09 junho 2006

Antes do adeus



Com o passar do tempo, todas as ficções se tornam um pouco documentários, seja porque se referem a uma maneira datada de viver, de pensar e de fazer cinema, ou porque guardam traços de existência, modos de falar, gestos peculiares. Tornam-se testemunhos – raros até - de uma vida passada.

Antes do Adeus, ficção de Rogério Ceitil produzida em 1977, retrata o quotidiano de um grupo de jovens de uma pequena vila nas vésperas do 25 de Abril e os seus esforços de resistência cineclubista. O grupo da “secção cultural” tenta pedir ao “presidente” apoio para um ciclo de cinema, mas as prioridades deste são a contratação de um futebolista para que o clube possa subir de divisão; na biblioteca local (aberta até à meia noite) os jovens aproveitam para policopiar numa máquina de stencil comunicados apelando ao 1º de Maio; o namorado leva a namorada a casa, mas o pai tirano vocifera contra as más companhias com que ela anda, enquanto a mãe (Glicínia Quartin) submissa se cala e o ”senhor prior” procura levá-la ao confessionário. Para conseguirem projectar os filmes na sala de jogo do loto (bingo), os jovens fazem chantagem com o médico responsável do clube (Canto e Castro) que fotografaram num dos seus encontros com “uma gaja”. Durante sessão em que passa o Belarmino de Fernando Lopes, um telefonema anónimo avisa que a PIDE vai prender um dos rapazes; rapidamente combinam sair em grupo e dispersar a correr. Os pides perdem-lhes o rasto e o rapaz, mergulhado no rio, escapa-se num barco de pescador. A rapariga, cujo irmão morreu na guerra em África, acaba por perceber que o seu pai é informador da Pide, foge de casa e vai dormir no quarto alugado do namorado, em casa de uma senhora viúva muito preocupada com a indecência.

É um filme prosaico e muito realista, na sua descrição do marasmo contrariado e da sensação de paz podre. Rico de apontamentos descritivos e explicativos, testemunha e, hoje, documenta como era viver sob o fascismo. A sua autenticidade está também na naturalidade dos actores, sem artifícios, sem gestos, sem ênfases. Feito com poucos meios, opta pela simplicidade cinematográfica: cada cena é filmada em continuidade (o fotógrafo e operador é António Escudeiro), quase num só plano-sequência e com uma técnica próxima do documentário, admirável na síntese conseguida. Mas mais do que uma opção de penúria, essa parece ser uma opção estética, uma opção pelo cinema-directo, consentânea com a euforia desses anos pós-revolução em que o documentário tomou a dianteira à ficção no cinema português.

Nunca estreado comercialmente, passou agora pela primeira vez na Cinemateca, mas recebeu de Jorge Leitão Ramos (no seu Dicionário) a mais dura crítica - arrogante e injusta. Talvez este e outros críticos o achassem na altura um filme cândido e provinciano (imagino), mas hoje essa característica torna-o simplesmente realista. Talvez parecesse um filme menor, sem grandes causas nem grandes paixões, sem apuro formal nem metáforas. Se o compararmos com O Mal Amado (de Fernando Matos Silva, 1972-74) e Brandos Costumes (de Alberto Seixas Santos, 1973-75), feitos ainda sob regime de censura, não usa, como estes, elipses, nem símbolos, nem alegorias teatrais, subterfúgios que contornavam e representavam a asfixia da época. Ao contrário, este filme, feito em liberdade, fala directamente de uma memória recente e procura caracterizar com fidelidade um quotidiano claustrofóbico, ao mesmo tempo que desenha com exactidão uma estrutura social e os esquemas de influência, controle e delação que a sustentavam. Por isso é um documento tão interessante e surpreendente.

A história termina com ironia, já no 26 de Abril: o cacique virando a casaca num discurso pró MFA e o grupinho reunido elaborando, sobre a máquina de escrever, a denúncia dos falsos novos-democratas.

(Visto na Cinemateca em 07-06-06)

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