comunicacional onde as relações humanas se confundem com os dispositivos de mediação e já não há distinção entre a vida e os sonhos. Alguns filmes (vistos no IndieLisboa) são bons testemunhos desse progresso estético (relativamente) recente.

Me and you and everyone we know, de Miranda July, demonstra a (estranha) relação das pessoas através das mediações da imagem, do vídeo, da internet, dos fetiches e das fantasias. A figura central, interpretada pela própria realizadora e artista multimedia, desenvolve uma relação com o mundo que tem origem numa procura e criação de imagens. A imagem faz parte da vida, como mais uma das suas facetas. Imaginário e realidade dificilmente se distinguem.

Carreiras, de Domingos Oliveira, persegue no tempo de uma noite o desespero activo de uma jornalista (“âncora” de noticiário) que se sente afastada do protagonismo na televisão e cuja impaciência, alimentada a doses de autoconfiança, cocaína e acessos de raiva, acompanhamos como um processo interiorizado pelo método de filmagem, fluido e imperfeito como a vida mesmo. Esta vítima da Televisão só existe em função da sua imagem - que é a sua identidade. A construção da personagem pela actriz é hiperrealista, na carga de improviso que aparenta. Imagem e vida são indestrinçáveis, mais uma vez.

Le Filmeur, de Alain Cavalier, reúne pedaços de vida filmados ao longo de 10 anos, aquilo que o filmador designa como “diário íntimo” onde não há distinção fácil entre viver para filmar ou filmar para viver, como o próprio explica: «Quando se filma ao vivo [sur le vif], não se fazem comentários, não se tenta ser compreensível, vive-se». «O exterior e o interior não estão nunca separados um do outro» (citado no blogue Ainda não começamos a pensar). De novo: imagem é vida.

Em La Sagrada Família, de Sebastián Campos, o trabalho de câmara mimetiza o improviso da vida e confere à cenas filmadas uma verdade única, especial e fugaz que contraria (na senda do Dogma 95) as técnicas convencionais da representação cinematográfica. A imagem agitada, hesitante, em modo automático de focus e iris, produz uma perturbação sensorial cumulativa com a cena dramática. A imagem tem vida própria. A consciência dessa vida da imagem exprime-se pela afirmação da presença do dispositivo: a câmara é interveniente viva da imagem.

Em toda a obra de Edgar Pêra, é preponderante a força da sua estilística essencialmente matérica, onde a manipulação das imagem é a praxis que dá origem a uma visão plástica do mundo. Nos seus filmes não há mundo que não o das imagens. Documentais ou ficcionais, tudo são imagens e visões que modelam um universo autónomo.

É certo que a noção ou a descoberta da matéria-da-imagem como forma autónoma de expressão e pensamento vem já dos experimentalismos dos anos 50, 60 e 70. Mas só com a era digital essa experiência se tornou abrangente, social e cultural. E só recentemente a imagem-matéria se impôs no mundo do cinema.

25 abril 2006

A imagem-matéria (1)



Estados da Matéria, curto filme de Susana Nobre, reúne fragmentos da vida quotidiana de uma mãe e uma filha pequena, centrando-se em duas cenas principais que não se encadeiam como sequência narrativa, mas participam de um sentido autónomo inflectido por um texto que fala de um sonho e seu desencantamento. A matéria deste filme é feita da matéria da vida.

Outro filme curto, Serpente, de Sandro Aguilar, começa com imagens de um bebé recém-nascido, passa depois para uma menina pequena a quem vestem e despem num espaço de contornos espelhados e abstractos, e daí para a observação insistente dos manequins na montra de uma loja de fatos de baptizado, nocturna e pesada de sombras. São imagens fantasmas, ou fantasmas que se representam na sua materialidade imediata, sem mediações de sentido, sem voz, sem contexto.

