26 outubro 2005

Prova Oral


Quem quer fazer um documentário e precisa de arranjar dinheiro para pôr a trabalhar a equipa e o equipamento, tem a possibilidade de concorrer a um pitching – uma espécie de prova oral em que o produtor e/ou o realizador defendem o seu projecto de filme perante um painel de comissários-editores representantes de vários canais de televisão, eventualmente compradores.

Como em qualquer exame, eles devem trazer o discurso na ponta da língua, para aproveitar os 10 ou 15 minutos concedidos, ter resposta pronta para as perguntas que serão feitas e saber justificar sucinta e convincentemente o projecto tanto em termos artísticos, como comunicativos, como financeiros. Pode dizer-se que não é fácil.

Um pitching é afinal uma reunião de pré-venda com exposição pública, a feira do relógio dos documentários, que todos os anos, desde 1998, se realiza em Lisboa organizado pela EDN (European Documentary Network) e a Apordoc. São os Lisbon Docs, geralmente associados ao festival DocLisboa. Este ano estiveram presentes 14 projectos de documentário, 5 dos quais portugueses, e 10 representantes das televisões, a saber: ARTE Thema (França), ZDF/ARTE (Alemanha), AVRO (Holanda), TVC (Espanha), NPS (Holanda), SVT (Suécia), TSR (?), RTP1, RTP 2: e FFF (Finnish Film Foundation).

Por outras palavras, o pitching é um espectáculo organizado como um concurso televisivo, onde há os que são avaliados e há os que opinam sobre as fraquezas e méritos dos filmes candidatos. O jogo seria equilibrado se houvesse da parte dos commissioning editors (representantes das televisões) alguma obrigação. Se trouxessem algum dinheiro para aplicar no filme que mais os interessasse. Se tivessem margem de negociação. Mas não têm. Eles vêm só participar no espectáculo, viajar, ver uns filmes (o trabalho deles é escolher filmes) e dizer sempre o mesmo: “não estou a ver como é que a ideia vai ser posta em prática”; “já temos muitos filmes sobre o Brasil”; “não encaixa nos nossos slots”; “não mostramos filmes políticos”; “não vejo como se pode enquadrar os nossos slots de social issues ou de current affairs”; “o orçamento é muito caro”; e a maior parte das vezes dizem “quando estiver feito, gostava de ver”. Ou seja, não só demonstram a sua incapacidade de visualizar o que possa vir a ser um filme, como não se comprometem nunca. Ou melhor, iludem a sua falta de poder decisório com argumentos fingidos de experiência profissional.

É raro, nesta fase, apoiarem financeiramente um projecto, e quando o fazem, mais tarde, querem controlar todas as fases de produção e fazem exigências na montagem: meter voz off, tirar este plano ou aquela personagem, introduzir mais qualquer coisa. É o modelo americano – espalhando metásteses na Europa - em que o produtor-financiador é quem manda no produto final - em nome de conhecer melhor o meio e as audiências, i.e., o que dá mais dinheiro. Na prática, considero que se trata de um esquema humilhante. Enquanto os produtores/realizadores dão o seu melhor (depois de terem sido já pré-seleccionados), os juízes desdenham.

Tanto esforço para quê? Saberíamos para quê se a EDN ou a Apordoc revelassem números relativos aos filmes apoiados por este método. Na falta de dados, suspeito que é uma boa maneira de arrebanhar clientes na massa crescente de documentaristas novatos.

Não sou contra as televisões nem os mercados. Mas se são tão selectivos e exigentes, porque não abrem eles concurso para propostas sobre certos temas e assuntos? É porque, lá nos seus bureaux, ligados à internet e aos media, eles não podem saber o que se passa no mundo da vida e estão carentes de novidades, de preferência emocionantes, com mais sangue e mais lágrimas. Então, com o seu enfado de burocratas, aproveitam os pitchings para avaliar as tendências da moda e roubar algumas ideias, qual vampiros da programação.

Os realizadores têm, no entanto, outros objectivos. Geralmente têm algo a dizer sobre a realidade que presenciam, têm uma forma de olhar pessoal e única e um assunto circunstancial e irrepetível. Têm o desejo de testemunhar, de reflectir e de exprimir pontos de vista, por este meio que é o das imagens. Mas só podem fazê-lo se forem livres de o manifestar - e aceites e respeitados como tal.

No meu entendimento, fazer documentários é uma questão de liberdade de expressão – e não pode ser controlada por agentes exteriores. As normas de televisão, a mentalidade burocrática e economicista são um outro mundo, com o qual tentamos relacionar-nos, se calhar em vão.

Já há 6 anos pensava mais ou menos assim:
http://www.akademia.ubi.pt/jornal_docLeonorAreal.htm

Aqui podem ler a opinião de Mariana Otero sobre os "novos falsários do documentário" : http://www.akademia.ubi.pt/jornal_docMarianaOtero.htm

E mais um texto de balanço sobre um pitching na Grécia: http://www.filmfestival.gr/docfestival/2004a/pitching.html

25 outubro 2005

Feios, cómicos e maus


O teste máximo de um filme – particularmente um documentário – é no palco de um cinema. Só no grande ecrã se vai perceber se o filme tem bom ritmo, se as personagens têm densidade, se a mensagem passa, se o público reage bem. Só então o realizador e seus colaboradores, que pensaram tudo ao pormenor, se conseguem distanciar e ter uma perspectiva renovada do filme, filtrada pelas reacções e pelo clima da sala.

Pode dizer-se que o público dos filmes premiados no DocLisboa reagiu bem. Riram compulsivamente em todos os filmes (mostrados no domingo à tarde). Pode até afirmar-se que a melhor expectativa dos espectadores de documentário é essencialmente essa: desopilar e rir das misérias alheias, como numa boa farsa. Mesmo que estejam presentes os participantes, as pessoas riem alarvemente das suas mínimas fraquezas, sinceridades e tropeções. E têm razão: a vida é um circo.

E de que rimos? De tudo o que faz rir: dos pequenos incidentes, dos equívocos, dos trejeitos, da rudeza dos personagens, da sua fragilidade, do seu humor corriqueiro, das suas manifestações de ansiedade, quer seja uma família lisboeta do bairro da Bica, ou uma velhinha russa que faz vodka, ou uma figura do jetset, ou um político de direita, ou um cãozinho choroso no meio de uma mercearia.

Se formos pela apreciação do clima das sessões de documentários, podemos dividi-los em 3 tipos: há os que fazem rir, mesmo sem serem cómicos (episódios do quotidiano, personagens populares, velhos engraçados, figuras públicas caídas em desgraça, etc.); há os trágicos (guerras, revoluções, marginais, doenças, crianças infelizes); e há os mornos (os que não provocam emoções imediatas, só dão que pensar).

No caso do filme Gosto de ti como és de Sílvia Firmino (que ganhou o prémio de melhor documentário português), as pessoas riem-se do ensaiador da marcha quando ele berra e diz asneiras, riem-se de uma família de quatro deitados na cama a ver televisão e do filho que expulsa a mãe com cócegas (só parando quando ela lhe aperta os tomates?), riem-se do nervosismo dos marchantes e das piadas castiças, riem-se o tempo todo. Porque o filme é muito divertido e realmente construído como uma farsa.

