31 março 2007

Ante-estreia

do documentário Grandes Esperanças de Miguel Marques,
no dia 3 de Abril, terça-feira, às 21h30, na Cinemateca.



Este documentário é o resultado de um mês de filmagens contínuas na Loja do Cidadão do Porto. Entrar nos meandros da burocracia já é uma aventura q.b. cómica. Mas este filme dá-nos uma visão de conjunto única dos mecanismos de legitimação do indivíduo perante o estado, mostrando como toda a nossa existência depende, do nascimento à morte, da Instituição que organiza a vida em sociedade e que aqui aparece exposta num somatório de casos individuais que, em conjunto, tomam uma dimensão abstracta e coerciva. E só lhe vemos a ponta do icebergue.

É o retrato de um sistema, onde todos nos reconhecemos, pelo qual existimos. Mas também é um filme simplesmente humanista, focado nas dificuldades do indivíduo em defrontar as leis a que não pode fugir. É um filme revelador como uma esponja impregnada de sabão ideológico. É um filme radical, nos meios, no ponto de vista e nas ilações. Não percam, porque pode ser uma oportunidade única...

27 março 2007

Salazar e os coronéis



Cortes da Comissão de Censura enviados por telegrama telefonado para o Jornal de Notícias:

«28/4/68. "Aniversário do presidente do Conselho. Não dizer que completou 79 anos. Major Tártaro."

4/5/68. "Serviço religioso por alma de Luther King, no templo de Santa Isabel, em Lisboa - CORTAR. Crítica do filme 'Os Corruptos' - não fazer referência a Macau. Tenente Teixeira."

12/5/68. "Notícia do Agora de que o Dr. Mário Soares foi nomeado director-delegado da CUF na Ilha de S. Tomé - CORTAR. Dr. Ornelas."

18/5/68. "Reunião da Liga Popular Monárquica em Macedo de Cavaleiros - CORTAR a designação de 'Popular'. Tenente Teixeira."

26/5/68. "Nada de comentários desagradáveis para o general De Gaulle. Coronel Saraiva."

28/5/68. "O Dr Mário Neves fez uma conferência no Rotary Clube - CORTAR: "falta de uma Escola de Jornalismo e dificuldades que os jornalistas encontram."

31/5/68. "Circular,assinada pelo vice-presidente da Censura, Dr. Alberto Alexandre P. de Ornelas: «Todos os artigos ou simples noticiários referentes a Campismo e campos de Campismo devem ser previamente enviados a este Comissão de Censura.»

4/6/68. "Não publicar fotos da viúva de Luther King e do estudante francês Cohen. Coronel Roma Torres."

6/6/68. "Coisas agressivas ou desprimorosas para os Estados Unidos - CORTAR. Tenente Teixeira." "O bispo de Carmona, D. Francisco Mata Mourisca, efectuou, na sede da UCDT, em Lisboa, uma conferência sobre o 3º congresso de Apostolado dos Leigos - CORTAR TUDO. No final do espectáculo de bailados, no Coliseu dos Recreios de Lisboa, Maurice Béjard pediu 1 minuto de silêncio pela morte de Bob Kennedy e fez considerações que o público aplaudiu - CORTAR TUDO. Coronel Saraiva."

9/6/68. Expulsão do bailarino e coreógrafo francês Maurice Béjard. Publicar, na íntegra, obrigatoriamente, a nota do SNI sobre o caso Béjard. Não fazer comentários. Nota da Guilbenkian pode sair, mas sem comentários - CORTAR ter sido suspensa a recepção que a Gulbenkian oferecia, no Castelo de S. Jorge, aos artistas da Companhia de Béjard e do Royal Ballet. Coronel Roma Torres."

3/7/68. Crise da batata e do vinho, em Oliveira do Bairro e Oliveira do Hospital - CORTAR. Tudo quanto se refira à OPUS DEI - CORTAR. Coronel Saraiva."

9/7/68. "Não dizer, em título, que Pompidou foi afastado da chefia do Governo. Major Tártaro."

17/7/68. "Português, desertor da armada, condenado à morte na Austrália. NADA. Tenente Teixeira."

19/7/68. "Está a ser julgado em Bona um antigo nazi. Foi dito no Tribunal que também devia estar ali, no banco dos réus, o actual embaixador da Alemanha em Lisboa - CORTAR TUDO. Coronel Saraiva."

20/7/68. "Preso em Celorico de Basto o delegado do procurador da república - CORTAR. Capitão Correia de Barros."