Ambos os filmes usam a matéria da vida como objecto de trabalho e pensamento. A matéria da vida coincide aqui com a matéria do cinema. E a imagem é esse estado da matéria que resolve a (obsoleta) oposição entre real e virtual, entre ficção e documentário, entre representação e vida. A imagem não é já uma forma de mediação do real inacessível. A imagem é o real tangível. É a imagem-matéria.

(Filmes vistos no festival IndieLisboa)

24 abril 2006

Da imagem e da vida (2)



A propósito de Coming Apart diz Luís Miguel Oliveira: «O cinema é uma coisa diabólica. Isto hoje é tão claro, em plena civilização da imagem e da sua manipulação que aprendeu tudo o que sabe com o lado perverso do cinema». Naquele filme, o dispositivo de imagem é o que desencadeia esta perversão do real. Contudo, para o André Dias, «face à experiência do filme, as saliências do dispositivo parecem-me redutoras ou quase completamente ao lado».

É certo que há muito mais para além do dispositivo, que é aqui um espelho da vida: o espelho que, na inversão dos pressupostos da representação fílmica, nos permite observar a vida como um jogo pulsional (André dixit), cheio de ambiguidade, demasiado rico de sugestões e descobertas sobre a vida mesma. Isto porque (concordo ainda) «a imagem e os seus dispositivos têm nisto, nesta construção da desafecção, um papel essencial (...). De tal modo «que seja ela, a imagem, o que urge pensar, de todo».

Da imagem e da vida



O extraordinário filme experimental Coming Apart, realizado em 1969 por Milton Moses Ginsberg, é uma demonstração pioneira das potencialidades que o dispositivo fílmico pode desenvolver na vida privada (numa premonição crítica do moderno concurso Bigbrother).

O personagem principal instala em casa uma câmara oculta e filma os seus encontros amorosos, denunciando contudo alguma dificuldade em esquecer-se da presença maquiavélica do instrumento de vigilância que ele instalou como uma espécie de dispositivo de auto-análise (ou não fosse ele psicanalista). Um espelho panorâmico completa este sistema de observação que se alimenta de si próprio. A imagem é a matéria da vida e a vida é a matéria da imagem.

O seu registo totalmente espontâneo, natural e íntimo faz-nos perguntar sem cessar em que medida o que estamos a ver é documental, fictício ou ficcional. A verdade das situações contradiz a sua possibilidade. A verdade pura da mentira? Ou a mentira toda da verdade?

(Visto no IndieLisboa, repete 4ª feira, dia 26, 15h30 no King 2)

23 abril 2006

Lisboetas



Lisboetas, documentário de Sérgio Tréfaut cujo título programático afirma, contra o senso comum, que os imigrantes em Lisboa são lisboetas, apresenta-nos vários estrangeiros que juntos compõem um retrato desta cidade, eterna encruzilhada de culturas. Mas são as circunstâncias de vida que os definem como figuras da migração universal.

O contexto revela-se na sucessão das cenas: uma situação de trabalho, o telefonema para a família longínqua, o balcão das legalizações, a mercado negro do emprego, a venda ambulante de rosas, a aula de português, o apoio médico, os espaços de culto religioso, as danças nocturnas, as crianças... O que torna este filme tocante é a opção por mostrar situações em que as pessoas se encontram em circunstâncias de grande vulnerabilidade.

Em cada cena conhecemos uma personagem cuja presença, intensificada por uma atenção exclusiva, depois se dilui no conjunto dos passantes anónimos, desenhando um retrato colectivo do processo de integração. A câmara concentra-se nos rostos, centros de um mundo inóspito e desconhecido, situado fora de campo. Uma rádio local dá informações em russo sobre a vida dos imigrantes.

É um filme que, civicamente, nos ensina a olhar para o Outro como um Mesmo. E insinua, politicamente, uma leitura ácida da realidade do trabalho ilegal. O filme demonstra, de início até à cena comovente do parto final, que Eles vieram para ficar, como Nós. É um filme tão belo que só visto.

