22 outubro 2005

A importância de uma voz



Ross McElwee, cuja obra está em retrospectiva no DocLisboa, é uma espécie de cineasta compulsivo. Desde os anos 70 que ele filma (em 16mm) os amigos, a família, tudo, misturando o improviso da vida com o improviso do cinema. Anos mais tarde, reconstitui e cola esses fragmentos de vida segundo uma linha narrativa frequentemente autobiográfica. Dele vi só 3 filmes: Charleen (1978), Backyard (1984) e Time Indefinite(1993).

Charleen é sobre uma sua amiga com muita personalidade e uma voz capaz de ocupar um ecrã inteiro sem deixar de surpreender o espectador. Em Time Indefinite, o assunto principal é a família e a resistência de Ross em aceitar as expectativas casamenteiras e procriativas típicas das famílias típicas. Esse (aparente) longo percurso de conversão, que começa quando aos 39 anos anuncia que vai casar, prossegue até ao nascimento do primeiro filho, após um primeiro aborto e a morte do pai – aos quais se juntam vários outros encontros com a morte: da imolação do marido de Charleen ao tumor canceroso de uma paciente do seu irmão, passando pela visita apocalíptica de uma testemunha de Jeová.

Os marcos principais desta autobiografia - centrada no eterno ciclo da vida – são o casamento, o nascimento e a morte - temas universais. O seu âmbito é todavia local. Ao retratar a família e os amigos, com suas convenções e crenças, todo um contexto social e cultural ganha existência palpável e reflecte o mundo em que se revêem os seus conterrâneos. Visto de fora, parece-me um quadro hiperrealista da América, através do qual reconhecemos hábitos exóticos como, por exemplo, o dilema entre guardar ou espalhar as cinzas dos mortos queridos, ou a cerimónia de recasamento nas bodas de ouro (com as meninas e senhoras vestidas de rendas brancas e todos os participantes da cerimónia, incluindo o padre, exclusivamente negros), ou a obrigação estatal de fazer análises de sangue antes de casar, acrescida do bónus de uma visita ao ginecologista para verificar se está “tudo a postos para cidade dos bebés”.

Mas o mérito do filme está todo na voz que entretece e conduz a narrativa por entre os vazios de acção e o pouco interesse ou a ausência de algumas figuras familiares, habilmente recuperadas como personagens fílmicas.

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