29 junho 2006

Cinema-saudade



O documentário Encontros - que abriu os encontros de Serpa sobre documentário – é como um segundo capítulo do anterior filme de Pierre-Marie Goulet, Polifonias (1997). Seguindo os traços do percurso de Michel Giacometti pelo canto popular e também as pegadas de António Reis, ainda só poeta, na memória daqueles que o conheceram, o filme assume-se como um retrato de uma “tribo” cultural, um grupo “informal” e disperso de pessoas que partilham afinidades electivas. É uma tribo de idealistas que conserva a memória de uma cultura camponesa expressa na poesia e no canto populares, ligada à terra como uma árvore de raízes seculares que se recusa a ser cortada.

O filme constrói-se por camadas: os lugares que se alternam, as personagens que revisitamos e se visitam entre si, os momentos que se confundem como fluxos intemporais. A câmara, em travelling lento quase constante, numa espécie de ralenti inverso, acusa uma imobilidade paradoxal: a de uma memória trabalhada para suster a sua presença e a do movimento da vida que se procura quase imobilizar.

É um filme sobre a memória - de um tempo que passou. E é na forma mesma do filme que se revela a estrutura dessa memória: pela reiteração de imagens (o travelling da esquina em Peroguarda, por exemplo); pelo retorno aos locais e personagens, como quem retoma a conversa no mesmo ponto; pela repetição de poemas e vozes em off; na imagem inicial que, em movimento inverso, fecha o filme; na glosa temática e estrutural do filme Polifonias; na repetição da viagem à Córsega, qual peregrinação; por fim, na sua matéria prima, a poesia e o canto populares, que corporizam a evocação de um tempo cíclico e presentificam ad eternum o sofrimento dos camponeses. Nesta circularidade interna está contida a forma cinemática da memória – aqui nitidamente feita da matéria da saudade.

António Reis enquanto cineasta está estranhamente omisso nesta evocação. E, apesar de justificada pelo realizador (na conversa após o filme), esta ausência causa perplexidade, por ser evidente a filiação de Goulet na estética da “poesia da terra” de Reis, e por ser este um perfeito metafilme dessa mesma formulação de cinema. Quem não conheça o cinema de Reis não o poderá perceber, e é dessa referência que se sente a falta.

Em compensação, temos Paulo Rocha e o seu filme Mudar de Vida (com diálogos escritos por António Reis) que é projectado perante a população participante quase 40 anos depois, com a presença do realizador. A longa (e retomada) sequência que alterna planos do filme original e lentos travellings através da coxia, enquanto a projecção decorre e registando as reacções do público, condensa o tema central de Encontros, ao mostrar o passado projectado no presente. A voz de Paulo Rocha explicando que quis registar o modo de vida dos pescadores no litoral nortenho antes que acabasse - para deixar memória – expõe verbalmente o propósito deste outro filme que o envolve. Um filme de paisagens belas e intemporais e suspiros de solidão. Um filme sobre um passado em vias de extinção.

(Visto no Doc’s Kingdom em Serpa.)

23 junho 2006

Sentido

Na sessão do "directo-em-questão" falou-se sobretudo do método de filmagem, ou de como diferentes situações conduzem a diferentes estratégias. Como depois disse Rahul Roy, mais importante que uma “obsessão pela pureza”, em que ele não acredita, é ser o documentário uma forma artística baseada em objectos encontrados (“found objects”) e numa estratégia para ir ao seu encontro.

E embora a rodagem seja uma fase crucial na construção do olhar, só na montagem se define o sentido do filme. Geralmente, o realizador baseia as suas decisões em certas intuições fortes e iniciais. Mas à medida que se vai familiarizando com o material n vezes repetido, perde a distância e o juízo crítico. Só lhe resta confiar nas suas visões iniciais (com isto pressupondo o carácter visionário do trabalho do cineasta).

É por isso – por haver distância - que é sempre mais fácil criticar o trabalho dos outros que o nosso. Mas não somos todos como Wiseman, que nunca muda nada num filme por ouvir opiniões alheias, como ele o disse, e que prefere confiar no seu próprio juízo, pois não há nenhuma cena que não esteja racionalmente justificada no filme. E é por isso que não se incomoda nada de obrigar o espectador a ver um filme com mais de 4 horas sem fazer intervalo (o que é uma prova atlética difícil, mas vale sempre a pena).