Bem filmado, bem montado, sintético na construção da história e das personagens, este documentário concentra-se nos episódios excessivos – pela linguagem, pela gestualidade, pela força, pelo típico - e na graça das pessoas. A ênfase dada transforma-as em personagens de uma quase-ficção, construída com base em situações grotescas, aliás, bem realistas.

“Gosto de ti como és” é também uma excelente definição para o ofício de documentarista: conseguir chegar perto dos outros e aprender a gostar deles, mesmo que diferentes, mesmo que imperfeitos. Um documentarista acaba geralmente por criar uma relação afectiva com os sujeitos seus objectos, que, por princípio, tenta respeitar para não atraiçoar um pacto de confiança.

Fico a pensar nos cortes que fiz, no meu último documentário, quando achei que as personagem poderiam cair ligeiramente no ridículo e as quis poupar a isso. Quantas gargalhadas terei perdido?

24 outubro 2005

Simulacro


Uma sala toda branca, chão, paredes, tecto. Uma projecção vídeo de uma praia, as ondas do mar, movimentos sensíveis de cães ao longe. Duas mulheres sentadas na plateia vêem este “objecto exigente e transcendente de arte minimalista”. Aliás, um filme de Kiarostami que dura 75 minutos. Five (2004) “desenrola-se languidamente permitindo aos espectadores a liberdade de contemplar cada pormenor” (segundo a sinopse dada no DocLisboa). O que leva uma pessoa a entrar no edifício monstruoso e frio da Culturgest para ficar a olhar para este simulacro de zen? O que leva um realizador extraordinário ao grau zero da expressão?

22 outubro 2005

A importância de uma voz



Ross McElwee, cuja obra está em retrospectiva no DocLisboa, é uma espécie de cineasta compulsivo. Desde os anos 70 que ele filma (em 16mm) os amigos, a família, tudo, misturando o improviso da vida com o improviso do cinema. Anos mais tarde, reconstitui e cola esses fragmentos de vida segundo uma linha narrativa frequentemente autobiográfica. Dele vi só 3 filmes: Charleen (1978), Backyard (1984) e Time Indefinite(1993).

Charleen é sobre uma sua amiga com muita personalidade e uma voz capaz de ocupar um ecrã inteiro sem deixar de surpreender o espectador. Em Time Indefinite, o assunto principal é a família e a resistência de Ross em aceitar as expectativas casamenteiras e procriativas típicas das famílias típicas. Esse (aparente) longo percurso de conversão, que começa quando aos 39 anos anuncia que vai casar, prossegue até ao nascimento do primeiro filho, após um primeiro aborto e a morte do pai – aos quais se juntam vários outros encontros com a morte: da imolação do marido de Charleen ao tumor canceroso de uma paciente do seu irmão, passando pela visita apocalíptica de uma testemunha de Jeová.

Os marcos principais desta autobiografia - centrada no eterno ciclo da vida – são o casamento, o nascimento e a morte - temas universais. O seu âmbito é todavia local. Ao retratar a família e os amigos, com suas convenções e crenças, todo um contexto social e cultural ganha existência palpável e reflecte o mundo em que se revêem os seus conterrâneos. Visto de fora, parece-me um quadro hiperrealista da América, através do qual reconhecemos hábitos exóticos como, por exemplo, o dilema entre guardar ou espalhar as cinzas dos mortos queridos, ou a cerimónia de recasamento nas bodas de ouro (com as meninas e senhoras vestidas de rendas brancas e todos os participantes da cerimónia, incluindo o padre, exclusivamente negros), ou a obrigação estatal de fazer análises de sangue antes de casar, acrescida do bónus de uma visita ao ginecologista para verificar se está “tudo a postos para cidade dos bebés”.

Mas o mérito do filme está todo na voz que entretece e conduz a narrativa por entre os vazios de acção e o pouco interesse ou a ausência de algumas figuras familiares, habilmente recuperadas como personagens fílmicas.

21 outubro 2005

Le départ de Depardon



O último filme de Raymond Depardon, Profils Paysans: le Quotidien (visto no DocLisboa), demora a começar. Durante uma meia hora (psicológica), ele interroga alguns velhos camponeses que não estão manifestamente inclinados para desenvolver o tema que ao realizador interessa - o abandono dos campos e das aldeias, o envelhecimento da população e seu isolamento. Estes anciãos pouco têm para contar além de um certo desânimo da idade. O realizador, qual repórter sem imaginação, insiste no seu inquérito elementar: há quanto anos ali vive e trabalha, quantas pessoas ainda lá estão, se trabalha mais agora que dantes, etc. Em troca recebe algumas respostas desconcertantes: "Quando você tiver 85 anos também vai fazer menos fotografias e filmes que agora".

O filme só começa a tornar-se interessante quando chega aos diálogos: entre os agricultores na feira, ou depois na quinta que um casal procura vender - para poderem obter a reforma - a um outro casal jovem que pretende obter um empréstimo bancário. Aqui, então, com toda a autenticidade, desenha-se um quadro actual da vida rural, da mudança de práticas e perspectivas de vida entre uma e outra geração. Mas o pressuposto inicial (o do envelhecimento e abandono dos campos) parece desmontar-se. Afinal, há pouca gente no campo, mas há renovação.

O monólogo vigoroso da rapariga de 22 anos, que com o marido comprou uma quinta em ruínas, é mais eloquente que os monossílabos cansados dos pastores. Ela conta como teve o seu bebé, como reconstruíram a casa, mas fala sobretudo das vicissitudes da criação de cabras durante o inverno. O outro casal de quinquagenários, entretanto reformados, está feliz por já não viver no stress de acordar às 5h30 da manhã ou de ter que limpar a neve para chegar ao estábulo e dar de comer aos animais. Aqui o filme tomou um rumo e as perguntas do realizador deixaram de ser relevantes: finalmente encontrou personagens com voz.

20 outubro 2005

Dispositivos (2 e 3)

O primeiro (documentário) dispositivo, A Conversa dos Outros, de Constantino Martins e Nuno Lisboa, coloca a câmara frente a uma cabine telefónica utilizada por imigrantes brasileiros e grava as suas conversas. Uma ideia minimal (mas não inédita) que abre expectativas largas de aceder a universos - íntimos, culturais, sociais - desconhecidos. Na prática, há uma ou duas conversas com mais interesse e as restantes esmorecem na banalidade. O filme não chega a encontrar uma forma narrativa interior, nem procura construir um quadro das circunstâncias que identificam o conjunto das personagens como grupo ou género ou temática. Não há grande relação entre as conversas dos outros senão serem outras. O processo salienta-se: o mistério alheio ouvido a uma certa distância.

