27 fevereiro 2006

A terra gira



O documentário O Céu Gira de Mercedes Álvarez é daqueles filmes que procuram representar o tempo - o tempo das quatro estações, o tempo da vida humana, o tempo dos antepassados e dos vindouros, o tempo dos instantes memoráveis e o tempo que não passa.

A realizadora regressa à aldeia onde nasceu (Aldealseñor, Soria, Espanha) e durante meses acompanha os seus escassos habitantes, filmando determinadamente a paisagem e a memória. O tempo do filme acompanha a passagem das estações do ano mas organiza-se como um passeio intemporal através da paisagem habitada, onde se cruzam pegadas de dinossauros, vestígios romanos, memórias de infância, moinhos de vento, colonos marroquinos, palácios e cemitérios abandonados, ecos de outras guerras.

É uma visão cosmogónica de densidade raramente conseguida, tingida de uma poesia trágica e escorada em verdades triviais e absolutas. Não há ali nostalgia nem sentimentalismo, há uma simplicidade crua e temperada do humor sábio dos velhos. A atenção demorada à paisagem - as pausas onde quase nada acontece, mas qualquer coisa tem um relevo enorme - opera pela rarefacção para atingir a concentração.

Tudo isto é dizer nada. Um filme destes, capaz de nos envolver como uma viagem no tempo, não é traduzível ou discutível. Cada um que o veja terá uma experiência única. Como já foi dito no Animatógrafo: « O resultado é um filme belíssimo e de uma simplicidade desarmante, quase natural nas suas formas. E, curioso, muito longe da imagem de auto-comiseração que grassa na ruralidade portuguesa.»

(Em exibição no King, em Lisboa.)

24 fevereiro 2006

Barronhos



Revi “Barronhos – Quem teve medo do poder popular?” (1976), um documentário de Luís Filipe Rocha que foi mostrado no domingo passado - 30 anos depois - perante os antigos moradores do bairro-da-lata de Barronhos, hoje Bairro 18 de Maio (logo abaixo da SIC em Carnaxide).

Após a projecção, o realizador disse que considera este o seu primeiro filme, “embora seja um documentário” e tendo depois realizado já muitos filmes, todos ficções. Para mim, este é talvez o seu melhor filme (não por ser um documentário), porque é aquele onde há mais invenção (apesar de ser um documentário...). A invenção de que falo não está na imaginação ficcional, mas na forma cinematográfica encontrada como solução fílmica original para um problema singular. Esse problema era contar aquele real, lidar com ele, tomar uma atitude. Desse desafio surgiram formas narrativas e visuais únicas e irrepetíveis. Este modo de trabalhar é apanágio do género documental.

Neste filme, o realizador conseguiu conciliar duas intenções: por um lado, ser fiel a uma objectividade dos factos, por outro, assumir um ponto de vista pessoal (estético e político) sobre esses acontecimentos, sem que os dois planos se confundam um ao outro e, portanto, respeitando um equilíbrio entre o seu olhar interior que é exterior ao bairro e o olhar exterior dos habitantes que é interior aos acontecimentos. O ponto onde o olhar do realizador encontra o dos actores é aquele que se suspende nos planos numerosos de crianças – as que tudo vêem mas nada contam - e que hoje se reviram no filme, talvez com surpresa, completando o círculo virtual desenhado.

O filme dá voz aos moradores na explicação do crime ocorrido - Bráulio foi morto por Jaime, durante uma disputa relacionada com um abaixo-assinado pela electrificação do velho bairro da lata - e enquadra-o no contexto político-social da revolução popular em curso. Assim, os dados do crime adquirirem significados precisos e também valores de universalidade, ao expor motivos que pertencem à eterna luta de classes. (O que me faz lembrar o final de Brandos Costumes (1974) de Alberto Seixas Santos, com a filha mais nova lendo Marx: “a história da humanidade é a história da luta de classes”.)

E se, para o realizador, à distância de 30 anos, o filme provoca sobretudo nostalgia, e para outras pessoas na assistência evoca a época em que descobriram que podiam lutar colectivamente por uma vida diferente e obter resultados, viemos a saber, no debate, que não foi tudo conseguido, que a luta esbarrou em dificuldades sucessivas e mudanças políticas que não permitiram, naquela época, construir mais que 95 dos 450 fogos previstos.

