15 outubro 2005

A arte é uma ciência


Na linha de “o meio é a matéria”, vi no festival Temps des Images/CCB uma pequena mostra de filmes experimentais seleccionados e comentados por Jacinto Lageira e reunidos sob o lema “o corpo é uma projecção”.

Em Pièce Touché (1989), Martin Arnold faz uma decomposição de gestos simples, contidos numa pequena sequência fílmica (um homem que abre uma porta e beija uma mulher que se levanta), por um efeito de forward-rewind em unidades mínimas de movimento. Segundo percebi, ele corta a fita em fotogramas e redistribui-os de novo fazendo avançar e retroceder os pequenos movimentos (um abrir de porta, um virar de pescoço, um sorrir, um baixar, etc.) sem repetir nunca um mesmo frame. Portanto imagino que, numa sequência de 24 fotogramas, as encadeie, por exemplo, assim: 1-6-11-16-2-7-12-17-3-8-13-18-4-9-13-19-5-10-15-20-21-24-22-etc., mas com variações livres.

Com uma liberdade experimental capaz de tirar partido da expressividade mecânica de segmentos que reproduzem gestos e sinais corporais, ele joga também com o ritmo e com a alternância da imagem invertida em espelho, criando movimentos interiores ao quadro que são quase de dança, em resultado de um efeito óptico talvez aleatório.


Noutro trabalho visto, Why do things get in a muddle (1984), Gary Hill encena uma situação de metadiálogo (a partir de um texto de Gregory Bateson), ou seja, um diálogo que fala do que se faz, ou um filme que mostra do que se fala.

A figura da Alice de Carrol pergunta ao seu pai porque é que as coisas sempre se desorganizam em vez de se arrumar. O diálogo entre os dois actores foi filmado em modo reverso – particularmente as palavras que foram articuladas foneticamente invertidas – e os seus gestos e interacções com os objectos ilustram o princípio da desarrumação em retrocesso.

Em ambos os casos, estamos perante um jogo laborioso e hiperformalista, mais do que uma descoberta visual ou conceptual. Uma forma de encarar a actividade artística com o zelo de um artífice que escalpeliza o seu material até conseguir espremer o inimaginável. Um trabalho analítico sobre a matéria-prima do cinema - o movimento, o instante, o tempo, o som – cujas leis tácitas são aqui transformadas por força de uma imaginação experimental e para-científica. O filme é um corpo.

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