O segundo dispositivo, Falta-me, de Cláudia Varejão, pede às pessoas que escrevam numa ardósia o que lhes faz falta. São dezenas os intervenientes, cabendo cada um em 10, 20 ou 30 segundos. Nuns casos, a personagem é apresentada brevemente pela actividade profissional ou pelo local onde se encontra, noutros (sobretudo quando são personalidades públicas) a apresentação é dispensada. Assim, de cada vez que aparece uma nova pessoa, ficamos na expectativa de saber que palavra irá escolher, que carência a irá definir.

O que me surpreendeu neste exercício existencial é que realmente há sempre uma coisa - só uma coisa - que em cada momento da vida nos falta mais. Isso que nos falta cabe até numa só palavra. Essa descoberta tocou-me como uma pequena verdade de trazer no bolso. Inevitavelmente, desde os primeiros momentos do filme, comecei a pensar no que a mim me faltava. Mas há sempre excepções: a freira a quem não falta "nada" e o varredor de rua a quem falta "tudo e nada". Do conjunto dos depoimentos escritos ressalta a ideia de como todos temos necessidade vitais tão diversas. Resulta também uma colecção inédita de carências humanas.

Em ambos os casos, um dispositivo que busca, e atinge, algo de íntimo e essencial nas personagens alvejadas, sem ter de percorrer um longo caminho de aproximação. Embora o contacto com o real seja superficial, o conceito é universal e sustenta-se como um jogo.

(vistos na Videoteca do DocLisboa, onde são projectados amanhã e hoje, respectivamente)

19 outubro 2005

Cinema ilusionista


Uma instalação-vídeo no Museu do Chiado mostra em simultâneo nas quatro paredes de uma sala vários filmes de William Kentridge, suponho que concebidos para esta disposição dispersa, mas igualmente válidos como objectos fílmicos per se.

Sob o efeito caleidoscópio de circular os olhos pelos vários filmes ao mesmo tempo, o visitante procura seguir, apesar de tudo com alguma aflição, a sequência de cada filme que, em loop, recomeça incessantemente e nos permite recuperar o momento que perdemos quando olhámos para o do lado.

São filmes de um ilusionista. Onde o autor se representa, por exemplo, a apagar um desenho, a folhear livros que voam, ou a reconstruir auto-retratos, usando a técnica de inverter o movimento da fita. Desenhos que, mal acabados de fazer, habitam o espaço do quotidiano. Objectos do quotidiano que invadem o espaço dos sonhos. Sonhos que habitam a intranquilidade do artista.

Filmes que falam apenas do trabalho do autor, situados no universo do seu atelier e das suas fantasias. Este delírio auto-reflexivo sobre o trabalho e a própria identidade dentro da obra, aparece-nos em variações paradoxais sobre diferentes técnicas - mixed media - num jogo que ultrapassa o formalismo e se torna pura poesia e ilusão.

18 outubro 2005

A estética do sofrimento


Certamente o documentário Natureza Morta – Visages d’une Dictature, de Susana Sousa Dias, tem todos os méritos que lhe atribuem. Uma narrativa só por imagens, uma revelação da nossa memória arquivada, um exercício virtuoso de montagem, etc. Reconheço nele um filme fantasmático que teve a capacidade de activar em mim o sistema de alarme.

Ao contrário da expectativa, não encontrei um filme que fala por imagens, mas um filme em que fala mais alto a música, cujo expressionismo electroacústico - de frigoríficos medonhamente vibrantes e estampidos violentos de portas de ferro fechadas sobre alçapões - é capaz de nos colar à cadeira em estado de angústia irracional e grande desconforto. Eu sei que é intencional. Mas que intenção tem? Fazer-nos sofrer durante uma hora pelas vítimas do fascismo?

Toda a gente acredita que uma imagem vale por mil palavras, mas não é verdade, as imagens falam conforme o que se diz delas (pensemos no pseudo-arrastão de Carcavelos, que o filme de Diana Andringa, também presente no DocLisboa, desmonta). As imagens pouco valem sem as palavras, porque podem ser lidas de muitas maneiras (e as palavras também, mas não de tantas). Elas ganham sentidos que, neste caso, são induzidos pela música ou pelos raccords, que aqui se resumem a oposições simples: os brancos que aplaudem e os negros que desfilam nus, os que deitam foguetes e os que queimam aldeias africanas, as fotos dos prisioneiros e logo o ditador com sorrizinho, de um lado os carrascos, do outro o povo acabrunhado, em suma, os bons e os maus.

Mas a realidade do fascismo foi muito mais complexa. Já todos sabemos o que foi o fascismo. Todos nós participámos disso ou participaram as nossas famílias. Aliás, o fascismo continua entre nós. Nem é possível traduzi-lo por meio de uma parábola maniqueísta. Veremos este filme por uma espécie de masoquismo católico?

Qualquer grupo de gente subindo uma escada em câmara lenta parece um bando de esfomeados. Qualquer penitente de joelhos pode ser uma metáfora de mil coisas, mas qual delas? Os soldados enfermeiros que dão de beber às crianças negras (em latas da Sacor) parecem algozes. E as crianças que olham para a câmara pelo canto do olho suspenso no tempo parecem prisioneiros culpados. No filme de Susana Sousa Dias estamos prisioneiros da imagem.

Quando se usam e manipulam as imagens desta maneira, arrastadamente, analiticamente, repetidamente, há um comprazimento estético no olhar de quem as vê. Como podemos conciliar a beleza amoral das imagens em movimento com o juízo moral que elas descarregam sobre nós? O fascínio das imagens não deveria degenerar em horror ou vice-versa.

(visto ontem no DocLisboa)

17 outubro 2005

O dispositivo


Mecanismo que produz um resultado ou efeito. Conceito artístico que se adequa ao filme Retrato de Carlos Ruiz. Um documentário estruturado sobre um dispositivo estético claramente delimitado: imagem a preto e branco, os monólogos em off do pai e da mãe; as fotografias de família; imagens em movimento de situações quase estáticas.

A conjugação destes factores produz uma obra fortíssima, em que as memórias individuais dos pais, as suas considerações um sobre o outro, são ouvidas sobre antigas fotos sorridentes de família ou sobre as suas imagens actuais, semi-encenadas e mostrando-os imóveis, na cama, em casa, na rua, na praia, sempre afastados um do outro ou solitários.

O discurso - sustentando o conteúdo existencial do filme, tocante de amargura e resignação - está sempre fora de campo e é ilustrado por imagens de paisagens, campestres ou urbanas (Sevilha), onde por vezes aparecem os pais, também eles filmados como paisagem, da escala macro ao plano geral, sempre quase imóveis, expectantes sem expectativa, dois solitários cujos eloquentes desabafos reflectem sobre uma vida inteira de casal “infeliz”.

A alternância espaçada das suas vozes (nunca há diálogo) reforça a percepção do seu afastamento, e o contraste entre as memórias e as imagens fotográficas que elas contradizem, e, por outro lado, a encenação daquele isolamento através de poses actuais, acentuam a cisão interior ao casal. A oposição entre os discursos fluentes e as suas imagens sempre mudas revela a angústia de tudo o que calaram durante a vida e nunca disseram entre eles. É um filme sobre um modelo de casamento hoje em falência, aqui testemunhado por um filho em relação aos seus pais, sem sentimentalismo e com mãos de esteta.