A lição de Wiseman, em Serpa, (a que não assisti no sábado) desenvolveu-se, segundo me contaram, a partir de excertos de obras suas, sobre os quais o realizador dirigia perguntas à assistência, promovendo uma reflexão a nível da interpretação dos segmentos. (Bem gostava que algum bloguista se lembrasse de reunir as suas notas deste close reading...)

A discussão sobre o sentido dum filme – que não sobre o real que preside ao filme – torna-se cinematográfica pertinente quando se analisa e interpreta – a partir das opções do filme - o sentido de cada sequência e da sequência das sequências. Quando, além do texto (as imagens), se lê o subtexto (as intenções) – forma de pensamento muito americana e por isso muito clara. A nossa (?) maneira de pensar é muito mais metafórica, palavrosa, indirecta...

(Notas sobre o Doc's Kingdom em Serpa.)

22 junho 2006

Objecto, objectivo, dispositivo

Sob a ideia, abaixo referida, de que um olhar sobre o mundo implica um olhar sobre o cinema (ou seja, uma forma de fazer cinema), José Manuel Costa e Nuno Lisboa reuniram um conjunto de excertos de documentários portugueses mais ou menos recentes e convidaram os realizadores a pronunciarem-se sobre as suas abordagens do cinema-directo.

Abriu-se assim, em Serpa, a discussão de como as opções do cineasta decorrem da sua visão do mundo; ou de como o acto filmar o mundo obriga a tomar uma posição dentro do próprio cinema. Esta colocação do problema diverge um pouco da ideia mais corrente de que um olhar cinematográfico conduz a uma forma (estético-política) de olhar o mundo. Aqui interessava mais falar do processo que começa no mundo para chegar ao cinema.

O processo será: perante um objecto, ter um objectivo e definir um dispositivo - três passos para descrever um método. Desde logo se percebe que este “método” varia em função das circunstâncias, das condicionantes e das interacções de cada filme. Analisados caso a caso, todos os filmes revelam uma metodologia específica, coerente e pensada – sobre a qual falaram os cinco realizadores convidados.

Catarina Alves Costa explicou que em “Senhora Aparecida” (1994) optou por usar 3 câmaras em simultâneo para seguir 3 personagens-chave na decisão eminente de realizar-se ou não a procissão dos caixões em Lousada. Só por essa razão conseguiu registar o momento culminante desse filme, sem o qual possivelmente nem haveria filme. A realizadora atribuiu também essa conquista ao factor sorte, mas parece-me a mim que a estratégia que usou foi muito mais importante, e determinante até da decisão de prosseguirem com a procissão, porque a presença das câmaras poderá ter reforçado a revolta e a convicção dos populares contra o padre (que queria cancelar o desfile de caixões).

No seu primeiro filme, “Regresso à terra” (1992), Catarina Alves Costa salientou a proximidade aos habitantes da aldeia e a sua permanência in loco que lhe deu acesso a uma dimensão temporal diferente (vimos o excerto inicial de duas pastoras na serra, cansando-se, descansando e depois dormindo).

Catarina Mourão comentou o excerto escolhido de “A Dama de Chandor” (1998) no qual, tendo decidido dar folga ao operador de câmara naquele dia, para poder entrar na intimidade do quarto da senhora, conseguiu captar situações em que a atitude da personagem se altera nitidamente quando fala com estranhos (uma equipa de filmagem que vem fazer um répérage na sua casa) ou quando eles saem (e ela se sente de novo à vontade em frente da equipa de filmagem que já pertence à sua esfera íntima).

Acerca de “O que pode um rosto” (2002), Susana Nobre falou do dispositivo que usou para filmar as consultas médicas no hospital oncológico: a câmara centra-se só no plano do médico, ou só no plano do doente, mesmo enquanto o outro fala prolongadamente. O efeito demonstra “o que pode um rosto” exprimir em reacção ao que está a ouvir; ou ainda o efeito que podem causar as palavras do médico quando não vemos a pessoa a quem dirige tão terríveis mensagens. Sendo uma solução prática minimamente perturbadora, consegue, por este recurso minimal, representar e potenciar a violência da situação.

Acerca do meu filme “Doutor Estranho Amor” (2005), expliquei que tendo filmado sozinha, com um microfone direccional sobre a câmara, vi-me condicionada a filmar segundo o som. Como se tratava de uma turma de adolescentes em ebulição permanente, optei geralmente por enquadrar as situações de interacção segundo um eixo criado entre o primeiro plano e um segundo plano entre os quais se desenvolvia o diálogo. Para combater a dispersão natural do contexto, joguei pela antecipação e procurei as personagens mais marcantes.