Essas dificuldades começam aliás, no filme, com a divergência entre os moradores mais abastados ou comerciantes, que pretendem trazer a luz ao bairro velho, e os mais pobres, que vêem nessa iniciativa uma ameaça aos planos de construção de raiz de um bairro novo. Essas distinções sociais estão latentes hoje ainda, após a projecção, quando um dos moradores pergunta ao realizador por que filmou só casas pobres havendo muitas barracas-por-fora que eram por-dentro-impecáveis e “sem um grão de pó” (e rejeitando a assimilação da pobreza à sujidade). LFR responde que foi o que encontrou e outros moradores esclarecem que havia três zonas no bairro: a dos trasmontanos, a dos minhotos (ou galegos) e a dos alentejanos, ou noutra toponímia, Barronhos-de-cima e Barronhos-de-baixo. E um morador mais sentido chama a atenção para um aspecto que não lhe pareceu suficientemente vincado no filme: que o criminoso pertencia aos ricos do bairro, o que inevitavelmente descarrega uma culpabilidade sobre aqueles, acrescida de contornos trágicos associados à luta de classes.

E se outros moradores acham o filme importante por permitir mostrar aos mais novos as dificuldades que passaram seus pais e avós, os dirigentes da Associação de Moradores lembram aos locais para participarem mais na vida associativa e colectiva do bairro e na melhoria dos espaços comuns. E uma senhora assinala aos presentes que, ali perto, existem ainda bairros clandestinos com os mesmos problemas que eles tinham há 30 anos.

Entretanto, um arquitecto do antigo SAAL explica que mais tarde foram construídos ao todo 2000 fogos, que acabaram por ser ocupados por muitos imigrantes africanos, o que, dizem outros, trouxe também muitos problemas, numa sugestão de segregação social e racial que parece demonstrar, de novo, outras modalidades da luta de classes e levantar a dúvida sobre a capacidade humana de aprender com as gerações anteriores.

Em suma, o documentário não é apenas sobre o verão de 75 e as lutas sociais de então; é um filme que parte do particular (o crime) para explicar o geral (o país), abrindo sucessivos círculos de compreensão (o Bráulio, o Jaime; o bairro) que se incluem num movimento temporal mais amplo. É um filme que, na sua solução formal e no seu cometimento ideológico, não está preso à contingência e à época. E faz pensar como a utopia é difícil.

23 fevereiro 2006

Realizadores

Novo blogue da Associação Portuguesa de Realizadores, onde se revela o PLANO DE EXTINÇÃO DO CINEMA PORTUGUÊS e se «considera inaceitável e incompreensível que, depois do ICAM se ter comprometido e inclusivamente orçamentado um determinado programa de execução, esse compromisso seja amputado para cerca metade do previsto, com a agravante de anular a totalidade dos apoios financeiros a Primeiras-Obras (primeiros filmes de novos realizadores). Sabendo que o ICAM é financiado quase na totalidade por receitas próprias (provenientes de uma taxa sobre a publicidade televisiva) este facto levanta suspeitas sobre o destino de cerca de 40% do financiamento anual do Instituto.»

14 fevereiro 2006

Re: Panorâmica

«A programação como relação construída entre salas, entre telas, entre filmes, poderá constituir o campo de uma importante resistência ao tal fluxo que corre, concedendo a possibilidade de uma “presença de espírito”. A relação estabelece-se já não dentro de um pensamento, mas entre pensamentos, entre discursos. Torna-se possível falar sobre.» A citação é de um texto muito interessante da Inês Sapeta Dias, que foi coorganizadora da mostra Panorama, e faz parte de uma argumentação de resposta, no blogue Ainda não começámos a pensar, às críticas feitas no debate final e abaixo reportadas por mim.

Concordo em grande parte com o articulado da Inês, mas acho a conclusão - contra o proteccionismo ao espectador - muito radical. Antes, porém, quero esclarecer que o adjectivo "cobarde" aplicado à falta de selecção não foi usado por mim nem por ninguém. Pelo contrário, tal como ISD, acho que foi uma aposta muito corajosa. E acho corajoso também conseguir ver horas seguidas de filmes (como eu fiz em alguns dias) e permanecer na sala só para poder "falar sobre". Sei que não estão todas as pessoas a isso dispostas. Há uma espécie de contrato implícito entre o público (uma entidade colectiva bastante numerosa, mas cujos caprichos são mais ou menos insondáveis) e os programadores: o público espera destes que, dado o seu trabalho e conhecimento alargado, lhes dêem a ver coisas diferentes e interessantes. Só um espectador militante está disposto a fazer o trabalho que cabe ao programador: a seca de ver maus filmes.