21/7/68. "Anúncio da fábrica de Coina sobre a exportação de 1 milhão de gabardines. Não dizer que vão para Rússia. Capitão Correia de Barros."

30/7/68. "Em Soutelo, uma rapariga suicidou-se depois do namorado ter seguido para Angola, mobilizado. Não falar na ida para Angola. Tenente Teixeira."

31/7/68. "Jantar oferecido pelo ministro da Economia a criadores de gado do Alentejo - CORTAR. Dr. Ornelas."

6/8/68 (23,10). "Forças rodesianas ou sul-africanas (passagem pelo nosso território) - CORTAR. Capitão Correia de Barros."

9/8/68 (22,45). "Festival Mundial de Teatro, em Nancy - CORTAR. Capitão Correia de Barros."

20/8/68 (23,25). "Transferência dos moradores do Bairro de Xangai. Não usar a expressão "bairro de lata", por causa dos estrangeiros. Coronel Saraiva."

22/8/68 (23,20). "Sobre a Checoslováquia pode dar-se tudo o que esteja autorizado. Podem publicar-se os títulos que se desejem, mas NADA de títulos agressivos ou depreciativos para a Checoslováquia. Coronel Roma Torres."

24/8/68 (23,10). "Lembramos mais uma vez que nenhuma referência pode sair ao livro de D. Hélder da Câmara. É TUDO para CORTAR. Dr. Ornelas."

28/8/68 (23,40). "Presos dois gatunos em Lisboa. Não dizer que os roubados eram turistas. Capitão Correia de Barros."

29/8/68 (23,40). Ciganos vendiam chá por whisky. Não dizer que os polícias andavam vestidos de fato-macaco. Dr. Ornelas."

2/9/68 (23,10). "Caiu muito mal a publicação, na 1ª página, dos hippies na Praia da Circunvalação. Major Tártaro."

4/9/68. "Festa dos milionários. Não mencionar a presença de membros do Governo e dos presidentes da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa. Pode-se falar de outras individualidades, mas sem aludir às funções que desempenham. Capitão Correia de Barros."

4/9/68. Circular 26/1968: "Todos os artigos ou simples noticiário relativos a algas marinhas devem ser enviados a estes Serviços para a sua apreciação.
A Bem na Nação,
Pelo vice-presidente da Direcção dos Serviços de Censura, António Pinheiro."

7/9/68. "Chegada a Portugal do médico alemão Dr. Fulkner - CORTAR. Capitão Correia de Barros."

8/9/68. "Dr. Salazar. Pode-se falar nas missas e na operação de urgência. Coronel Saraiva."

9/9/68 (23,15). "Não dizer que o estado de saúde do presidente do Conselho é estacionário. Técnico permanente para evitar avarias nos elevadores do Hospital - CORTAR. Uma entidade qualquer terá oferecido a Salazar duas dúzias de peras e um melão - CORTAR. Coronel Saraiva."
10/9/68. "Salazar: grupo da TV italiana. Não dizer que veio a Lisboa por causa da doença do Chefe do Governo. CORTAR a frase: "Está melhor do que nunca". Alimentação servida em tabuleiro especial - CORTAR. Medicamento vindo do estrangeiro através da TAP - CORTAR. Frase do ministro da Economia: "Não há lugar para interinidade" - CORTAR. Localização do quarto - CORTAR. Declarações da governanta D. Maria - CORTAR. Não dizer que há um médico de serviço durante a noite. Major Tártaro."

14/9/68. "Na Candeia-Bar foi preso um rapazola, que ali praticou distúrbios. Não dizer que regressou há pouco do Ultramar. Capitão Correia de Barros."

21/9/68. "O casal Patiño foi ao Hospital da Cruz Vermelha. Não falar da cor do automóvel nem do vestido da senhora. Reorganização da indústria dos lacticínios da Madeira - não falar em monopólio. Tenente Teixeira."

22/9/68. "Salazar. O título da 1ª página deve ser alterado. Em vez de continua a ser grave o estado de saúde do prof. Salazar, dizer que se mantém estacionário. Major Tártaro."

23/9/68 (23,30). "Concurso do Rei da Rádio, organizado pelo Diário de Lisboa - CORTAR. Revezamentos no Hospital da Cruz Vermelha - CORTAR. Vendedor ambulante teria prometido ir a Fátima a pé, caso Salazar se cure - CORTAR. Coronel Saraiva."