De Pedro Sena Nunes, foi mostrado o final de “Entraste no jogo, tens de jogar” (1999), descrição hiperrealista de uma romaria popular, onde o plano de um miúdo tocando acordeão no alto do monte é intercalado com sucessivas vistas da vasta paisagem circundante e invadida pela música. Esta estratégia, que é de montagem, traduz um olhar direccionado e intencionalista sobre o objecto do real.

Este exercício analítico (que a alguns assistentes pareceu demasiado denso de exemplos e rarefeito em profundidade) teve, para mim, o mérito de demonstrar como as opções de método se encontram inscritas em cada filme e podem ser lidas a partir das imagens que nos são dadas. Ou seja, o olhar é uma coisa “escrita” no próprio filme, assim como a relação da equipa de filmagem com as personagens. Em documentário, é difícil as imagens mentirem - não sobre a história que contam - mas sobre quem a conta.

(Visto no Doc’s Kingdom em Serpa.)

20 junho 2006

Cinema em directo



O programa do Doc’s Kingdom de quinta-feira passada foi cheio de filmes e reflexões que o seu organizador, José Manuel Costa, sintetizou na paráfrase “um ponto de vista sobre o mundo é um ponto de vista sobre o cinema” - que inverte os termos da equação mais corrente, dirigindo assim a atenção para a “existência de um princípio construtor por detrás de cada plano” e suscitando o diálogo sobre as “metodologias recentes do cinema directo”.

O filme The City Beautiful (2003), do documentarista indiano Rahul Roy, acompanha a vida de duas famílias pobres (de Nova Deli) cujos homens perdem o emprego de tecelões – surgindo o problema de aceitarem ou não que as mulheres vão trabalhar. Outras temáticas atravessam o filme: o quotidiano e as relações familiares, as razões macroeconómicas que tornam inviáveis os meios de produção artesanais, os desenganos sofridos.

O método de Roy é ainda mais directo que o de Wiseman, pois a sua proximidade aos personagens é muito maior: pela pequenez do espaço doméstico (porque a família não é uma instituição como as outras) e sobretudo porque Roy mantém com as pessoas filmadas uma interlocução discreta que sustenta o diálogo (como se fosse alguém da família que com elas fala) e permite conhecê-las mais intimamente. Esta interacção e a possibilidade de filmar as mulheres sozinhas dentro de casa (obstáculo que o realizador explicitou após a projecção) baseiam-se numa confiança conquistada - que dá origem a um retrato de família sensível e forte.

À Flor da Pele (2006), de Catarina Mourão, observa também um microcosmo – o das crianças de um pequeno bairro social no Porto – durante um período de tempo balizado pelo campeonato de futebol Euro 2004. Os jogos, as brincadeiras e as conversas das crianças – aqui observadas de perto – remetem para a questão da reprodução social e da mimesis de valores – o entusiasmo pelo futebol, ou a separação entre papeis femininos e masculinos - que as crianças tão facilmente revelam - apesar do filme se dispersar num certo folclore que mistura futebol, quotidiano, personagens castiças e vox populi.

O mais curioso é que, sob o olhar escrutinador das crianças, o observador transforma-se em observado, alvo de comentários e perguntas pessoais que a realizadora não descartou na montagem, preferindo assumir a qualidade "à flor da pele" deste contacto e desenvolver a interlocução como recurso directivo para questões que não surgem espontaneamente: por exemplo, perguntar às crianças quais são as suas brincadeiras habituais, em vez de as filmar a brincar; questioná-las sobre o mundo («como que achas que será daqui a 3000 anos?») em situação quase de entrevista, na qual as crianças assistentes estão em posição recuada atrás da câmara, mas tentando fazer interferências.

Neste jogo um tanto ambíguo de pontos de vista, a transparência do método revela paradoxalmente uma opacidade, que só a conversa com a autora tornou clara, após a projecção, quando explicou o que ficou de fora da montagem: por exemplo, a forma por que um dos miúdos, que inicialmente lhe parecera secundário, acabou por se destacar; ou a crueldade dos amigos fazendo-o alvo de troça.

Ao contrário dos anteriores, o filme de Pedro Sena Nunes sobre a aldeia de pescadores da Meia-Praia (Algarve), usa a interlocução como recurso estruturante da sua indagação acerca da identidade destes habitantes chamados de “índios” desde a canção de Zeca Afonso. Sempre em volta dessa hipotética identidade, o realizador assume no título escolhido – Elogio ao Meio - a justificação para o ponto de vista que prefere a recriação do mito à observação do real. A utilização do dispositivo de entrevista formal, típico da reportagem, tem como principal consequência não conseguir aproximar-se da verdade das personagens nem apalpar a vida real.