(Em exibição no Nimas, em Lisboa, e no Teatro do Campo Alegre, no Porto)

22 abril 2006

Piso Térreo




Filipa César apresenta um travelling de 40 minutos pelas caves da Gulbenkian - uma visão dos subterrâneos, dos alçapões e dos bastidores que nunca o visitante desta instituição viu. Mas este propósito (aparente) programático é suplantado pela força do efeito criado pelo dispositivo minimal (mas não simples) de levar uma câmara sobre rodas em moto continuo numa translação pelas actividades que subjazem ao funcionamento do edifício.

A revelação dos espaços interiores, atravessados à altura fixa de cerca de um metro, opera uma secção da realidade, a partir da qual tudo o que nos aparece na imagem - objectos, construções, paredes, pessoas, gestos - indicia, denuncia e sugere metonimicamente o que lhe está fora de campo - visual e sonoro.

A fluidez deste modo de observação mantém-nos agarrados ao ecrã na expectativa de novos objectos, evidências, traços de existência, rastos de gente, indícios de actividade -
uma paisagem rica que vamos decifrando de passagem. Os espaços, as formas, os objectos – roupas, caixas, instrumentos, obras de arte, paredes, estantes, livros, guichets, máquinas – são os nossos guias nesta viagem, onde surgem ocasionalmente os habitantes deste mundo. A relação sujeito-objecto inverteu-se, as figuras humanas aparecem como utilizadores desse espaço e desses objectos preexistentes, ao contrário da relação, mais comum, que considera os objectos e espaços como utensílio nosso.

E ficamos presos desse movimento encantatório - o travelling – que é a essência do cinema como arte do movimento: uma representação do olhar como viagem centrada num ponto subjectivo. O movimento uniforme torna difícil abandonar a viagem, porque a cada segundo descobrimos uma parcela do mundo que só por esse meio conheceremos. Esta visão tão simples é tão forte que é difícil não sair dali impressionado por ela e não arrastar essa sensação de travelling pelo mundo exterior: a sensação de que o mundo é exterior, tout court.

Corroboro ainda a opinião de O céu sobre Lisboa, de onde roubei agradecida a imagem acima.

18 abril 2006

Episódio (3)



Recuando na memória, lembro-me de outro caso ainda mais sinistro passado na Culturgest durante o último festival DocLisboa, precisamente numa das sessões finais de filmes premiados. Cheguei sobre a hora, estava a começar a sessão, e mostrei o meu bilhete à porta da sala para entrar de imediato. Mas não deixaram, disseram-me que tinha que recuar 20 metros, da porta lateral do grande auditório até ao cimo das escadas, onde deveria esperar que fossem chamados e levados, um a um, os espectadores pacientes. Só que eu sou nada paciente quando estou atrasada e não gosto de perder o início dos filmes, por isso avancei dizendo “está aqui o bilhete, quero ver o filme, vou entrar”. Os dois arrumadores que obediente e lentamente têm por missão guiar os passos dos clientes, disseram que não podia entrar sozinha porque estava escuro, eu retorqui que não precisava de ajuda, que via bem e depois me sentava. E fiz menção de entrar pelo corredor, quando salta um segurança à minha frente, me agarra violentamente pelos ombros, magoando-me e obrigando a afastar-me 10 metros. Eu - subjugada e aterrada - ainda assim clamei que ele não tinha o direito de me tocar ou impedir de passar, que não se tratam os visitantes como se fossem terroristas, e exigi que me desse o nome para futura queixa. E lá fui para o fim da fila, rosnando alto a minha indignação incomportável no meio do salão vermelho, perante a paciência bovina dos demais espectadores e a frieza robótica dos arrumadores. Não demorou muito que, diante da minha inconveniência, viessem rapidamente fazer-me entrar pela porta do outro lado, passando à frente de todos os outros da fila.