29/9/68. "Declaração do Dr. Marcelo Caetano aos jornais - CORTAR. Coronel Roma Torres." "Expulsão de dois jornalistas suecos - CORTAR. Major Tártaro."»

Retirado de Os Segredos da Censura, por César Príncipe, ed. Caminho, 1979
Foto: Salazar no caixão, imagem retirada do filme Brandos Costumes (1974) de Alberto Seixas Santos

24 março 2007

Século XXI



Ainda à espera de uma base de dados do cinema português, deixo aqui os links para os actuais arquivos parcelares e complementares:

Internet Movie Data Base: http://www.imdb.com/

Cinema Português (listagens) no Instituto Camões: http://www.instituto-camoes.pt/cvc/cinema/index.html

Teatro em Portugal: http://www.fl.ul.pt/CETbase/default.htm

Música editada, na Fonoteca de Lisboa: http://fonoteca.cm-lisboa.pt/cgi-bin/pesquisa.pl?lg=0

Filmes na Videoteca de Lisboa: http://www.videotecalisboa.org/quiosque/site/index.php

Catálogo do ICAM: http://www.icam.pt/

Apesar de tudo, já existiu uma base de dados de Cinema Português(www.cinemaportugues.net/cinema/) que entretanto desapareceu da web e de que durante algum tempo ainda ficou rasto na cache do Google, mas agora apenas pode ser referenciado através do Tomba. O que lhe terá acontecido?

13 março 2007

Há 35 anos



« -Tal como se encontra legislado, que perspectivas abre a nova lei de cinema?

- Há muita coisa com que não estou de acordo, como todos nós, evidentemente. Mas o que mais choca é verificar que a Lei irá proteger mais as entidades exploradoras do cinema do que aqueles que afinal o produzem. A abertura e preferência dada às co-produções parece-me também - digam o que disserem todos aqueles que no cinema apenas vêem interesses comerciais - o mais clamoroso atentado à concretização dum cinema nacional com personalidade própria. Fala-se de estruturas, infra-estruturas e mais quejandas coisas, apenas para camuflar desígnios inconfessáveis que todos bem conhecemos, conscientes como estamos de que Portugal nunca poderá ser uma oficina de cinema enlatado para consumo universal. Nem isso nos interessava nada!

Mas, não nos trará algumas coisas boas a nova Lei? Pois concerteza que sim. Se ela for cumprida nessas alíneas. Mas a melhor ajuda que ela nos poderia dar - arrisco! - seria a de construir dois cinemas, um em Lisboa e outro no Porto, para estreia dos nossos filmes, livre de taxas de exibição e distribuição, que nos levam quase a totalidade das receitas nos dois maiores centros de rentabilidade, o que quase sempre impossibilita a recuperação dos capitais investidos. Os filmes - sem discriminação - seriam ali estreados pela ordem do seu acabamento e estariam no cartaz o tempo que o público entendesse. Às salas, administradas pelo Instituto, poderia dar-se os nomes de "Paz dos Reis" no Porto e - porque não - "Leitão de Barros", em Lisboa. Quando não houvesse filmes para estrear, fazer-se-iam reposições e retrospectivas. Isso era ajudar o cinema português e dignificá-lo. (...) »

Excerto de uma entrevista a Manuel Guimarães, no Diário de Lisboa, em 1972 (data incerta).

Nota: a lei referida é a lei nº7/71 que cria o IPC, Instituto Português de Cinema, actual ICAM.
Foto: Vilarinho das Furnas, documentário de António Campos, 1971.

11 março 2007

Há 50 anos (4)



«Estrelas e bolas pretas
O critério de Roberto Nobre

A crítica por meio de bolas e estrelas foi inventada pelos Norte-Americanos como um meio prático, rápido e amorfo dos leitores, sem sequer terem o trabalho de ler, acreditarem em que uma película é boa ou má. Ora, o essencial não está na bola preta, está em saber porque foi dada. Confesso que, ao ver algumas bolas pretas de certos colegas na classificação, fico cheio de interesse de assistir aos filmes. Quando alguns não gostam, já eu sei que vou gostar pela certa. Não sucederá o mesmo ao leitor a meu respeito?

Sou dos que desejam um público consciente da razão por que aplaude ou rejeita e não um rebanho que aceita as bolas e as estrelas que eu ou qualquer outro lhe largamos. Esse sistema implica condenações e absolvições peremptórias, como num tribunal, em que o réu é julgado num número de anos, maior ou menor, conforme a culpa que lhe é, ou não, agravada. Em arte não há uma lei fixa e o génio criador torna, por vezes, defeitos em qualidades. Além disso, o sistema veda os sentidos didáctico e cultural que estão implícitos na função da crítica de espectáculos, mesmo quando feita rapidamente em jornais diários.

