15 outubro 2017

O concurso



Reabro este blogue para falar de um filme que me perturbou imenso, Le Concours de Claire Simon exibido na Festa do Cinema Francês, sobre as provas de admissão dos estudantes franceses à Escola Superior des Métiers de l'Image et du Son - La Fémis.

O processo começa com uma prova escrita realizada por centenas de candidatos acotovelados num anfiteatro à cunha, e acaba com o retrato de grupo das poucas dezenas de admitidos. Pelo meio assistimos a um desfile interminável e insistente de entrevistas, provas orais e comentários dos jurados (que não são professores da escola, mas profissionais chamados para fazerem uma apreciação qualificada dos candidatos). Quando digo "interminável" não pretendo referir-me à duração do filme, mas apenas à dureza das provas que presenciamos e que a mim me pareceram uma verdadeira tortura moral. Não porque os seleccionadores sejam agressivos ou os candidatos mal tratados, mas apenas porque o sistema que engrena este regime de selecção é bruto, injusto, inútil e errado.

A ideia de organizar uma selecção independente por profissionais convidados é certamente bem intencionada, tal como os seus participantes; mas o resultado é confrangedor. O que ressalta deste documentário é a subjectividade e a arbitrariedade dos juízos feitos acerca dos candidatos entrevistados de modo bastante pessoal, que os seleccionadores depois comentam com base em presunções de psicologia novelesca. Uns encantam-se mais com a graça de uma menina, outras com a tenacidade do rapaz que vem de uma família provinciana, outras comentam o charme dos italianos ou a descontracção dos chilenos (sim, no plural), outros duvidam da autenticidade mostrada pelos jovens examinados em provas públicas, outro ainda chega a dizer que desconfia das pessoas que se mostram muito seguras e há quem faça menção à doidice ou autismo dos candidatos! Por fim, acabam todos a discutir e a divergir - e nós, espectadores, percebemos perfeitamente a mensagem.

Refiro-me naturalmente à mensagem subjacente que a realizadora formula, enquanto manipuladora-mor desta peça de teatro retirada do real. Tenho pois que relativizar e supor que outras opiniões mais ponderadas também existam neste universo em que participam 250 avaliadores. Coube à realizadora evidenciar os aspectos discutíveis do processo, marcando o seu ponto de vista pessoal. E fez um trabalho de muito mérito. Mas, na conversa que se seguiu à projecção, quando 4 ou 5 espectadores se mostraram críticos à realidade mostrada, de todas as vezes Claire Simon pareceu fugir ou contrariar a questão, frisando as boas intenções dos participantes, que o sistema é justo, que é usado em todo o mundo, que os envolvidos gostaram do filme, que os cidadãos devem poder conhecer o método de selecção de uma instituição pública, etc... Talvez o filme seja mais cruel do que lhe convém admitir, como professora que já foi da escola.

Sim, haveria outras formas de tornar esta avaliação mais objectiva, com exercícios preparados para testar capacidades, conhecimentos e criatividade. O senso comum não basta. Juízos psicológicos de algibeira também não. Bem sei que também por cá se usam métodos de selecção apertada, na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Não sei em que moldes, mas conheço muitos que foram rejeitados. Pensam que essa dor não dura toda a vida? Imaginam quanto esforço é preciso para, apesar disso, persistir em fazer cinema, quanto isso é uma necessidade interior? Felizmente nunca me sujeitei a tal prova, mantive intacto o meu entusiasmo.

Assim, ficou clara a profunda subjectividade, arbitrariedade e injustiça (desculpem repetir) deste sistema. Porque, além do processo, há os números. De todos os alunos que passam por estas provas, apenas 3% serão escolhidos. Desperdiçam-se talentos, capacidades, trabalho, criatividade, tempo, dinheiro - e tudo para um resultado provavelmente medíocre. Porque de certeza ficaram de fora, amargurados, de pernas cortadas, traumatizados, inseguros e infelizes, um mar de gente cuja grande vontade juvenil (se não fosse grande não se sujeitavam a tais provas) é fazer cinema. Mas o sistema só deixa entrar alguns eleitos. O sistema dá-se ao luxo de rejeitar centenas de jovens cheios de energia, sonhos, capacidades, vida e promessas. Em nome de quê? Em nome de uma ideologia (outro nome não tem) que considera isto normal: criar elites e inculcar o espírito de competição.

Ora, correndo o risco de generalizando errar, se nenhum dos participantes desta farsa acha isto uma aberração, então é porque interiorizaram e aceitam que o mundo assim seja; que acham normal o direito para poucos de fazer o que desejam na vida, que não questionem a falta de equidade deste jogo de azar, que se sujeitem a tudo suportar. Que acreditem afinal que a vida é como um concurso imbecil de televisão. Não seria o cinema (ou a sociedade) muito melhor, mais capaz e inteligente se, em vez de 3 alunos de "Distribuição", aceitassem 30, que viriam a ser distribuidores, programadores e difusores de cinema? Que, se calhar, além disso se tornariam críticos, professores, inventores do cinema do futuro. Se em vez de poucos realizadores (não disseram quantos admitem), tivessem dez vezes mais, não teríamos muito melhores filmes? Se em vez de competidores, carreiristas e individualistas, estes estudantes fossem cooperadores entre si? E mais e mais argumentistas e produtores e fotógrafos e técnicos cheios de sangue fresco não fariam uma revolução no cinema independente? Ups! Independente, revolução? O sistema deixaria isso acontecer? É claro que não. Talvez os candidatos recusados sejam mais felizes como arrumadores de salas de cinema, como o rapaz que no final da sessão veio conversar comigo...

Por que não deixar a selecção natural funcionar e esperar que os menos talentosos, os mais preguiçosos ou os enganados descubram por si o que querem e podem fazer. Em vez de serem os presumidos iluminados dos avaliadores a decidir antes sequer de aqueles terem começado. Quem é que sabe aos 18 ou 20 anos ao certo o quer ser na vida? Ninguém nasce com jeito para cineasta ou fotógrafo, senão o cinema já tinha aparecido há séculos. As pessoas e sobretudo os jovens descobrem o mundo ao mesmo tempo que se descobrem e desenvolvem. O que conta é ter vontade. Quem disse que não há lugar para todos? Quem disse que as pessoas não podem ser aquilo que desejam? As profissões criativas não precisam de patrão, são de geração espontânea.

P.S. Assinale-se os terríveis defeitos e falhas de projecção (que suponho devidas ao uso de bluray) inaceitáveis num festival.
 

Apresentação (em francês): https://www.youtube.com/watch?v=TKvFfqbDq3U

Outras críticas:
https://www.newyorker.com/culture/richard-brody/a-documentary-that-explains-the-dearth-of-innovative-young-french-filmmakers
http://www.hollywoodreporter.com/review/graduation-le-concours-venice-review-924851
https://www.theguardian.com/film/2017/sep/17/the-graduation-review-la-femis-spotlight-le-concours-claire-simon
http://leblogdocumentaire.fr/concours-claire-simon-face-aux-reves-de-cinema-futurs-etudiants-de-femis/