O episódio foi tão perturbador que só ao fim de meia hora consegui acalmar e entrar nos filmes. Tão desagradável a sua memória, que a queixa - que não poderia deixar de fazer - a fui adiando - e não fiz - apenas para evitar ter de reviver o acontecimento e acordar as emoções da indignação e da violência sentida.

É recente, mas não é inédito, este clima profissional de obediência estrita a ordens superiores, que são aplicadas e impostas aos visitantes/espectadores/clientes/cidadãos/consumidores qual carneirada. Uma Culturgest não é diferente de um Colombo, a técnica de relações públicas é a mesma: a obediência. Não há lugar para excepções, ainda que a regra seja estúpida e arbitrária. Quem ali trabalha é pago para não pensar, ou julga que é pago para isso. Ou não pensa, porque esse é o seu mundo, o mundo das hierarquias estreitas como uma escadaria e da represália como sistema de regulação mental. É isto o fascismo interior.

16 abril 2006

Episódio (2)



Outro caso sinistro passou-se, há dois meses, num antro de salas de cinema cujos grandes números luminosos e espaciais pediam para ser fotografados, 1, 2, 3, 4 vezes, até que um guarda reparou e decidiu proibir-me: “não pode fotografar aqui dentro” e eu saí logo sem discussões e fotografei de fora através da porta de vidro. Como era de esperar, ele veio atrás de mim e eu alterquei “não posso porquê? isto está cheio de câmaras a filmar-nos, mas eu não posso fotografar?!” Obviamente, ele não tinha resposta, porque os guardas são pagos para executar ordens e não para pensar. Insolente, continuei a fotografar enquanto discutia com ele, visivelmente estarrecido e sem vontade nenhuma de ter um problema de segurança. Mas por que havemos de aceitar, os “clientes”, sermos permanentemente vigiados e ainda considerados suspeitos? Por que não poderemos fotografar dentro dos shoppings? Que segredos se escondem entre os néons desta feira popular? A não ser a imposição de normas de propriedade, normas de autoridade e outras normas anormais que têm por objectivo anular a liberdade individual.

12 abril 2006

Episódio (1)

Outro episódio sinistro passou-se no domingo no Museu do Chiado. Apeteceu-me espreitar para o pátio exterior, afastando levemente, e por um segundo, a cortina que tapa a janela esguia. Um guarda vem ter comigo: "Não pode tocar aí." - "Deve estar a brincar", disse eu, mais uma vez apanhada desprevenida. Ele insiste, pergunto porquê, mas logo irritada : "não me chateie". (Tratam-se os visitantes de um museu como se fossem crianças malcomportadas?) Afasto-me para o varandim do átrio, ele segue-me: "para aí não há nada, está fechado", ignoro-o, circundo o balcão, fico a olhar para o Grupo do Leão em baixo. O homem insiste e eu returco: "Não se pode estar aqui? está a vigiar-me porquê? tem medo que eu estrague alguma coisa? aqui não há nada". Afasto-me para um canto, fora da vista dele. Ele espreita à esquina. "Vá-se embora, parece um PIDE". E com esta livrei-me dele. Que mundo é este?

Paranóia (3)

Desta vez fui eu a vítima contrariada da câmara de outros, uma câmara escondida numa carrinha preta de vidros negros, enquanto um rapaz jovial me interceptava no passeio: "A Gronelândia fica no hemistério norte ou no hemisfério sul?" - "No hemisférico norte, porquê?", perguntei eu, sem qualquer suspeita. "Acertou, obrigado por estar desprevenida", diz ele e dá-me 10 euros de prémio e afasta-se. Chamo-o: olhe, não quero os 10 euros, tome lá. E ele fingindo ignorar-me, ao fim de algumas insistências, lá me vem dizer que é para um programa da SIC. A parte cómica do "apanhado" é aquela em que recuso a nota e faço de parva, não a da pergunta inicial, apesar desta jogar com a minha inocência.