Em consciência, por mim, não sei, na maioria dos casos, qual a classificação que devo atribuir, pois ela tem de atender, no caso do cinema, a vários aspectos díspares, entre os quais se destacam: o tema, a sua exposição ficcionista, os valores estéticos de arte cinematográfica e o apuro técnico. Uma obra prima será a que reúne tudo isso. Uma película execrável aquela em que nada se salva. Esses pontos extremos são difíceis de indicar. Já não o são os intermédios e estes tornam-se os mais importantes. (...)

Gosto de conversar sobre filmes com o meu semelhante. Não me sinto crítico (ou juiz) de qualquer arte. Gosto de explicar as qualidades e defeitos que encontro. Ao ter de os apontar, esclareço-os perante mim próprio. O leitor, se acaso tem a coragem de me ler, discutirá mentalmente comigo os pontos de vista por mim apontados, que são uma análise e não uma classificação por bitola. Auxiliar o espectador a que examine, levá-lo a isso, julgo ser o necessário na actividade do comentador, pois tal o habituará a não aceitar o cinema como um espectáculo oco que distrai ou aborrece, e sim como uma arte que se compreende e sente, verificando-se intelectivamente o que nela há que nos leve a pensar e a sentir. Nunca, portanto, acharei eficaz um julgamento peremptório por estrelas e pontos negros que, além de ser difícil de fazer em consciência, leva a erros de interpretação por parte do leitor, uma vez que fica a desconhecer os aspectos a que damos ou retiramos o nosso aplauso. (...)

Confesso que não sei esclarecer tudo isto por meio de estrelas e bolas negras. Não vejo nisso mais do que uma curiosidade jornalística para cotejo de opiniões, de modo ao leitor verificar quais são os votos que acertam, ou não, com os seus próprios. É uma espécie de jogo, no qual também entro, quinzenalmente.»

Roberto Nobre, in Diário de Lisboa, 25 de Setembro de 1956

Foto de Moby Dick (1956) de John Huston, com Gregory Peck, filmado parcialmente nos Açores.

08 março 2007

Há 50 anos (3)



«O "Guia do Espectador"
O critério de José-Augusto França

Iniciamos hoje a publicação das notas sobre o critério dos críticos que participam em "O Guia do Espectador", com o depoimento de José Augusto França: (...) Fabricando então produtos de consumo, o cinema sujeita-se ao consumidor, aos seus gostos, ao seu nível médio de cultura. Na América, calculou-se que este nível era igual ao de uma criança de 12 anos, normalmente desenvolvida; (...)

Para o espectador-médio (que em Portugal terá entre 10 e 14 anos de idade mental) se fazem os filmes MEDIOS (**), isto é: os filmes que se subordinam a um esquema de convenções artísticas, psicológicas e morais pequeno-burguesas, procurando entretê-las com maior ou menor habilidade técnica, com mais ou menos espírito. (...) Se a sua habilidade de entretém e o seu espírito alcançam uma certa qualidade, passarei a dizer que são (**+).

Às vezes, porém, e não são poucas, ou o realizador é mentalmente mais novo que o espectador, ou o filme exagera a sua subserviência perante a plateia: lisonjeia o seu esquema mental, rebaixa-o, dá-lhe um produto insuficiente para as suas necessidades tabeladas - [direi] que é um filme MEDIOCRE (*), classificação que prefiro ao escolar "sofrível".

Outras vezes ainda, também numerosas, uma total falta de habilidade, sequer comercial, desconhecimentos, sequer técnicos, de inteligência, sequer formal (ou condições fortuitas de urgência, de encomenda, etc.), reduzem a produção à categoria de filme MAU (.), classificação que será mais clara que "sem interesse" - pois que sem interesse se apresentam também filmes Médios e os Medíocres.

Resumindo: temos só filmes MEDIOS para o espectador-médio e os filmes Inferiores (à média) que podem ser MEDIOCRES ou MAUS - todos estes sem interesse. Os Médios tanto faz vê-los como não. Os Inferiores não devem ser vistos.

No lance oposto da escala, temos os filmes Superiores (à média). São os BONS, os MUITO BONS, as OBRAS-PRIMAS.
BOM (***) será o filme que traduza qualquer inquietação, qualquer invenção, como obra plástica ou como obra de ficção específica. Que se oponha, ou pelo menos ignore o convencionalismo moral, que exponha validamente (isto é, como obra de arte) um problema psicológico ou social, sem o iludir nem fazer divulgação de pequena ciência.