Dos dois filmes portugueses guardei estas impressões: a dúvida de não ter havido uma relação suficientemente aprofundada com os protagonistas; a indefinição dos seus métodos e objectivos; e a facilidade em trocarem a persistência do cinema-directo pela imediatez do "em directo".

(Visto no Doc’s Kingdom em Serpa.)

18 junho 2006

Cinema indirecto



Frederick Wiseman, no seu documentário Belfast, Maine (1999), faz um retrato de cidade que ganha a estatura de mundividência - a sua visão como cineasta anatomista da sociedade. Este filme reúne, numa estrutura de mosaico, grande parte das instituições que foram isoladamente alvo dos seus filmes ao longo de 30 anos: o hospital, a assistência social, o tribunal, a escola, etc.

A unidade do filme e seu assunto central surgem da descrição minuciosa de como a comunidade se constrói e mantém e de como o indivíduo é integrado nela. Todas as cenas do filme mostram actividades em que uns servem os outros – seja na fabricação em série das comidas, seja na assistência aos idosos e doentes, no apoio social a mães pobres ou com problemas familiares, na reabilitação de deficientes mentais, seja na escola, no tribunal, nas lavandarias, nas igrejas, no coro, na aula de dança ou na lição de batuque, no tiro ao alvo, na aula de arranjos florais, etc.

São sempre situações em que sobressai o objectivo da acção colectiva ou para o colectivo. Salvo duas ou três excepções, nunca o indivíduo é olhado como ser autónomo ou livre. E o interesse da comunidade por ele é de ordem essencialmente funcional – ou porque ele faz parte de uma cadeia alimentar ou de mantimento da organização social ou porque ele se torna disfuncional e o sistema comunitário toma conta dele. Esta ideia torna-se clara através de uma montagem reiterativa em que sequências diferentes, mais do que se complementarem, se reforçam nas suas evidências.

A metáfora da lata de sardinhas, aqui várias vezes glosada - em fatias de salmão, em puré de batata, em donuts de chocolate, em peles de lobo. etc. – poderia ser igualmente demonstrada numa creche ou numa escola primária, autênticas fábricas de produção em série. Mas no filme não aparece a infância nem a escola, o local onde se exerce grande parte da modelagem social. A sequência na escola secundária – a aula sobre Moby Dick e o sonho americano defraudado - é mais ideológica do que funcional. Num retrato abrangente de uma cidade esta é uma omissão estranha.

No debate após o filme, Wiseman, interpelado por Luciana Fina acerca dessa ausência, declinou a questão numa resposta rápida. Mas este retrato social que omite ostensivamente o trabalho da comunidade com as crianças resultará talvez de uma orientação que está bastante vincada no filme: a antecipação de uma sociedade onde restam os velhos, os doentes, os disfuncionais e os funcionários.

Ou talvez ainda se explique pelo olhar peculiar de Wiseman: a sua atenção à rotina dos gestos que, representando cada instituição, são a matéria-prima de uma certa crueldade, que alguns acham cínica, mas outros vêem como da ordem da tragédia humana. A posição de Wiseman como cineasta é a de uma distância convenientemente desafectada em relação às pessoas filmadas – porque o seu olhar cirúrgico de montador é um olhar clínico.

No seu método observacional muito simples – que ele se cansa de explicar e repetir em todas as conferências – é a montagem que tem a primazia como instrumento de criação de sentido. No entanto, o autor parece recusar-se a responder às perguntas que incidem sobre a interpretação das cenas ou do discurso indirecto subjacente, como evitando fechar o sentido da obra numa explicação autoral definitiva. Assim, deixa ao espectador a responsabilidade da interpretação, como se tudo o que houvesse a dizer já estivesse escrito no filme.

A excepção à regra - à temática do colectivo - são duas cenas de pintores solitários (uma no início, outra no fim) cuja função no filme permanece misteriosa e que, a pedido de Nuno Lisboa, o autor se recusou a explicar. A minha interpretação dessas cenas seria que são como duas janelas que ele deixa abertas no filme: duas saídas para o mundo do indivíduo solitário que recria o mundo como o quer ver. Mas as explicações são sempre redutoras, estragam as metáforas.