Depois aparece o "produtor" com um papel para eu assinar a autorização. "Olhe que ficou muito bem, não tem mal nenhum, nunca viu o programa?" Não vi de facto, nem assino, nem explico porquê. Há muitos anos que tenho a certeza de que não colaborarei num desses programas. Apesar de, no fundo, lhes achar tanta graça como toda a gente e de lhes reconhecer até um mérito raro: a capacidade para desmanchar o senso comum, a possibilidade de escalpelizar uma série de comportamentos-padrão, uma forma de diagnóstico cultural que nenhum outro meio obtém. Mas não consigo evitar a repugnância pelo método e o efeito de risada alarve que se sobrepõe à perplexidade latente. A carrinha negra (que por falta de presença de espírito não fotografei), essa então, acho sinistra.

06 abril 2006

Genealogia (2)



Comizi d’Amore (Comícios de Amor), documentário-inquérito de Pasolini (1964), sobre a sexualidade dos italianos, serviu de matriz para este outro Comizi d’Amore 2000, de Bruno Bigoni, remake assumido que utiliza as próprias perguntas de Pasolini, e a sua voz no filme original, para voltar aos mesmos lugares e entrevistar as mesmas personagens-tipo. Do diferencial entre umas e outras respostas, teremos uma medida da evolução dos costumes no tempo de uma geração.

As crianças já não contam a história da cegonha e sabem que foram geradas na barriga da mãe. Só não sabem é como foram lá parar. As mulheres manifestam-se muito mais numerosa e abertamente que nos anos 60, assumem a igualdade, embora acusem ainda a existência de preconceitos sociais em relação à sexualidade, havendo ainda muitas (as mais velhas, sobretudo) que defendem a virgindade como um valor. Os pais rurais continuam a limitar às raparigas os encontros com o namorado.

Em relação à prostituição, as opinião são quase as mesmas de há 40 anos – a preferências pelos bordéis (que tinham sido fechados por altura do documentário de Pasolini e assim continuam), pois permitiriam controlar e cuidar das mulheres e da sua saúde, ao contrário da prostituição de estrada – mas Bigoni foge ao guião original, não conseguindo entrevistar algumas dessas trabalhadoras da rua.

Onde se nota maior evolução das mentalidade é na aceitação e na compreensão da homossexualidade. Não havendo qualquer unanimidade, a diversidade de opiniões, leituras e fantasias é tal que percebemos ser esta uma área de representações sociais em plena mutação, tal como o era a libertação da mulher nos anos 60.

Que hoje há menos tabus em relação à sexualidade é uma evidência para todos, mesmo sem vermos este filme. Estranho é que, em 70 minutos, haja uma só referência à SIDA. A omissão deste problema não se compreende, senão como atavismo do realizador que, colado ao guião original passo a passo, deixou cair o juízo crítico e a capacidade para actualizar questões e diagnosticar novos problemas. Ou não ousa ainda falar desse novo tabu?

Que sentido poderá fazer este documentário daqui a 40 anos (quando já houver vacina contra a SIDA...)? Terá o valor histórico que hoje tem o primeiro? Na verdade, entre um e outro documento-histórico as diferenças são meramente evolutivas, percentuais talvez, pois os paradigmas ideológicos representados são os mesmos. Juntos comprovam como a evolução dos costumes e das mentalidades é um processo lento, multiforme, disperso e incoerente.

Embora preso ao guião original, Bigoni moderniza o seu filme pela inserção, em vez dos comentários e frases de Pasolini, de intermezzos tipo teledisco, imagens saltitantes filmadas em Super8, estilística na moda mas despida de motivação. Onde Pasolini reflectia sobre o seu método e convocava Moravia e outros para discutir os resultados da sua pesquisa através de Itália, Bigoni limita-se a fazer um produto televisivo, picante mas sem problemática, com muita música, muitas imagens ópticas, a caução do plágio assumido como homenagem, e a pretensão de um estudo sem reflexão.

(Visto na Cinemateca em 5 de Abril.)