Talvez possa parecer agressivo eu ter dito que ver maus filmes prejudica a saúde. Nem todo o espectador quer ser um herói, a maioria quer apenas entretenimento. Que atrás disso se lhe dê matéria para pensar, comparar, criticar, mais satisfação terá. Mas desiludi-lo, ou transformá-lo à força num estudante de cinema, já pode ser abusar dessa relação de confiança implícita no contrato com a entidade programadora. O que faz o público quando perde a confiança? Desiste. A ideia de «criar públicos onde eles já existem» é um paradoxo. Entre ter na sala 20 aficcionados resistentes ou 200 convertidos, venha a Videoteca e escolha.

P.S. Está latente, na nossa divergência, a minha defesa da "satisfação" do espectador e a opção da Inês por «dar-lhe armas, criar-lhe dúvidas (...), fazê-lo sair da cadeira, indignado, fazê-lo sair, reagir». Devemos levar este antagonismo à letra? Eu falo de uma satisfação relativa. E a indignação até onde poderá ir?

2 comments:

ISD said...
Os nomes das coisas... Notas soltas em jeito de contra-resposta

* Quando se diz que é preciso ter a coragem de programar (ou selecionar?) e faltando, como foi dito, esse acto de programação no PANORAMA, percebo que o que quer ser dito é que faltou coragem à organização. Cobarde é aquele a quem falta coragem.

* A seca de ver maus filmes é trabalho de programador e não de espectador. Não faltará a especificação: programador de festival? Uma Mostra tem um cariz diferente, não tem os objectivos de um festival, tem outros. E apesar de não apontarem no sentido do marketing são importantes e necessários. Parece-me imprescindível existir uma Mostra como o PANORAMA, onde é possível ver fronteiras e contornos, e não só o campo fechado e arrumado, objecto final de uma escolha.

* Aficcionados são os que vão ao Futebol, convertidos os que vão à Igreja. Não vejo que a Videoteca tenha que escolher entre seja o que for...

* Sentimos satisfação depois de comer uma boa refeição, nem muito leve, nem muito pesada, boa. Pois, não sei se gosto da ideia de um espectador satisfeito. Mas também não o pretendo apenas indignado. Talvez fosse mais correcto sublinhar a ideia de reacção. O que me assusta é que se engulam filmes por aquilo que é dito sobre eles, sem mastigar, sem saborear. Esse engulir resulta em espectadores satisfeitos, sim. Mas não será importante um sítio para criar espectadores capazes de efectuar as suas próprias escolhas, descobrir por eles próprios coisas novas e boas, ou coisas intragáveis que os fazem sair da sala? O que digo é que tem de exisitir esse lugar aberto, onde a programação assenta numa organização, numa combinação para melhor servir a possibilidade dessa escolha, dessa discussão, dessa descoberta em relação (e da relação). O PANORAMA pareceu-me revelar a necessidade desse sítio (apesar das pessoas que sairam indignadas da sala). Pareceu-me existir uma boa resposta ao desafio lançado... mas claro, não meço a boa resposta matematicamente.

16/2/06 12:53 PM

LA said...
Notas soltas, em jeito de conversa... e para afinar o nome das coisas (evitando agora as metáforas):

* eu creio que houve um acto de programação, mesmo não havendo selecção, o que aliás foi bem defendido pela Madalena M.; essa programação foi boa, apenas foi questionada a ausência de selecção;

* uma mostra ou um festival é praticamente a mesma coisa do ponto de vista do espectador que vai ver filmes a uma sala; poderão ser conceitos diferentes de programação, concordo;

* mas então, tal como estava a faltar uma mostra de tudo, está ainda a faltar um festival de documentário português que faça jus aos filmes e aos que os fazem;

* a ideia de "fazer jus" implicará, parece-me, uma selecção dos que merecem ser vistos por alguma razão;

* por outro lado, a ideia de que o público engole os filmes conforme o que ouve dizer deles não é muito exacta: no Doclisboa - onde a selecção é mais um critério de exclusão, logo, injusto - muita gente saiu indignada com os filmes seleccionados;

* um programador tem sempre que pensar no público, pois este é o seu interlocutor;

* o público é sempre heterógeneo e tem muitas razões diferentes para gostar ou não;

* o programador é que tem que ser coerente e defender o seu trabalho junto do público;

* por vício (talvez) da sociedade do espectáculo, o público mede-se em número, não em comportamentos nem reacções;

* depois há um público especializado (aquele que vai aos debates);

* o programador tem lidar com esses números tanto como com as reacções do público especializado...