A terceira excepção é a cena do ensaio de teatro em que uma personagem se revolta contra o seu patrão por não lhe dar trabalho, por não ser solidário, por não ser humano. Esta cena tem uma função antagonista face à ideologia cultivada pelas instituições reguladoras da vida social, e o papel de uma ruptura anunciada de valores: a solidariedade humana versus a solidariedade institucional. É uma cena importante que, como assinalou José Manuel Costa, representa um ponto de viragem para a segunda parte mais sombria e violenta do filme. «Yes.», respondeu Fred secamente.

(Visto no Doc’s Kingdom em Serpa.)

09 junho 2006

Antes do adeus



Com o passar do tempo, todas as ficções se tornam um pouco documentários, seja porque se referem a uma maneira datada de viver, de pensar e de fazer cinema, ou porque guardam traços de existência, modos de falar, gestos peculiares. Tornam-se testemunhos – raros até - de uma vida passada.

Antes do Adeus, ficção de Rogério Ceitil produzida em 1977, retrata o quotidiano de um grupo de jovens de uma pequena vila nas vésperas do 25 de Abril e os seus esforços de resistência cineclubista. O grupo da “secção cultural” tenta pedir ao “presidente” apoio para um ciclo de cinema, mas as prioridades deste são a contratação de um futebolista para que o clube possa subir de divisão; na biblioteca local (aberta até à meia noite) os jovens aproveitam para policopiar numa máquina de stencil comunicados apelando ao 1º de Maio; o namorado leva a namorada a casa, mas o pai tirano vocifera contra as más companhias com que ela anda, enquanto a mãe (Glicínia Quartin) submissa se cala e o ”senhor prior” procura levá-la ao confessionário. Para conseguirem projectar os filmes na sala de jogo do loto (bingo), os jovens fazem chantagem com o médico responsável do clube (Canto e Castro) que fotografaram num dos seus encontros com “uma gaja”. Durante sessão em que passa o Belarmino de Fernando Lopes, um telefonema anónimo avisa que a PIDE vai prender um dos rapazes; rapidamente combinam sair em grupo e dispersar a correr. Os pides perdem-lhes o rasto e o rapaz, mergulhado no rio, escapa-se num barco de pescador. A rapariga, cujo irmão morreu na guerra em África, acaba por perceber que o seu pai é informador da Pide, foge de casa e vai dormir no quarto alugado do namorado, em casa de uma senhora viúva muito preocupada com a indecência.

É um filme prosaico e muito realista, na sua descrição do marasmo contrariado e da sensação de paz podre. Rico de apontamentos descritivos e explicativos, testemunha e, hoje, documenta como era viver sob o fascismo. A sua autenticidade está também na naturalidade dos actores, sem artifícios, sem gestos, sem ênfases. Feito com poucos meios, opta pela simplicidade cinematográfica: cada cena é filmada em continuidade (o fotógrafo e operador é António Escudeiro), quase num só plano-sequência e com uma técnica próxima do documentário, admirável na síntese conseguida. Mas mais do que uma opção de penúria, essa parece ser uma opção estética, uma opção pelo cinema-directo, consentânea com a euforia desses anos pós-revolução em que o documentário tomou a dianteira à ficção no cinema português.

Nunca estreado comercialmente, passou agora pela primeira vez na Cinemateca, mas recebeu de Jorge Leitão Ramos (no seu Dicionário) a mais dura crítica - arrogante e injusta. Talvez este e outros críticos o achassem na altura um filme cândido e provinciano (imagino), mas hoje essa característica torna-o simplesmente realista. Talvez parecesse um filme menor, sem grandes causas nem grandes paixões, sem apuro formal nem metáforas. Se o compararmos com O Mal Amado (de Fernando Matos Silva, 1972-74) e Brandos Costumes (de Alberto Seixas Santos, 1973-75), feitos ainda sob regime de censura, não usa, como estes, elipses, nem símbolos, nem alegorias teatrais, subterfúgios que contornavam e representavam a asfixia da época. Ao contrário, este filme, feito em liberdade, fala directamente de uma memória recente e procura caracterizar com fidelidade um quotidiano claustrofóbico, ao mesmo tempo que desenha com exactidão uma estrutura social e os esquemas de influência, controle e delação que a sustentavam. Por isso é um documento tão interessante e surpreendente.

A história termina com ironia, já no 26 de Abril: o cacique virando a casaca num discurso pró MFA e o grupinho reunido elaborando, sobre a máquina de escrever, a denúncia dos falsos novos-democratas.