05 abril 2006

Meta-log

Os blogues, na sua novidade recente, são um fenómeno que suscita inúmeras reflexões sobre a sua natureza, como tem vindo a fazer José Carlos Abrantes, nos debates Falar de Blogues, organizados na Livraria Almedina. Aliás, quase todos os blogues fazem uma meta-reflexão de propósitos, orientações e motivações, seja no cabeçalho, seja nos posts fundadores. Nunca o fiz aqui, mas, depois ter sido convidada para aquele evento, proporcionou-se a ocasião. Apesar da falta de definição expressa, este blogue enquadra-se no género “temático”, tão claro surge para quem o visita que o seu assunto principal é o documentário.

A razão por que decidi dar-lhe início foi tão de ímpeto - de um dia para o outro – que é difícil explicá-la senão como uma urgência pouco ponderada. Treinei-me, ainda em fase experimental e incógnita, durante uma semana, mas depois já não podia voltar atrás, tinha que vencer o meu próprio desafio. Foi nesse período de formação nebuloso, que lhe encontrei a forma e se autodefiniu com alguma clareza o significado dos sufixos tão vagos como “doc” e “log”. Ter encontrado essa forma permitiu-me continuar numa linha editorial já sem grandes oscilações.

Com essa definição temática ou, melhor, territorial, também procurava evitar a dispersão, o falar à toa (não me importo de o fazer, desde que não fique escrito) ou a deriva inconsequente. No entanto, esta convergência temática é aparente, porque como cada documentário fala sempre de outros assuntos, acabei a dar opiniões sobre coisas de que pouco sei (saúde mental, política, etc.). Mas, se o faço, é afinal porque a experiência que um documentário oferece nos possibilita esse aprofundamento de um assunto que não era próximo.

Por outro lado, desejava encontrar diálogo (respostas, comentários ou apenas leitores) numa área em que sou espectadora assídua – o documentário – e em que trabalho. Iludi-me nessa expectativa: o diálogo propiciado pelos blogues do género "conversa-de-café" é muito mais vivo do que aquele que os meus textos construídos podem suscitar. Será difícil discuti-los ou comentá-los, sem que isso obrigue o interlocutor a dedicar-lhe horas de escrita, na condição prévia de ter visto os mesmo filmes... Apesar de tudo, a polémica aconteceu com o blogue Ainda não começámos a pensar: uma boa polémica que nos obrigou a pensar.

Ao fim de mês e meio de postagens diárias, por auto-imposição, percebi que tinha poucos leitores, poucas respostas, logo, poucas obrigações. Abrandei a actividade e passei a escrever só se me apetecer, o que também é uma forma de evitar contribuir para o lixo universal e minorar a inconsequência. Aliás, para controlar o factor emocional desse apetite, escrevo num dia mas publico só no seguinte, depois de rever e corrigir o texto, segundo uma velha regra de uma bisavó: “quando receberes uma carta, responde logo, mas manda só no dia seguinte”.

Com tudo isto, ganhei muito: o exercício permanente da escrita; a reflexão sobre documentário, cinema, video-arte, etc. Consegui ainda superar os dilemas de me expor pessoalmente e encontrei um certo equilíbrio em moderar a crítica sem perder a opinião. Porém, às vezes, não resisto a fugir ao meu espartilho, quando um assunto me incomoda demais (por exemplo, as sondagens presidenciais) ou me interessa muito... Outras vezes, vigora a lei universal do menor esforço: no mês de Março só escrevi 3 vezes. Peço desculpa aos visitantes habituais, pois nada é mais frustante na blogosfera que andar a bater às portas e encontrar blogues murchos. Mas o leitor comodista também tem obrigações: se há falta de estímulo o bloguista torna-se preguiçoso.