(visto ontem no DocLisboa)

16 outubro 2005

As activistas passivas


O documentário Sereias de Dina Campos Lopes acompanha a viagem do barco Borndiep que, em Setembro de 2004, tentou chegar a Portugal para defender a legalização do aborto seguro. As activistas da organização Women on Waves preparam a sua viagem sem publicitar (na internet) dados precisos sobre datas ou destino final, mas isso não evita que o barco seja detido antes de entrar em águas portuguesas. Foram gravadas as conversas telefónicas com as autoridades portuguesas e, perante a negativa, as sereias ficam a banhos no alto mar, sempre vigiadas a distância por um barco militar que se aproxima apenas para mandar piropos quando elas vão ao banho em biquini.

Outras activistas vieram não por mar mas por ar e assim podemos perceber que há movimentações políticas em terra – uma pequena manifestação, uma conferência de imprensa - que procuram pressionar as autoridades. Há ainda uma delegação de deputados ao barco, que, na pessoa de Francisco Louçã, pede, por telefone, uma explicação para a não-autorização de aportar. Perante uma resposta definitiva - não têm autorização porque não têm autorização - e um comentário brejeiro dirigido à deputada Odete Santos, a delegação nada mais pode fazer. No mar, as sereias limitam-se a ouvir na televisão as declarações inflamadas do ministro da defesa Paulo Portas, cuja gestualidade expressiva suplanta as barreiras linguísticas e que, apesar do tom trágico que no contexto parecia ter, pôs a plateia da Culturgest a rir às gargalhadas. O PM Santana Lopes também aparece a dizer que Portugal é um país de liberdade.

Em contraponto, as sereias filmam-se a si próprias, fazendo depoimentos auto-reflexivos, numa incompreensão do que passa em terra. O que ressalta deste confronto é a sua visão de Portugal como uma república das bananas – o que não deixa de ser verdade – onde as mulheres não têm direito à escolha e à autodeterminação. Na conferência final, uma activista estrangeira pinta um quadro pavoroso em que as mulheres sem meios monetários suficientes praticam abortos com agulhas de tricô. Na realidade, hoje praticam-se já outros métodos – embora clandestinos e com sequelas equivalentes àquele outro.

A vinda do “barco do aborto” teve não só um enorme efeito mediático – a que a realizadora intencionalmente fugiu – como permitiu que finalmente se falasse e se escrevesse sobre os métodos que se usam para provocar quimicamente o aborto - assunto nunca antes abordado publicamente. Na prática, passou-se em terra muito mais do que as activistas no mar puderam presenciar.

O filme, por opção, omite os efeitos desta acção, concentrando-se nos seus protagonistas e no seu sentimento de impotência. O tom é quase confessional e centrado em perspectivas individuais. Inicialmente imbuídas de um espírito de “missão”, o de esclarecer as mulheres portuguesas, mas sem quererem ser “arrogantes”. No final, admitindo o falhanço dos seus objectivos e procurando aceitar que não podem impor a sua perspectiva às mulheres portuguesas porque Portugal não está preparado para isso e está no seu direito de se governar à sua maneira.

Falam disto como quem fala de um país árabe onde as mulheres escondidas nas suas burkas não queiram ser libertadas. O paternalismo e o desconhecimento são evidentes. Cometem o erro involuntário de supor que um governo autocrático representa uma vontade popular generalizada. O filme, sancionando esta visão, não procura conhecer o outro lado do espelho: a realidade do problema que a todos preocupa, ou mesmo o impacto que o evento teve na opinião pública, afinal seu principal mérito e, aliás, contributo para o desgaste rápido do governo ultradireitista que tínhamos.

Usando sobretudo material vídeo amador, este documentário aparece como o filme possível feito a partir dos registos recolhidos ad hoc. E sente-se uma falta de coesão que uma preparação prévia e uma abordagem intencional dos factos que lhe teria dado.

(visto ontem no DocLisboa)

15 outubro 2005

A arte é uma ciência


Na linha de “o meio é a matéria”, vi no festival Temps des Images/CCB uma pequena mostra de filmes experimentais seleccionados e comentados por Jacinto Lageira e reunidos sob o lema “o corpo é uma projecção”.

Em Pièce Touché (1989), Martin Arnold faz uma decomposição de gestos simples, contidos numa pequena sequência fílmica (um homem que abre uma porta e beija uma mulher que se levanta), por um efeito de forward-rewind em unidades mínimas de movimento. Segundo percebi, ele corta a fita em fotogramas e redistribui-os de novo fazendo avançar e retroceder os pequenos movimentos (um abrir de porta, um virar de pescoço, um sorrir, um baixar, etc.) sem repetir nunca um mesmo frame. Portanto imagino que, numa sequência de 24 fotogramas, as encadeie, por exemplo, assim: 1-6-11-16-2-7-12-17-3-8-13-18-4-9-13-19-5-10-15-20-21-24-22-etc., mas com variações livres.

Com uma liberdade experimental capaz de tirar partido da expressividade mecânica de segmentos que reproduzem gestos e sinais corporais, ele joga também com o ritmo e com a alternância da imagem invertida em espelho, criando movimentos interiores ao quadro que são quase de dança, em resultado de um efeito óptico talvez aleatório.


Noutro trabalho visto, Why do things get in a muddle (1984), Gary Hill encena uma situação de metadiálogo (a partir de um texto de Gregory Bateson), ou seja, um diálogo que fala do que se faz, ou um filme que mostra do que se fala.

A figura da Alice de Carrol pergunta ao seu pai porque é que as coisas sempre se desorganizam em vez de se arrumar. O diálogo entre os dois actores foi filmado em modo reverso – particularmente as palavras que foram articuladas foneticamente invertidas – e os seus gestos e interacções com os objectos ilustram o princípio da desarrumação em retrocesso.

Em ambos os casos, estamos perante um jogo laborioso e hiperformalista, mais do que uma descoberta visual ou conceptual. Uma forma de encarar a actividade artística com o zelo de um artífice que escalpeliza o seu material até conseguir espremer o inimaginável. Um trabalho analítico sobre a matéria-prima do cinema - o movimento, o instante, o tempo, o som – cujas leis tácitas são aqui transformadas por força de uma imaginação experimental e para-científica. O filme é um corpo.

14 outubro 2005

Ciganos


Único filme realizado pelo director de fotografia João Abel Aboim, Ciganos (1979) é um documentário feito ainda no ímpeto do pós-revolução. Como é típico de outros documentários dessa época, não está preocupado tanto com aspectos de estilística, metodologia ou epistemologia, como está com revelar e tratar a realidade sua contemporânea.

