26 agosto 2007

Verão quente



Vale a pena não perder Torre Bela (1977) em versão de ecrã (uma versão mais curta existe em DVD editada pelo Público nos 30 anos do 25 de Abril). Este documentário foi filmado ao longo de 8 meses, desde 23 de Abril de 1975, data em que os trabalhadores locais ocuparam esta herdade ribatejana (e reporta-se até 1 de Dezembro de 1975, segundo legenda inscrita no final do filme, ao fim de 500 e tal dias, incoerência que não consigo verificar...).

A especial virtude deste filme, segundo tem sido dito e reforçado, está numa atitude observacional que interfere o menos possível com o real a acontecer e o traduz na sua vivacidade autêntica e irrepetível. (Aquilo a que se chama cinema directo, ou documentário de observação, onde não há uma voz tutorial a explicar e a dar sentido ao que vemos.) Esse olhar directo dar-nos-ia uma perspectiva da revolução popular isenta de mensagens ideológicas e substancialmente diferente dos documentários portugueses de então, demasiado militantes, onde se incluirá, suponho, um outro filme intitulado Cooperativa Agrícola Torre Bela (1975), de Luís Galvão Teles. Seria interessante comparar um e outro. Mas também houve outros filmes feitos no modo directo, e por isso importa relembrar alguns que talvez sejam os poucos: Continuar a Viver (1976) de António da Cunha Telles, Barronhos (1976) de Luís Filipe Rocha, ou Terra de Abril (1977) de Pierre Costantini e Anna Glogowsky (também editado em DVD pelo Público).

O modo revelador com que o documentário do alemão Thomas Harlan nos serve a realidade a quente, aproxima-nos daquelas pessoas e estabelece uma espécie de pacto de realização – que é um pacto de respeito por elas, mesmo por aquelas de quem não gosta, como o proprietário das quintas, o impertigado duque de Lafões. Este personagem do antigo regime apenas aparece no início, mas servirá de contraponto ao longo do filme para os excessos da população pobre e reivindicativa.

Todavia, o documentário não é assim tão objectivo como aparenta. É que se, por um lado, nos dá a ver mais do que esperávamos, por outro, não preenche uma série de lacunas que o espectador pode sentir, à medida que a ocupação das terras dura. Por exemplo, não chega a perceber-se como se organiza o trabalho das pessoas (se se organiza de facto), se ocupam o palácio e lá dormem, onde e quantos, ou que destino deram aos livros retirados das estantes e empilhados às dezenas, de onde vêm e voltam aquelas multidões que acorrem aos comícios aparentemente improvisados, e como percorrem os quilómetros de estradas que inicialmente vimos de helicóptero, que contactos houve afinal entre os trabalhadores e os patrões, apenas referidos mas não apresentados enquanto resoluções – todas estas são algumas das dúvidas que o filme não esclarece. Podemos perguntar-nos, naturalmente, se estas lacunas, na nossa compreensão dos acontecimentos, decorrem da falta de material – é compreensível que durante ano e meio (??) não estivesse sempre a câmara presente – ou de uma opção do realizador na mesa de montagem. As duas razões provavelmente: a montagem superando pelas suas opções ideológicas as lacunas da filmagem, como em todos os documentários, aliás.

Clarificando as suas opções, o documentário centra-se sobretudo em situações de interacção e elas parecem escolhidas e encadeadas segundo uma curva sinusoidal que faz suceder às situações de caos, situações organizativas, a estas sucedendo de novo o conflito. Neste conjunto, o realizador mostra uma atenção selectiva aos processos colectivos, mais do que ao conteúdo das suas discussões. Esta opção nem é difícil de compreender se observarmos como o homem da câmara (Russel Parker) filma quase sempre em plano-sequência e tenta captar as várias acções em jogo e os vários debates simultâneos. Ele, estrangeiro, que não podia entender o que as pessoas diziam, filma segundo os gestos e as interacções físicas. Mesmo nós, espectadores lusófonos, teremos dificuldade em acompanhar o que os protagonistas dizem, mas não teremos dificuldade em seguir as emoções e as intervenções – porque a isso estava muito atento o excelente cameraman. Para mim, este é um filme acerca dos processos de organização e conflitualidade humanos – e sobre a aprendizagem in loco da democracia e da cooperação – e não sobre a selvajaria do PREC ou os atentados à propriedade privada, que alguns facilmente deduzem. Dar a cada espectador a possibilidade de ler o filme à sua maneira é o mérito da realização, pois.

Porém, 30 anos passaram, e o ridículo daquele representante da aristocracia é suplantado pelo ridículo dos camponeses iletrados – que hoje, sim, fazem rir as plateias do cinema King, como se esconjurassem o passado rindo-se dos seus antepassados recentes ou das próprias memórias. Quando o homem da enxada não percebe o que é uma “comprativa”, dispara o riso pronto do burguês satisfeito, sem se dar à reflexão sobre as tensões entre o individual e o colectivo que ali se exprimem contraditoriamente. Quando um militar diz: “ocupem primeiro, depois virá a lei”, riem-se os bem-pensantes da sala, os que superiormente sabem que isso é uma estupidez, que primeiro tem que vir a lei. A esses faltava pôr a velha pergunta: onde estavam quando foi o (pós) 25 de Abril? E no escuro do seu anonimato, os cínicos rejubilam.

O que faz delirar o público do documentário – que é um público que nasceu na última década – é geralmente dar umas boas risadas à conta dos ridículos dos seus semelhantes, que lhes parecem tão diferentes. Uma espécie de reacção primitiva, desopilante e irreprimível. É a risota alarve de quem gosta de ver apanhados na televisão e com isso sai satisfeito da sala. O que era uma atitude, da parte do realizador, essencialmente de aproximação e compreensão do outro transmuda-se numa espécie de afastamento satírico por intolerância.