16/2/06 3:21 PM

12 fevereiro 2006

Panorâmica

O debate final sobre os documentários portugueses apresentados no Panorama foi muito interessante, longo e sumarento. José Manuel Costa - cujas reservas acerca da “panóplia de obras audiovisuais que se sustentam só do seu assunto” já vinham expressas no catálogo da mostra - levantou o problema que ocupou a maior parte do tempo de debate: a questão da qualidade das obras e da não existência de um critério de selecção.

O boom tecnológico e criativo dos últimos anos – que se tem manifestado por níveis de produção, conceptualização e amadurecimento muito diversos, incluindo filmes de escola, filmes institucionais e registos muito diferentes – mostra que não podem todos caber no mesmo saco. Será preciso definir um limite, um crivo, para o que se aceita como sendo documentário?

JMC explicou que a dificuldade de delimitar o que é documentário (embora para algumas pessoas seja ainda recente) é já uma discussão antiga. Documentário não é toda a não-ficção. Desde os anos 20 e 30, sempre houve outras coisas: documentário científico, didáctico, institucional, com bons acabamentos, com alguma eficácia... Mas o que o atrai no campo do documentário é a ambição de construção, não só estética, não só de entretenimento; nunca houve, aliás, documentário puramente lúdico; e nas zonas não artísticas do documentário houve outras influências. Vale a pena identificar esse território sem criar fronteiras estanques, e tendo atenção a outras coisas que não são bem documentário mas que trazem novidades.

Quanto à questão de os filmes serem objecto de uma selecção, JMC referiu que o DocLisboa e o Doc’s Kingdom (Serpa) já são muito selectivos; mas a ideia de que tudo vai poder passar num festival é utopia: quanto mais se abre o leque mais coisas ficam de lado. Na sua perspectiva, o futuro do Panorama será “assumir a selecção e dar a cara por isso”. E continuou: “Surpreende-me encontrar filmes que têm um acabamento que parece ignorar completamente a história” (do cinema). Por exemplo, o comentário em off, a entrevista para a câmara; as pessoas que os usam estão a fazer tábua rasa de uma história. JMC acrescentou ainda: “gosto muito do documentário observacional, mas longe de mim dizer que não é interessante de houver comentário off ou entrevistas”. O mais importante na história do documentário é ter balizas abertas, olhar o outro.

O papel do documentário na história do cinema sempre foi ir contra as convenções. Hoje temos que estar atentos, pois a televisão criou novas convenções que impõem um empobrecimento da linguagem do documentário – parece que estamos a recuar décadas. É preciso haver consciência de que o documentário tem uma história – que só faz sentido se formos capazes de continuar a inventar. E deu como exemplo o filme “O Encontro” de Luciana Fina, onde encontrou uma vontade de reinventar o dispositivo que é o falar para a câmara.

Uma segunda questão levantada por JMC foi que: não apareceu, nesta mostra, uma vertente que se cruza com o território documental e onde se passam coisas interessantes – a área das instalações e das intervenções da imagem no espaço artístico plástico - em sobreposição com o terreno do documentário e desafiando a história do cinema.

Uma terceira questão ainda, pelo lado mais positivo (do documentário mais rico), é mais difícil e mais injusta de analisar: parece-lhe que, nos melhores exemplos, está a faltar um fôlego no documentário; questões de produção ou não? “Quando gosto muito falta-me sempre alguma coisa, sabe-me a pouco.” Interessam-no os filmes humanamente ricos, com um fluxo que reúne parcelas, mas - não que tivessem de ser mais longos – sente que era preciso haver mais fôlego, material para algo mais vasto, mergulhar com mais profundidade naquelas figuras. E terminou com a pergunta: “o documentário português está demasiado económico – porquê?”