O filme começa com imagens de ciganos num acampamento, dançando e cantando, e vários grandes planos que declaram uma aproximação à escala do indivíduo. Depois saltamos para a cidade, onde vivem em bairros de lata (na Ajuda, no Areeiro) os que fugiram do campo e do nomadismo. Ao todo entrevista 3 ou 4 ciganos, que se apresentam formalmente perante a câmara, dizendo nome, profissão, número de filhos, origem geográfica, etc. Um historiador explica a origem dos ciganos e a sua migração do Egipto até à Península Ibérica no século xiii, onde passaram a ser chamados “egitanos”, “gitanos”, “ciganos”. Apesar da sua integração geográfica e linguística ter séculos, vivem marginalizados e são olhados com a mesma estranheza e desconfiança que hoje é votada, por exemplo, aos recentes imigrantes orientais.

As cenas do seu quotidiano num bairro da lata são acompanhadas da música que antes animava o baile espontâneo. A contradição em termos – a alegria da música e a pobreza das condições de vida – evita tanto o sentimentalismo como o miserabilismo. Não há indulgência neste olhar, há uma realidade exposta nas suas facetas diferentes.

O processo de expor contradições alarga-se através de inquéritos feitos aos habitantes não ciganos. A vox populi diz de tudo: que eles são ladrões, que eles são pessoas como as outras, que eles são carinhosos para as crianças, que eles são maus para os burros. Uma professora primária, confessando que está no início do ano lectivo e por isso ainda não conhece bem os alunos ciganos que tem pela primeira vez, afirma e repete, no entanto, que eles são traiçoeiros. Outra voz off (não sabemos bem de quem) diz que as crianças ciganas não sabem brincar e desistem logo da escola, mas um cigano diz que os filhos hão-de ir à escola, como ele também foi até à quarta classe. Outra voz diz que os ciganos não se integram no mercado de trabalho, pois nasceram para o negócio. Mas um deles – muito bem falante e com estudos até ao ciclo preparatório - trabalha numa fábrica, pois o negócio não corria sempre bem e ele tem a “presunção” de dar o melhor aos seus filhos. Outra voz diz que os ciganos têm “amor pela liberdade”, mas um chefe cigano diz que antes do 25 de Abril viviam no “tempo da escravidade” e compara a brutalidade da GNR para com os ciganos a Hitler.

É assim um filme que regista opiniões diversas que, na época, definiam ideias colectivas sobre o povo cigano. É um filme sobre representações sociais (auto-representações e alter-representações) num tempo e espaço dado. Por isso não concordo com Manuel Cintra Ferreira quando diz (na folha de sala da Cinemateca, onde o filme passou anteontem) que este filme “o que hoje nos traz é apenas um sentimento de “nostalgia” por um tempo em que as coisas eram (pareciam) mais simples”. Não me parece que fossem. Também não vejo que seja “principalmente um retrato do que filma no seu tempo (...), o que o torna irremediável ultrapassado hoje em dia”. Isso é que lhe dá um valor intemporal de testemunho de um presente já passado, que hoje podemos discutir com o benefício da distância histórica.

É um documentário em que o sujeito do discurso (o autor do filme) não se esconde, ele está assumidamente presente e interage com os seus personagens fílmicos. Ele faz perguntas, interpelando as pessoas de acordo com as normas sociais de então, tratando-as por tu, por você ou por senhor. Nesse aspecto, aparenta a técnica da entrevista de reportagem, que não é. Pois o autor afirma-se pela sua visão desse mundo, expressa, por exemplo, na forma como introduz a música ou como associa os relatos em off às imagens.

O documentarista não se esconde nem se omite, ao contrário do que é frequente em muitos filmes actuais, que parecem fingir que não está ninguém a filmar e transportam o seu olhar para aspectos mais subtis ou íntimos da realidade. Naquele o olhar do enunciador está sempre presente, na decisão de atribuir sentido aos actos filmados. Nessa época, a voz off ainda não tinha sido anatemizada, e representa aqui a voz da consciência - consciente de si e do seu papel político, social, cultural. Há verdade neste cinema. A suficiente para o podermos incluir no pouco conhecido movimento português do “cinema-verdade”.

P.S. Sobre a integração de um menino cigano na escola encontrei este recente testemunho: http://aculturaeparasecomer.blogs.sapo.pt/arquivo/326003.html

13 outubro 2005

Como é diferente o amor em Portugal*


Todos os filmes têm algo de universal: aquilo que é humano, aquilo que vem pela linguagem das imagens, e aquilo que é a força do seu referente real. Mas há aspectos do real dos filmes que vistos a distância são pouco mais que exóticos, e outros que fazem sentido apenas para quem conhece bem o contexto.

O meu documentário Doutor Estranho Amor faz sentido aqui e agora como um filme sobre educação sexual – mas duvido que seja significativo noutras partes da Europa, a não ser como um sinal do nosso subdesenvolvimento cultural.

Não sei se noutros países europeus lhes interessa discutir estratégias de prevenção da SIDA, visto que desde há 15 anos têm tido bons resultados na diminuição da taxa de infecção, ao contrário de Portugal onde esta tem subido alarmantemente (ver abaixo), presumo que por falta de informação, medidas de prevenção desadequadas, iliteracia, etc.

A Irlanda, onde o aborto é também proibido, ou outros países mais a sul ou mais a leste, teriam algum benefício a tirar deste filme? Não sei se aí as pessoas falam de sexo com os mesmos eufemismos que cá se usam. Nem sei se nesses sítios haverá meios para exibição de documentários feitos em países ricos onde há escolas modernas bem equipadas e políticas adaptadas a realidades bem diferentes.

Há filmes que são feitos para interpelar a realidade onde nascem. Tão só. Essa realidade é aquela em que um primeiro-ministro socialista extinguiu, em Junho passado, a Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA.

Se não acreditam, vão ver:
http://jn.sapo.pt/2005/06/24/sociedade/extinta_comissao_luta_contra_a_sida.html http://bichos-carpinteiros.blogspot.com/2005/06/extinguir-coisas-fundamentais.html
http://gatportugal.blogspot.com/2005/06/extinta-comisso-de-luta-contra-sida.html

* Júlio Dantas dixit


12 outubro 2005

O pequeno ecrã


Um documentário com a grande sorte de ser apoiado pelo ICAM, terá também a sorte de ser passado na RTP, uma oportunidade de ser visto (no canal 2) por uns 100 mil espectadores, muitos mais do que os 200 de uma sala de festival. Apenas um inconveniente: o espectador de tv é, por natureza, desatento e inconstante. E um realizador é como um professor: gosta mais dos alunos atentos.

O meio-tv dificulta a imersão e não promove o debate. O espectador de uma sala de cinema não se cansa com um plano longo de 1 minuto, mas o de televisão zapa logo. Por isso, muitos realizadores criam estratégias intermédias ou ambivalentes de comunicação em dois canais diferentes. Na ficção, adoptando uma estilística do pequeno ecrã: grandes planos, montagem célere. No documentário, optando por fazer duas versões do mesmo filme, uma aprofundada, outra sintética. Há um filme para o espectador ideal e outro para o espectador distraído.