O blogue é – afinal - o pretexto que me faltava para poder escrever. Dantes escrever um artigo de opinião era uma acção altamente motivada: tinha que haver onde publicar, ou era preciso inventar jornais, organizar, reunir, imprimir, distribuir, etc. Hoje basta a vontade e o pretexto/o meio. Mc Luhan continua a ter razão: o meio é a mensagem. Este novo meio – o blogue - é o nosso pretexto para comunicar, tal como os cafés de outras épocas e as tertúlias. Parece que não sabemos, os humanos, senão comunicar, mas comunicamos diferentemente conforme o meio. Assim, já ninguém é obrigado a escrever para gaveta, ou sequer para a boa vontade dos amigos. Hoje acabou-se o complexo de gaveta – ou o complexo de mansarda de Álvaro de Campos:

«Não, não creio em mim.
(...)
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
(...)
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
(...)
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.»

03 abril 2006

Documentário da ficção



Dois filmes sobre possíveis filmes. Dois documentários de répérages para futuras ficções, onde o realizador Pasolini (acompanhado de uma câmara, melhor será dizer, um cameraman, não esquecendo que uma câmara é sempre alguém) vai procurar no mundo real motivos, justificação, personagens, imagens e, por último, locais para uma ficção a rodar.

Num caso – Répérages na Palestina para O Evangelho Segundo Mateus (1964) - trata-se de uma viagem aos lugares originais da vida de Cristo, em Israel e na Jordânia, para o futuro filme que acabaria por filmar em Itália - porque este relato é o de uma decepção. Pasolini procurava sobrevivências com dois mil anos, mas o que encontra são ou lugares muitos pobres, de subproletariado árabe, ou cidades modernas edificadas. Mesmo a agricultura é já industrializada, embora subsistam traços de ruralidade primitiva, fisionomias arcaicas e indumentárias sugestivas. Os lugares míticos – as colinas, o rio Jordão, por exemplo - parecem-lhe demasiados pequeninos e próximos. Só o deserto tem dimensões épicas. As restantes paisagens todas lhe sugerem lugares de Itália, igualmente válidos para filmar.

Seguir o método de pesquisa, os comentários de Pasolini e do Padre que o acompanha como guia, as conversas que encenam sobre se a monumentalidade erigida nos locais santos se sobrepõe à humildade dos eventos originais, ou sobre que visão espiritual evocam esses lugares, sendo que a ideia de espiritualidade para um é religiosa, mas para outro estética – tudo isto é interessante, mas é também matéria para considerar como a ficção procura âncoras no real e dele depende para se desenvolver. A consciência que Pasolini tinha que disso é demonstrada pela sua decisão antecipada de filmar aquilo que poderia não passar de uma viagem de reconhecimento local (como terá feito depois em muitos outros filmes), percurso que aqui, por estar filmado, adquire o estatuto de reflexão sobre as afinidades e ligações entre o real e a ficção, mediados por aquilo que está de permeio: o processo imaginativo, que é um composto de especulações e imagens prévias.

No outro caso – Notas para um Filme sobre a Índia (1968) -, filme que não chegou a existir. Pasolini parte de uma história hipotética – um marajá que para matar a fome aos seus leões se oferece em sacrifício como alimento – para testar no real as suas possibilidades de verosimilhança e o desenvolvimento do argumento. Assim, pergunta a vários intervenientes se seria possível que um marajá o fizesse, e se a viúva e os órfãos caídos na miséria se misturariam ou pediriam auxílio às castas inferiores, onde iriam, como viveriam, quem seriam os filhos (especula filmando as caras dos meninos na rua), como seria o funeral do marajá, etc. Pasolini interroga todo o tipo de pessoas: marajás, pessoas da rua, intocáveis, um escritor, um cineasta, enquanto imagina cenários a partir de palácios reais. Neste inquérito para tornar viável uma ficção, confronta-se com a realidade que a autoriza, levando-nos numa viagem que não tem nada de turístico, porque busca entender um mundo para construir outro mundo. Ou, como escreve António Rodrigues (na folha da Cinemateca), "permite-nos ver um filme e imaginar outro".