Graça Castanheira expressou também dúvidas acerca da suposta democraticidade da total abertura da mostra, achando que é preciso haver critérios. “A ausência de critérios é mais anarquia que democracia”. Com os computadores toda a gente acha que consegue fazer filmes, mas o documentário é “uma disciplina com método, gramática, uma história”. Porque faltará ímpeto, grandeza? Talvez porque falta formação e uma cultura do documentário, um certo profissionalismo que se afaste do documentário naif. As portas abertas do documentário falam uma linguagem muito específica que é a do cinema. Há filmes indigentes – mal acabados ou com uma linguagem de tv - que afastam as pessoas e são contraproducentes.

Catarina Mourão perguntou então: Porquê estes resultados? Um certo desequilíbrio, filmes mal acabados, filmes de tv, institucionais – todos são um espelho da produção actual. Isto é que é preciso analisar, e esta é a oportunidade de o fazer. Por outro lado, o boom de produção não tem sido acompanhado pelo ICAM nem pelas televisões. E só lentamente se vem fazendo formação em documentário.

Manuel Mozos acrescentou que o mais complicado é divulgar o que se faz; por isso é necessário haver um espaço para divulgação, onde se possa conhecer o que se faz, com seus defeitos e qualidades, para então se discutir o que é válido ou não. As televisões fazem pressão sobre como se deve fazer um documentário: não há liberdade. Assim, é importante haver espaço para os filmes, mesmo sendo mais amadores.

Madalena Miranda, da organização do Panorama, explicou a “necessidade de arrumar a casa: já não é possível continuar a olhar apenas para aquilo que nós gostaríamos que fosse o documentário”. A persistência de um meio profissional que continua a existir pede um espaço onde se possa olhar para tudo ao mesmo nível – com a mesma generosidade e disponibilidade – para conhecer o que existe e porquê. Foi isso que levou a criar grupos de filmes, jogos de equilíbrio e debates, que conseguiram levantar questões sobre o cinema a partir de como os diferentes filmes olham e falam da realidade. “Acredito que o documentário deve ser empenhado socialmente, mesmo que seja uma forma de arte cinematográfica”. A ideia é criar mais dúvidas. Por isso, o programa assentou numa organização dos espaços de debate e não numa selecção.

António Cunha, defendendo a abertura não-selectiva que é apanágio das mostras da Videoteca (de que é director), interrogou: “Que critérios? O gosto das pessoas, modas, a história?”

Miguel Gaspar, contrapôs, dando o exemplo da sessão de abertura, em que a mistura de filmes de Manuel de Oliveira com filmes de escola fora penosa, e disse que distinguir os filmes com uma qualidade técnica mínima seria ter um mínimo de respeito por quem ali está sentado.

Luciana Fina sugeriu que, além de “arrumar a casa”, seria bom “arrumar também as ideias”, levando à necessidade de um critério assumido – não um critério técnico, mas um critério sobre a escrita em cinema.

Graça Castanheira defendeu que “qualquer artista tem de lutar por uma certa qualidade, até atingir parâmetros consensuais: critérios de identidade do documentário. A unidade mínima de trabalho em documentário, como em cinema, é o plano. A reportagem, pelo contrário, assenta na palavra. Há certos critérios que é preciso discutir, por respeito pelo espectador.

Miguel Ribeiro, autor de um filme de escola, defendeu a abertura do Panorama, único espaço onde se pode mostrar o que se faz.

José Manuel Costa voltou a reclamar que se assumam as escolhas e que elas sejam ditas. “Mas não se pode cair na definição do que seja documentário. A melhor definição é aquela que Joris Ivens deu: o documentário é uma terra de ninguém entre a reportagem e a ficção. Assim, não podemos dizer o que é que vai ser. O critério da identidade dos géneros assusta-me”. Mas poderá haver critérios que mudem de ano para ano; não apenas um olhar de programador, mas vários. Sugeriu também que, no próximo ano se exibam, em espaços alternativos, outras formas fílmicas: instalações, objectos, videoarte.

Referiu ainda a importância de um debate sobre o que é o ensino do documentário. Mas ressalvando que ser autodidacta não é ser ignorante; a maior parte dos cineastas históricos foram autodidactas. Por outro lado, o ensino do documentário vocacionado para o “cinema directo”, aquele que é feito pelo método dos Ateliers Varan (nos cursos da Gulbenkian), parece excessivamente normativo, impondo regras sobre o que se pode e não pode fazer. O documentário é o espaço do ensino onde tem de haver menos regras.