11 outubro 2005

A dança dos festivais


Enganam-se os que, por consolação, me incitam a enviar o meu filme recusado "lá para fora". É que não adianta muito mandar os filmes para festivais estrangeiros (às centenas na Europa e no mundo inteiro) a não ser que antes se tenha sido escolhido no próprio país. Porque quase todos os festivais sobrevivem à sua tarefa selectiva escolhendo, segundo a lei do menor esforço e do sucesso mais fácil, “filmes importantes e multipremiados internacionalmente”.

Com este método, estreitam-se sempre as possibilidades de difusão, uma vez que são escolhidos os já escolhidos. O estrangulamento dá-se no ponto de partida, a menos que, em cada estado/nação/região, os festivais regionais se sintam responsáveis por defender e promover a produção local. Não é o que se verifica frequentemente. Por exemplo, o Cinanima deste ano apenas seleccionou para competição 2-filmes-2 portugueses, indignando os profissionais. “Já é tão difícil conseguir fazer filmes, e ainda por cima não conseguimos mostrá-los”, desabafava uma amiga.

Resultado: gastam-se contos e contos em cassetes e dvds enviados pelo mundo fora, para serem vistos em toda a parte os mesmos filmes, os maiores. Se isto não é globalização, o que é? Provincianismo certamente é.

10 outubro 2005

Das tendências do documentário

Fiquei a pensar na classificação de Tiago Baptista (no catálogo do festival da Malaposta de 2001). A forma como desenvolve a sua apreciação das tendências do documentário é muito inteligente, mas difícil de encaixar em filmes específicos, exactamente porque funde e aproxima vários filmes por género. Ou seja, constrói o género a partir da intersecção de vários filmes, mas depois alguns não cabem lá por inteiro.

Acontece que qualquer classificação dá sempre muito jeito, mas raramente descreve a realidade como ela é: diversa e desorganizada. Muitos filmes encaixarão em várias categorias e outros em nenhuma, porque as generalizações são sempre abstracções, produtos da nossa inevitável tentação de dar ordem ao mundo - que ele não tem, particularmente no campo das artes, onde se cultiva exactamente o contrário, a invenção, a procura de um olhar diferente.

Inevitavelmente, comecei a pensar nos recados do Tiago aplicando-os ao meu filme Ilusíada que esteve nessa edição do festival. Para mim, ele integra-se em pelo menos três dos subgéneros definidos: o dos temas sociais, o histórico e o autobiográfico (não de mim, mas de 4 personagens que achavam que a vida deles dava um filme). E como um dos protagonistas é um artista popular, ainda cabe parcialmente no quarto género, o dos filmes sobre arte.

Leio então: “nestes filmes [os histórico-televisivos], a variação de escala entre a biografia individual e o período histórico conjuntural, recorrendo a entrevistas, testemunhos e imagens e outros materiais de arquivo, é menos um pretexto para ‘desmontar’ as versões da história pelos seus protagonistas, do que para 'montar' as tramas habituais e tantas vezes repetidas”. Penso: desta safei-me. Exactamente porque usei 4 protagonistas diferentes para poder desmontar o “vício de perspectiva” em que o relato unívoco do passado histórico frequentemente incorre.

Em relação ao grupo dos filmes “tipicamente documentais”, “designação aparentemente vazia e redundante que pretende referir-se aos filmes que se constituíram em certa oposição, ou pelo menos, tensão em relação aos documentários mais televisivos”, “nota-se uma actualização metodológica indubitável”. “Assimilada a filmagem pós-cinema directo, os documentaristas portugueses adoptaram com sucesso estratégias do cinema narrativo apresentando-nos personagens e histórias de vida que se desenvolvem espacio-temporalmente ao longo seus filmes”. Reconheço-me nisto.

Mas logo de seguida, já me sinto escorregar do barco. Leio: “A premissa de mostrar mais do que contar levou à anatemização da voz off e ao recurso a técnicas de montagem e de mistura de som que se pretendem transparentes”. Sim, de certo modo, anatemizei a voz off, quando ela é mesmo off (exterior ao filme), mas trabalhei sobre a ambiguidade das técnicas de montagem e de mistura de som...

Mais adiante, Tiago Baptista fala do “desfasamento de perspectiva que entende que 'mostrar' supera 'contar' e 'explicar', o que parece obliterar um ponto de vista do realizador, satisfeito por apenas ‘dar a ver’, sem juízo, o fruto do seu trabalho longo (...)”, o que “parece reduzir o papel dos documentaristas a produtores de documentos, com o perigo máximo, e que podemos encontrar nalguns casos desta selecção, de uma colagem ‘acrítica’ à voz do que é dito e feito pelas pessoas filmadas. Como se toda a validade desse acto viesse justamente do direito dessas pessoas falarem de si (...)”. Pois, concordo com ele, genericamente, mas imaginarei eu uns filmes, imaginará ele outros. E revejo no meu filme exactamente o contrário disso, uma visão crítica desse direito inquestionável que cada um sente de falar de si...

Apesar de tudo, considero estas reflexões muito justas, mas infelizmente não definidas no seu alvo. Ou seja, não se pode generalizar quando se fala de objectos únicos. Cada filme deve ser avaliado por si. É a única forma de os poder julgar.

08 outubro 2005

A questão nacional



(Copyright meu. Podem copiar)

Para onde vai o documentário português (3)



Em 2001, no catálogo do último festival da Malaposta,
ficávamos a saber que nesse ano: “entraram em produção, ou foram já concluídos, mais de 100 filmes, 63 dos quais foram este ano apresentados a concurso. A competição nacional conta 33 filmes, aproximadamente o dobro do que vem sendo habitual nas últimas edições dos Encontros (12 na última edição, 18 na anterior)”. Este alto nível de produção de documentários parece ter-se mantido, se considerarmos que o número de filmes portugueses concorrentes ao DocLisboa, em 2004 e 2005, rondou os 70.

No mesmo texto, Tiago Baptista, em jeito de balanço, definia 4 sub-géneros principais do documentário português:

  • “os filmes sobre arte (artistas e exposições, mas também sobre cineastas e suas obras)”;
  • “os filmes autobiográficos, introspectivos e intimistas, espelhados por uma maior experimentação formal”;
  • “os filmes tipicamente ‘documentais’, na escolha e na abordagem de temas sociais contemporâneos”;
  • e "os filmes que interrogam o passado histórico português".

Se tentarmos aplicar estas categorias às edições subsequentes do DocLisboa, o que encontramos?


2002

2004

2005

Arte e artistas

3 e meio

4 e meio

3

Autobiográfico ou intimista

4


3

Tema social

4 e meio

5 e meio

6

Histórico



3

(Os meios pontos referem-se filmes híbridos em relação a estas categorias.)

Em síntese, uma distribuição mais ou menos equilibrada entre os vários géneros, com a exclusão de filmes autobiográficos ou intimistas em 2004 e a recuperação dos históricos em 2005. Numa avaliação precipitada, pois não foram os últimos ainda vistos.

