18 outubro 2005

A estética do sofrimento


Certamente o documentário Natureza Morta – Visages d’une Dictature, de Susana Sousa Dias, tem todos os méritos que lhe atribuem. Uma narrativa só por imagens, uma revelação da nossa memória arquivada, um exercício virtuoso de montagem, etc. Reconheço nele um filme fantasmático que teve a capacidade de activar em mim o sistema de alarme.

Ao contrário da expectativa, não encontrei um filme que fala por imagens, mas um filme em que fala mais alto a música, cujo expressionismo electroacústico - de frigoríficos medonhamente vibrantes e estampidos violentos de portas de ferro fechadas sobre alçapões - é capaz de nos colar à cadeira em estado de angústia irracional e grande desconforto. Eu sei que é intencional. Mas que intenção tem? Fazer-nos sofrer durante uma hora pelas vítimas do fascismo?

Toda a gente acredita que uma imagem vale por mil palavras, mas não é verdade, as imagens falam conforme o que se diz delas (pensemos no pseudo-arrastão de Carcavelos, que o filme de Diana Andringa, também presente no DocLisboa, desmonta). As imagens pouco valem sem as palavras, porque podem ser lidas de muitas maneiras (e as palavras também, mas não de tantas). Elas ganham sentidos que, neste caso, são induzidos pela música ou pelos raccords, que aqui se resumem a oposições simples: os brancos que aplaudem e os negros que desfilam nus, os que deitam foguetes e os que queimam aldeias africanas, as fotos dos prisioneiros e logo o ditador com sorrizinho, de um lado os carrascos, do outro o povo acabrunhado, em suma, os bons e os maus.

Mas a realidade do fascismo foi muito mais complexa. Já todos sabemos o que foi o fascismo. Todos nós participámos disso ou participaram as nossas famílias. Aliás, o fascismo continua entre nós. Nem é possível traduzi-lo por meio de uma parábola maniqueísta. Veremos este filme por uma espécie de masoquismo católico?

Qualquer grupo de gente subindo uma escada em câmara lenta parece um bando de esfomeados. Qualquer penitente de joelhos pode ser uma metáfora de mil coisas, mas qual delas? Os soldados enfermeiros que dão de beber às crianças negras (em latas da Sacor) parecem algozes. E as crianças que olham para a câmara pelo canto do olho suspenso no tempo parecem prisioneiros culpados. No filme de Susana Sousa Dias estamos prisioneiros da imagem.

Quando se usam e manipulam as imagens desta maneira, arrastadamente, analiticamente, repetidamente, há um comprazimento estético no olhar de quem as vê. Como podemos conciliar a beleza amoral das imagens em movimento com o juízo moral que elas descarregam sobre nós? O fascínio das imagens não deveria degenerar em horror ou vice-versa.

(visto ontem no DocLisboa)

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