Também concordei que o documentário deve manter-se um campo de liberdade e descoberta, longe de especificações formais e de género que se queiram fazer. Mas acho necessário haver critérios que salvem o espectador de apanhar uma irritação profunda e uma dor de cabeça. É que ver maus filmes faz realmente mal à saúde. Tentando conciliar posições, sugeri que, como acontece em tantos festivais no mundo, se criassem secções para acolher diferentes tipos de obras: filmes de escola, documentários de televisão, etc. No entanto, esta ideia não foi muito bem recebida... No calor da discussão esqueci-me de tomar notas e já não me lembro do que mais foi dito. É difícil tentar traduzir as opiniões ali desenvolvidas. As que aqui coligi (a partir das notas que tomei, algumas já ilegíveis) espero que não fujam tanto ao espírito como à letra.

08 fevereiro 2006

À procura do filme


No debate sobre a secção Filmes sobre filmes do Panorama, dois dos realizadores disseram não ter a certeza se os seus filmes eram realmente sobre filmes. Mas, sem dúvida, são filmes à procura do filme.

Malmequer bem-me-quer, ou o diário de uma encomenda, de Catarina Mourão, é um desabafo, relatado em off na primeira pessoa, sobre a impossibilidade de fazer o filme que queria: ora porque os azares se somavam e as personagens não tinham assim tanto que oferecer, ora porque a censura do canal de tv produtor (ARTE) impunha regras e manipulava a versão final, retirando autonomia à realizadora. Uma pressão deste género, intolerável para um autor, só podia levar à rejeição desse sistema de controle que trata o filme como um qualquer produto de consumo e não uma forma de expressão. Esta revolta é o motivo central do documentário, que se assume como um filme que não chegou a ser, pondo todas as suas fragilidades em evidência e instalando no espectador outras dúvidas sobre a validade da proposta (uma abordagem em mosaico de temas relativos à juventude portuguesa) e o interesse das personagens encontradas.

Em Buenos Aires, Hora Zero, José Barahona parte à procura de um (antigo) emigrante português na capital argentina. A voz off na primeira pessoa dá-nos conta dessa procura e a aparição discreta do realizador suporta-a com coerência. Para Margarida Cardoso, comentadora no debate, a presença visual do autor podia ter sido um dispositivo mais assumido; mas ele próprio disse que pensou antes em reforçar a presença subjectiva do comentário off; para mim, o comentário era quase dispensável, e o filme aguentar-se-ia como uma procura, menos explícita verbalmente, mas visualmente nítida, atrás de um personagem que não chega a ser encontrado, mas através do qual surgem outras figuras fortes, expressivas - e nasce uma visão de uma cidade longínqua através das vozes que a habitam. Este é um filme-deriva, que procura uma coisa e encontra outras. O realizador também explicou que o motivo do emigrante visava preencher o requisito de um tema minimamente relacionado com a origem portuguesa do financiamento. Esse compromisso, afinal, parece-me a única fragilidade do filme, mas acabou por resultar numa conversa sobre o papel da primeira pessoa nos filmes.

Bubbles, 40 anos à procura de sabe-se lá o quê, de Helena Lopes e Paulo Nuno Lopes, apresenta-se como uma tentativa de dar sentido à manta de retalhos da vida dos dois realizadores. Estruturado sobre um diálogo escrito, as duas vozes off na primeira pessoa conduzem-nos numa busca por saber onde está a felicidade. Ao longo de muitos anos, de viagens em vários continentes, de descobertas e encontros - documentados com fotografias e fragmentos de filmes, num condensado de percepções, memórias e desejos - seguimos este casal à deriva. O filme é um balanço de uma vida de peripécias e indecisões, até que – porque a felicidade nunca está onde a procuramos – o sentido do filme, que aqui é o sentido da vida, é encontrado com o nascimento do primeiro filho.

Quando um realizador se expõe em pessoa na obra, temos que admirar a sua coragem, mas é difícil não interrogar o seu narcisismo. O jogo da auto-reflexividade não é nada fácil, é talvez o mais arriscado, e a sua vulnerabilidade obriga-nos a ser mais cautelosos no criticismo. Em contraste com aquela exposição ponderada, surpreendeu-me ver (nos debates) a petulância de alguns realizadores novatos - os que ainda acham que fazer filmes é fácil (e são autores de obras indigentes). Aqueles que já aprenderam como é incerta a tarefa, têm mais dúvidas e pouca jactância; têm mais prudência ou modéstia (por muito que o seu ego seja tão grande como todos os demais).