Mas este exercício de aproximação às tendências do documentário não deixa de ser inútil. Não sabemos o que ficou de fora. Nem os filmes se medem pelas sinopses, mas sim pela sua qualidade e interesse, aspectos que um programador deve, acima de tudo, saber avaliar. O principal do meu arrazoado é que este sistema de selecção é injusto, pois exclui, com base num critério exógeno (um número limite), filmes a que deveria ser dada a oportunidade de serem vistos.

07 outubro 2005

O novo surto do documentário

Nos anos 90 deu-se um renascimento do documentário em Portugal, estimulado pelo crescimento do sector audiovisual e das televisões que tornaram mais acessíveis as câmaras de vídeo. Lá para 99, começaram a aparecer as câmaras digitais que permitiram o grande boom de documentários dos últimos anos, traduzido não apenas em número de filmes produzidos, mas num crescente interesse por este género, que a afluência de público aos festivais demonstra, e no surgimento de pequenos cursos de realização dos ditos.

Para dar uma ideia relativa dessa evolução, baseio-me nos catálogos dos antigos Encontros Internacionais de Cinema Documental Amascultura (vulgo Malaposta), organizados desde 1990 por Manuel Costa e Silva, que acolhia quase sem reservas qualquer filme nacional, já que eram tão poucos. Eis o levantamento do número de documentários portugueses, ou sobre Portugal, vistos na Malaposta durante 12 anos:

1990: 4 filmes + 4 filmes de António Campos (retrospectiva)

1991: 5 filmes

1992: 1 filme + 8 da RTP (homenagem)

1993: 3 filmes + 2 vídeos + 6 documentários de Fernando Lopes (homenagem)

1994: 1 filme + 7 vídeos + 5 filmes (comemoração de 20 anos do 25 de Abril) + 5 documentários de Manoel de Oliveira (retrospectiva)

1995: 2 filmes + 16 vídeos + 8 vídeos de Carlos Brandão Lucas (homenagem) + 2 (dos dez melhores documentários da história do cinema)

1996: 4 filmes + 20 vídeos + 5 filmes de Diana Andringa (homenagem) + 9 documentários importantes de 100 anos de cinema português

1997: 2 filmes + 24 vídeos + 5 filmes de Margot Dias (homenagem)

1998: (não encontro o catálogo...)

1999: 25 filmes (todos em vídeo) + 8 filmes de Manuel Costa e Silva (homenagem in memoriam) + 5 de António Campos (homenagem)

2000: (não encontro o catálogo...)

2001: 35 filmes (em vídeo) + 2 + 13 + 21 (retrospectivas)

A distinção entre “filmes” (em película) e “vídeos” segue a nomenclatura do catálogo, que a partir de 1999 deixou de diferenciar os filmes segundo o suporte, uma vez que o velho filme cedeu a vez ao novo vídeo. Hoje, usa-se a designação “filme” indiferentemente para qualquer obra cinematográfica.

Em 2002 surgiu o festival DocLisboa que veio substituir o da Malaposta e mudou de morada: CCB e depois Culturgest. Nesta transmutação, o festival internacional de Lisboa decidiu fazer um upgrade e subir de divisão através da criação de um número clausus na admissão de filmes portugueses – um número fixo: 12 – independentemente do número de filmes de interesse ou qualidade a concurso. Este critério selectivo – que se manteve até hoje - obviamente não corresponde à vitalidade que o grande incremento de documentários e documentaristas demonstra.

Em 2003, o festival internacional foi cancelado, acho que por cortes de verbas do Sr. Santana Lopes, e a organização decidiu encher a programação com todos os filmes portugueses concorrentes, mas sem competição. Não houve promoção, o festival esteve às moscas, e a programação ad-hoc mostrou total incoerência. Passaram de 8 para 80. Espero que não seja este o plano de acção para o futuro Panorama do documentário português.

(Imagem de Senhora Aparecida (1996), de Catarina Alves Costa, retirada de http://www.der.org/films/senhora-aparecida.html)

06 outubro 2005

A revolução dos documentários


Há 30 anos - impulsionado pela revolução - deu-se o primeiro grande surto de documentário em Portugal. Entre 74 e 80 fizeram-se dezenas de documentários politicamente engajados, ideologicamente comprometidos, socialmente activos. Poucos foram vistos na altura ou estreados, mas ficaram como um testemunho riquíssimo de uma época e retrato das suas tensões ideológicas e sociais.

O documentário dessa época, de um modo geral, denuncia as más de condições de vida das populações – e pugna por elas. Simultaneamente redescobre e valoriza a cultura popular e tradicional. Muitos filmes misturam realidade e ficção (como, para só falar dos mais falados, Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro e Veredas de João César Monteiro).

Os documentários desse período ultrapassaram de longe o número de ficções – que por sua vez eram, em grande parte, politicamente empenhadas. Falando apenas das longas-metragens (com base no inventário de José de Matos-Cruz em O Cais do Olhar, Cinemateca, 1999), em 1974 temos 3 documentários para 7 ficções, relação que se inverte em 1975 com 10 documentários para 5 ficções, em 1976 com 9 para 5, em 1977 com 13 para 7, em 1978 igualando-se com 5 para 5, em 1980 com 6 para 6, e finalmente em 1980 a ficção retomando fôlego com 9 produções para 3 documentais, relação cujo equilíbrio que se mantém aproximadamente nos anos seguintes. (Havendo filmes híbridos de documentário e ficção, situei-nos nesta contabilidade do lado da ficção.)

Para o documentário, esta foi uma época de descobertas, em que os cineastas reinventavam o cinema e a sua linguagem. Nos anos 80, os documentários voltaram a rarear (eram ainda feitos em 16mm), até ao surto das câmaras vídeo nos anos 90.

Os documentários dessa época tornaram-se eles mesmos, hoje, documentos, a partir dos quais outros realizam documentários com uma perspectiva actualizada ou historicizada.

(imagem de Terra de Abril (1977), de Philippe Costantini e Anna Glogowski, não incluído na contabilidade acima, mas publicado na colecção de dvds do Público comemorativa dos 30 anos do 25 de Abril; imagem retirada de http://www.lesfilmsdici.fr/moteur/presult.php?titre=TERRA%20DE%20ABRIL)

05 outubro 2005

O poder popular


Barronhos era em 1976 um bairro de lata na região de Carnaxide. Houve aí um crime, que um documentário de Luís Filipe Rocha decidiu investigar. Os vizinhos depõem e ficamos a saber os pormenores da discussão que levou ao assassinato de um morador por outro (este entrevistado na prisão). Na origem do desacato estava um abaixo-assinado para pedir electricidade para o bairro, que também ainda não tinha esgotos nem água.

Havia uma comissão de moradores e um programa do SAAL para apoiar os habitantes dos bairros precários na construção de habitações mais sólidas e com condições básicas. Havia impasses, atrasos, mudanças de rumo, hesitações entre reconstruir ou realojar noutro local, havia informação omitida à população. Alguns dos habitantes – os mais ricos, comerciantes, segundo dizem – decidem fazer o abaixo-assinado para trazer a luz sem demora. Foi aí que o Braúlio, indignado, rasgou os papeis da petição e levou com um tiro do peito.