(Visto na Cinemateca em 07-06-06)

06 junho 2006

Disciplina



Não vi a famigerada reportagem da RTP1 sobre indisciplina escolar, filmada com câmaras ocultas, identidades ocultas e propósitos ocultos. Li muita da discussão que se gerou e que apresenta duas tendências importantes: uma que considera (mais ou menos) ilegítimos os meios de gravação de imagens, assunto que não deixa ninguém indiferente pelo que traz de prenúncios de uma sociedade controlada; outra que considera insustentável a situação de indisciplina escolar e meritório o debate promovido pelo dito filme.

O que me preocupa não é nem uma nem outra dimensão do problema levantado por este (bizarro) método. O que me assusta são os ecos dessa discussão e os efeitos. O primeiro efeito é ouvir-se extrapolar de 1 caso mostrado para uma situação generalizada de indisciplina escolar; o segundo efeito é transmitir-se a sensação de que este problema “geral” é insolúvel; o terceiro efeito é fazer crer ao senso comum que a escola em geral precisa de mais disciplina e autoridade. A partir daqui tudo pode ser justificável: tudo.

O problema insanável, para mim, é a irresistível tentação humana para generalizar sinais e criar categorias – o mesmo processo básico de qualquer racismo ou discriminação. Neste caso da educação, não há, como alguns já clamam, uma solução definitiva para o “problema” da escola. O problema da escola é um problema que a ultrapassa e tem origem noutros problemas sociais, um dos quais será os 2 milhões de pobres actuais. Como é que a escola sozinha poderia resolver satisfatoriamente um problema que vem de fora?

Mas a escola tem feito milagres, exemplos de tenacidade dos professores são inúmeros, resultados obtidos também. É pena a televisão não saber extrapolar estes casos – mostrar que também há soluções, que cada solução é diferente, que cada caso é um caso, que cada criança é única, que cada família... É pena não mostrar que para haver disciplina não há soluções únicas; que não precisamos de um novo salazar. Mas a voz do dono diz o contrário e as pessoas acabarão por acreditar.

Para mim, isto é um pré-aviso muito claro de um neo-fascismo a espalhar tentáculos na nossa existência quotidiana. É tanto mais evidente quanto surge por meio da instituição omnipotente chamada televisão, dispositivo de controlo remoto dos ânimos sociais. Não tardará muito que as escolas tenham em cada sala uma câmara e polícias "escola segura" a vigiar ecrãs.

Outras opiniões:
http://inquietacaopedagogica.blogspot.com/2006/06/sonhar-com-autoridade-perdida-e.html
http://ocanhoto.blogspot.com/2006/05/arrasto-parte-ii.html

P.S. A reportagem está acessível online em mms://195.245.176.20/rtpfiles/videos/ocas/violencianasescolas20060530.wmv a partir de http://multimedia.rtp.pt/area_home_video.php . Agora que a vi, posso dizer que me parece que a excepcionalidade das situações está suficientemente acautelada na reportagem e no debate que se segue. Mas também não me chocou demasiado aquilo que vi passar-se nas aulas: a indisciplina de andar à luta, de subir acima das mesas, etc. não é nova, lembro-me de coisas piores no pós-25 de Abril, percebo a energia incontrolável daqueles miúdos à toa e desejosos de captar atenções, a fraqueza de alguns professores. Eu própria como professora já lidei com situações semelhantes e sei que cada caso merece uma resposta específica e adequada. Também já filmei em muitas salas de aula, inclusive situações de indisciplina. O erro deste programa está em procurar fazer um diagnóstico global e discutir soluções gerais, a partir de depoimentos individuais. Mas não achei malévolo nem maléfico: pode ser interessante que os espectadores se revejam naqueles casos. O problema é que as pessoas generalizam muito facilmente e logo concluem que o “sistema” está “degradado”, que “isto vai de mal a pior”, que antigamente não era assim, que a escola já não é escola... Tomam a árvore pela floresta, confundem o cu com as calças (tomam a parte pelo todo, ou seja, pensam por menonímia). Mobilizam emoções fortes, mas julgam que detêm a razão. Alimentam o pessimismo e maledicência, duas artes incapazes de contribuir para a solução dos problemas.

P.P.S. Não vejo este “neo-fascismo” como uma ameaça que vem do “sistema”, vejo-o como um estado de espírito perigoso porque alastra do indivíduo ao grupo, porque se aloja no íntimo de cada um como um sentimento de medo. O medo colectivo é o cerne da definição de fascismo.