06 fevereiro 2006

Visões


Quando se é realizador, por vezes é difícil ver filmes alheios sem pensar logo: fazia isto de outra maneira, trocava os planos na montagem, começava o filme por aqui, etc. Quando os filmes que vemos são dos nossos colegas próximos, creio que o criticismo é ainda mais acentuado. É a chamada deformação profissional. Não há como evitá-lo, é da nossa natureza.

Um realizador, por inerência, tem sempre uma visão diferente da dos outros. Tem uma urgência própria de fazer, pensar, moldar, ler e escrever filmes que o impede de aceitar passivamente qualquer filme. Quer apropriar-se dele, mas muitas vezes ele não deixa, porque não nos satisfaz. Outras vezes, consegue agarrar-nos, vence resistências, impõe a sua visão. Aí agradeço ao (outro) realizador ter conseguido emocionar-me ou ter-me levado a uma outra dimensão. Tive acesso a uma experiência nova.

Porém, há dias em que não podemos ver nada. Todas as imagens que nos assaltam vêm perturbar um mundo que andamos a construir, uma visão que procuramos sonhar, um olhar sobre o real que seja uma descoberta, que não caia na vulgaridade, que não pertença aos outros, que nasça em nós.

Por um lado, somos os melhores espectadores que há, hipersensíveis e conscientes, por outro, devemos ser os piores: exigentes, obcecados, caprichosos.

(Foto de Se podes olhar vê, se podes ver repara, de Rui Simões)

02 fevereiro 2006

Afazeres



O filmes que ontem passaram no Panorama, dentro da secção A Fazer, retratavam situações de trabalho, mas, como disse Eduarda Dionísio no debate final, eram filmes tão diferentes que não poderia dizer-se que formassem um conjunto. Desde a duração às intenções, passando pelas actividades filmadas, tudo neles difere. E mesmo a maneira de serem feitos é totalmente diversa, em estilo, propósitos, técnicas. É caso para perguntar que sentido fará cotejar filmes cujas propostas tão díspares dificilmente são comparáveis.

Madalena Miranda, responsável pela programação da mostra, explicou que havia a expectativa de que surgissem filmes centrados no trabalho e no trabalhador, “figura mítica”. No entanto, o que apareceu, na maioria dos casos, são filmes mais atentos ao “gesto” e onde não estão evidentes os aspectos político-sociais. Assim, relativamente à questão laboral, o panorama do documentário é “rarefeito, heterogéneo”. Assuntos actuais ligados ao trabalho - questões eminentemente políticas como os despedimentos ou o trabalho precário - não têm grande expressão no documentário recente em Portugal. O que não invalida um outro olhar, tendencialmente mais poético que político. Mas daqui resulta uma lacuna – que persistirá como ausência testemunhal.

Assim a questão do político saltou de boca em boca. Rita Bonifácio, autora de um filme escolar – Contornos - sobre os vidreiros da Marinha Grande, explicou a sua opção por um “filme visual” em que não quisera “problematizar nada”: não quis, por exemplo, mostrar que os operários bebem 8 litros de água num dia, ou que estão sujeitos a trabalho precário. Mas defendeu que esta é também uma posição política - a opção feita por um filme artístico. Para RB, fazer cinema corresponde a uma necessidade. O processo criativo deve partir de quem faz os filmes e afirmar-se independentemente das condições financeiras disponíveis ou da receptividade aos filmes. Ana, na plateia, acrescentou que a própria natureza dos filmes é também política. A câmara é hoje como uma caneta, reforçou ED, um instrumento de expressão livre. Assim se falou do a fazer dos filmes.

Para MM o cerne da questão será: onde é que no gesto está o político. O que leva a repensar a ideia de trabalho em confronto com a pequena escala. Quando o trabalho – campo do político, por excelência - é visto através de um olhar poético ou pessoal, torna-se apolítico? Não necessariamente, mas isso depende das suas implicações. Para mim, é político aquilo que reflecte, pensa, age, organiza, incomoda áreas que dependem de regulações do colectivo (haver água para todos beberem, por exemplo) ou de normas sociais (um contrato de trabalho, mesmo inexistente). A política é o processo pelo qual se resolvem os problemas colectivos. Por vezes, o pessoal é político, mas não sempre. No entanto, o político é sempre pessoal.