Algumas vezes estas intenções ficam em intenções, são mal efectivadas. Os filmes assim, embora falhados, merecem porém destaque em relação aos Médios - a sua "família" é outra: têm interesse. Bons não são, por falta de qualidade, mas devem ser-lhes emparelhados. Classificá-los-ei então com as 3 estrelinhas dos Bons, mas separarei uma delas por um traço (**/*).

Nos filmes MUITO BONS (****) as qualidades dos Bons avantajam-se. Não há hesitações nem desequilíbrios: são filmes perfeitos, exemplares na história do cinema. São os filmes dos grandes talentos. Ou então são filmes com invenções fulgurantes, que abrem mais janelas do que portas, embora estejam longe de ser perfeitos.

OBRAS-PRIMAS (*) há poucos no Mundo. Nos sessenta anos de idade do cinema, as outras artes não terão dado mais de uma dezena, cada uma. Porque haveria o cinema de dar mais? (...)»

Diário de Lisboa, 19 de Setembro de 1956
Foto: O Pintor e a Cidade (1956) de Manuel de Oliveira

05 março 2007

Há 50 anos (2)



«PROBLEMA ACTUAL
O documentarismo de que precisamos

(...) Daqui a cinquenta anos o estudioso que então tiver a sorte de ter uma cinemateca nacional à sua disposição pedirá documentos da nossa vida, dos nossos problemas, dos anseios da sociedade portuguesa dos anos 50. O empregado dir-lhe-á com ar seráfico: "Não, não temos disso. Nos anos 50 não havia problemas, nem anseios, nem nada. Quer ver?" E mostrar-lhe-á os catálogos. O estudioso ficará rendido. "O que temos, sim, desses tempos são uns bonitos documentários da ilha da Madeira" - acrescentará o funcionário. E o outro, ansioso, lança-se para a moviola à procura da humanidade portuguesa dos anos 50. Mas só encontrará ananases e hortênsias, carros de bois com batata e os pauliteiros de Miranda. (...)»

Eurico da Costa, in Diário de Lisboa, 2 de Outubro de 1956

Foto: SNI, Imagem de Promoção ao Cinema (Col. Cinemateca Portuguesa)

03 março 2007

Há 50 anos (1)



«"Se o menino não for ao cinema, dou-lhe uma nota má!" - dirão os professores quando a Sétima Arte (num futuro próximo) entrar no domínio dos estudos escolares - por MARCEL DANY

Paris, Setembro.
Na aula, o professor disse:
- Aluno Martin: descreva os processos comparados da técnica do cómico de Molière e da de Charlie Chaplin.
O adolescente levantou-se na sua carteira e, de braços cruzados, sem uma hesitação desenvolveu o tema em três pontos.
- Muito bem! - concluiu o professor. - E agora, sr. Durand, fale-me da sugestão de Goethe nos filmes, já clássicos, "Os visitantes do Anoitecer", "A Ronda" e "Margarida da Noite".
Tais perguntas não são ainda habituais nos liceus, mas é fácil adivinhar que brevemente o serão.
O cinema começou por entrar timidamente na escola, como divertimento para os alunos mais jovens, sob a forma de desenhos animados e de "lição de coisas" sob a de documentário. Mas agora a sétima arte, tendo ao mesmo tempo um passado rico e curioso e um presente absorvente, terá um futuro um futuro prodigioso. Quem duvida que tomará um lugar oficial no ensino?
Não estamos perante uma fantasia. Um distinto professor do Liceu Voltaire, de Paris, o dr. Henri Angel, publicou há pouco um livro puramente pedagógico intitulado "Tratado de Iniciação Cinematográfica", com definições, esquemas e notas explicativas que põem o estudante ao corrente do essencial da técnica e da estética do filme. Ao lado das histórias da pintura e da música existe já a "História do Cinema", redigida com toda a seriedade científica.
No exame de bacharelato deste ano (o bacharelato em França corresponde ao diploma do ensino secundário e permite entrada no superior) um dos três temas propostos para a dissertação , prova de redacção francesa, foi o seguinte: "Um escritor contemporâneo afirma ser erro profundo adaptar um romance ao cinema. É dessa opinião?" (...)»

in jornal O Século, 13 de Setembro de 1956

Foto: Vidas sem Rumo (1956) de Manuel Guimarães