“Barronhos - Quem teve medo do poder popular?” divide-se em 5 partes – 1) O crime, 2) O Bráulio, 3) O Jaime, 4) O bairro, 5) O país - que desenham uma explicação do crime pelas circunstâncias de vida e miséria dos seus intervenientes e através da conjuntura social que se vivia na época. Não se julgue que o filme pretende branquear o crime. Apenas, ao levantar o véu de um caso passional, descobre uma realidade muito mais vasta, que procura apresentar com a objectividade de um inquérito político.

Luís Filipe Rocha constrói um documentário de investigação rigoroso, mas usa liberdades expressivas - como a reconstituição do crime sugerida visualmente, inserts frequentes, música sinfónica sobre imagens de arquivo e locução informativa com estatísticas - que referenciam claramente a fonte do discurso. É assim um filme duplamente cometido de consciência moral – pela escolha objectiva do assunto e pela posição subjectivada assumida.

(visto na Cinemateca anteontem)

04 outubro 2005

Programadores e programados


O papel dos programadores culturais é dar voz e lugar às expressões individuais e aos movimentos colectivos. Eles têm um papel de mediadores entre os criadores e o público. Não são autores nem juízes. Não devem invocar a sua subjectividade – não lhes cabe orientar o gosto - mas sim fazer um trabalho objectivo de investigação e organização. Um “director artístico” é alguém com um conhecimento vasto das artes e capaz de entender e interpretar a diversidade das expressões artísticas nos contextos sociais em que surgem.

Um programador que selecciona filmes a concurso tem que ser capaz de explicar por que escolheu e por que não escolheu. Tem que saber fazer uma avaliação dos trabalhos vistos, ainda que sejam centenas. Quais mais forem, maior a sua responsabilidade, mais exigente o seu trabalho deve ser. Tem de tomar notas, fazer sínteses, comparar parâmetros, discuti-los e, por fim, justificá-los. Os programadores não devem escolher segundo gostos ou preferências pessoais, mas também não se podem eximir a dizer o que pensam dos trabalhos alheios - ainda que seja algo muito desagradável de ouvir - quando os autores querem saber. Um programador que não sabe dizer o que pensa, é porque não sabe ou não pensa. E se não pensa não pode decidir sobre as obras dos outros.

(imagem roubada em http://www.zedosbois.org/indexzdb.htm)

03 outubro 2005

Para onde vai o documentário português? (2)


A retórica desta pergunta presume que há uma direcção nacional para o cinema. Presunção errada, pois o documentário, como qualquer outro terreno, é plural e diverso. A ideia de que há um rumo para as tendências da cultura e das artes é um artifício que não corresponde à realidade, a menos que se pretenda decidir sobre esse rumo, o que pode ser feito através de uma programação cultural orientada.

Um rumo implica um sentido, uma cabeça pensante. Hoje, quem define os rumos da arte são os comissários, os curadores, os programadores, os “directores artísticos”. O papel dos artistas é encaixarem-se numa lógica de mercado e de criação de públicos segundo as tendências do gosto dominante.

Para avaliarmos “para onde vai o documentário português”, teríamos de saber quais os filmes feitos que ficaram fora da selecção do DocLisboa. Mas a Apordoc – Associação pelo Documentário - demitiu-se dessa incumbência (equitativa para todos os seus associados) quando, em 2003, deixou de publicar o anuário de documentários portugueses que, desde 1999, servia de referência para a produção nacional e constituía um instrumento de conhecimento que nos permitiria, sim, situar o documentário português.

01 outubro 2005

Para onde vai o documentário português?


Não é difícil reconhecer uma coerência no conjunto seleccionado de documentários do DocLisboa 2005. Poderei assim tentar adivinhar “para onde vai o documentário português”, segundo a perspectiva da sua “direcção artística”. Esta só pode ser uma avaliação precipitada, mas não inválida, porque baseada numa análise de conteúdo da informação sinóptica disponível.

O percurso da selecção nacional começa numas “ruínas romanas” acompanhadas de “excertos de Séneca” e, depois da visita a um sítio onde “uma pequena comunidade esperou 25 anos pela instalação da luz eléctrica”, passa para “fotografias, memórias e paisagens” da época da guerra civil em Espanha, seguidas de um “trabalho sobre a nossa memória colectiva” “utilizando apenas imagens de arquivo” dos “48 anos de ditadura portuguesa”.

Na continuidade “dá-se a palavra a dois velhos cúmplices: ao realizador que atravessou todo o século” e ao seu “incansável exegeta e divulgador”. Seguem-se mais duas reflexões no campo artístico, uma “dando a ver um fascinante processo artístico” de diálogo entre a dança e a escultura, outra situada num “cenário” de umas minas “abandonadas há anos”.

Chegamos à “turbulência da vida urbana” através de um “retrato intimista e melancólico da sociedade portuguesa contemporânea” e de um filme sobre a felicidade que, feito ao longo de 10 anos, obrigará os seus realizadores a “voltar atrás no tempo e a tentar desaprender tudo o que a vida lhes tinha ensinado de errado” para “reinventar a vida”.

Por último, dois filmes que unem o local ao universal: uma cabine telefónica que faz “ligação entre os dois lados do Atlântico”, Portugal e Brasil, e outro sobre um bairro popular que prepara a sua Marcha de Lisboa, indo “do sentido local do acontecimento popular à dimensão universal do desejo de sucesso”.

Na secção de competição internacional, e ainda naquela linha, temos “uma incursão no mundo do boxe (...) centrada na figura de um pugilista profissional”. Nesta categoria ainda, encontramos um filme sobre o “barco-clínica da organização holandesa Women on Waves impedido pelo Governo português de entrar em águas territoriais portuguesas em 2004”; outro, incluído na secção Histórias da Europa, sobre a Bósnia, um “confronto com as memórias da guerra, com a morte e com a destruição e com a sobrevivência das vítimas”; e um terceiro sobre o pseudo-fenómeno do arrastão de Carcavelos que “desmascara o pendor sensacionalista da comunicação social em Portugal”, incluído na secção de filmes de investigação.

Três filmes políticos, dois dos quais muito actuais, que fazem reflectir sobre para onde vai a política e para onde vai o jornalismo. São documentários actuantes, porque querem mudar a sociedade. E mais, segundo a sinopse do último: “um caso praticamente único no panorama nacional de produção independente com vocação interventiva”. (E no entanto, o meu documentário recusado pertence também a esta categoria dos filmes empenhados em mudar o mundo. Talvez um dia mais tarde.)

Em resumo, esta selecção desenha um percurso que começa na antiguidade e evolui até à assunção de sentimentos actuais e referentes sociais como a imigração e o sucesso mediático; esta unidade (de 12 obras) é contrabalançada com 3 filmes de acção política. Uma tendência, aparentemente, mais virada para o passado e para a intimidade e menos para o futuro e a sociedade. Será esse o caminho actual do documentário português?