A proximidade de Pasolini aos seus interlocutores - tão presente nestes filmes como no inquérito Comizi d’Amore (que passa dia 5 às 19h30 na Cinemateca) - em cada plano virado atentamente para cada pessoa, projecta um desejo de ficção num olhar único que absorve aquela existência fugaz para chegar a uma evidência de outra ordem, a que as suas palavras simples de narrador conferem uma espécie de amor à humanidade.

(Visto na Cinemateca em 31 de Março. Repete terça-feira, 4 de Abril, às 22 horas.)

01 abril 2006

Paranóia (2)



Outra paranóia típica do rescaldo pós-bigbrother é a que deriva de as pessoas terem percebido que a sua presença (vulgar) em filmes (e fotografias) pode valer dinheiro. São os chamados direitos de imagem, tão exclusivos como os direitos de autor. Estes dois direitos convergem numa espécie de convicção narcísica: a de que cada pessoa é uma personagem; a de que cada personalidade é uma obra.

Nasce a ilusão de que cada pessoa é resultado da sua própria criação autoral. Como se nós não fôssemos o produto involuntário de tantos factores psico-sociais cujo controlo e interpretação nos escapam de todo, por mais que nos olhemos ao espelho. Como se a nossa personagem não fosse apenas aquela que os outros metem na história que eles contam.

Esse é o trabalho propriamente autoral de um documentarista: contar uma história de outros, transformar pessoas em personas, extrair da massa do quotidiano uma ideia sobre a vida.

Quando um documentário tem êxito de bilheteira - foi o caso de Ser e Ter de Nicholas Philibert - a cegueira do vil metal pode levar à inversão total de papeis, transformando um professor feito personagem terno e modesto num narciso ressabiado e ávido, um realizador admirado pelo seu relacionamento de proximidade e confiança num ladrão de almas, umas crianças doces e provincianas numa máquina rancorosa de ganhar dinheiro dos pais. Todo o idílio criado pelo filme (pura ficção, dir-se-á) acabou. Talvez seja inevitável que os idílios acabem, excepto nos filmes.

Para resolver o assunto, o professor pôs o realizador em tribunal, clamando ser ele próprio o autor de si-mesmo. Este processo já deu muito que falar e escrever e finalmente foi pronunciada a sentença: o professor perdeu. Traduzo adiante extractos da notícia do Le Monde.

«O tribunal considera que as lições de M. Lopez não relevam do direito de autor. É certo que um curso oral dum professor "pode, tal como uma conferência, uma alocução, um sermão ou uma argumentação, ser considerado como uma obra do espírito". Mas deve responder ao "critério de originalidade". Ora o tribunal não constata nem "método pedagógico original" nem "escolha inédita de exercícios e testes".

«O tribunal mostra-se ainda mais preciso acerca dos direitos sobre o filme propriamente dito: "O filme em litígio pertence ao género documental, cujo objecto é a filmagem de pessoas que não representam ou seguem argumentos, mas executam perante a câmara a sua tarefa ou função habitual". Ora "não é usual prever remuneração para os participantes, a fim de preservar a autenticidade das cenas filmadas". A não ser que M. Lopez tivesse concebido ele mesmo a obra... Mas "a escolha do assunto - relatar a vida quotidiana de uma turma única - pertence só a Nicholas Philibert". Quanto às lições e aos diálogos com os alunos, o tribunal considera que "eles não foram concebidos para as necessidades da obra audiovisual".

«As reivindicações de "artista intérprete" de M. Lopez são igualmente rebatidas. "Ao logo de todo o documentário, ele foi filmado no exercício da sua profissão de professor, tal como na entrevista feita, e não como intérprete de um papel que não fosse o seu", escrevem os magistrados. Por outras palavras: não há ficção, não há actores, não há remuneração exigível...»

La cour d'appel de Paris déboute l'instituteur d'"Etre et avoir" LEMONDE.FR 29.03.06
L'instituteur du film "Etre et avoir" débouté LE MONDE 30.03.06
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