18 junho 2006

Cinema indirecto



Frederick Wiseman, no seu documentário Belfast, Maine (1999), faz um retrato de cidade que ganha a estatura de mundividência - a sua visão como cineasta anatomista da sociedade. Este filme reúne, numa estrutura de mosaico, grande parte das instituições que foram isoladamente alvo dos seus filmes ao longo de 30 anos: o hospital, a assistência social, o tribunal, a escola, etc.

A unidade do filme e seu assunto central surgem da descrição minuciosa de como a comunidade se constrói e mantém e de como o indivíduo é integrado nela. Todas as cenas do filme mostram actividades em que uns servem os outros – seja na fabricação em série das comidas, seja na assistência aos idosos e doentes, no apoio social a mães pobres ou com problemas familiares, na reabilitação de deficientes mentais, seja na escola, no tribunal, nas lavandarias, nas igrejas, no coro, na aula de dança ou na lição de batuque, no tiro ao alvo, na aula de arranjos florais, etc.

São sempre situações em que sobressai o objectivo da acção colectiva ou para o colectivo. Salvo duas ou três excepções, nunca o indivíduo é olhado como ser autónomo ou livre. E o interesse da comunidade por ele é de ordem essencialmente funcional – ou porque ele faz parte de uma cadeia alimentar ou de mantimento da organização social ou porque ele se torna disfuncional e o sistema comunitário toma conta dele. Esta ideia torna-se clara através de uma montagem reiterativa em que sequências diferentes, mais do que se complementarem, se reforçam nas suas evidências.

A metáfora da lata de sardinhas, aqui várias vezes glosada - em fatias de salmão, em puré de batata, em donuts de chocolate, em peles de lobo. etc. – poderia ser igualmente demonstrada numa creche ou numa escola primária, autênticas fábricas de produção em série. Mas no filme não aparece a infância nem a escola, o local onde se exerce grande parte da modelagem social. A sequência na escola secundária – a aula sobre Moby Dick e o sonho americano defraudado - é mais ideológica do que funcional. Num retrato abrangente de uma cidade esta é uma omissão estranha.

No debate após o filme, Wiseman, interpelado por Luciana Fina acerca dessa ausência, declinou a questão numa resposta rápida. Mas este retrato social que omite ostensivamente o trabalho da comunidade com as crianças resultará talvez de uma orientação que está bastante vincada no filme: a antecipação de uma sociedade onde restam os velhos, os doentes, os disfuncionais e os funcionários.

Ou talvez ainda se explique pelo olhar peculiar de Wiseman: a sua atenção à rotina dos gestos que, representando cada instituição, são a matéria-prima de uma certa crueldade, que alguns acham cínica, mas outros vêem como da ordem da tragédia humana. A posição de Wiseman como cineasta é a de uma distância convenientemente desafectada em relação às pessoas filmadas – porque o seu olhar cirúrgico de montador é um olhar clínico.

No seu método observacional muito simples – que ele se cansa de explicar e repetir em todas as conferências – é a montagem que tem a primazia como instrumento de criação de sentido. No entanto, o autor parece recusar-se a responder às perguntas que incidem sobre a interpretação das cenas ou do discurso indirecto subjacente, como evitando fechar o sentido da obra numa explicação autoral definitiva. Assim, deixa ao espectador a responsabilidade da interpretação, como se tudo o que houvesse a dizer já estivesse escrito no filme.

A excepção à regra - à temática do colectivo - são duas cenas de pintores solitários (uma no início, outra no fim) cuja função no filme permanece misteriosa e que, a pedido de Nuno Lisboa, o autor se recusou a explicar. A minha interpretação dessas cenas seria que são como duas janelas que ele deixa abertas no filme: duas saídas para o mundo do indivíduo solitário que recria o mundo como o quer ver. Mas as explicações são sempre redutoras, estragam as metáforas.

A terceira excepção é a cena do ensaio de teatro em que uma personagem se revolta contra o seu patrão por não lhe dar trabalho, por não ser solidário, por não ser humano. Esta cena tem uma função antagonista face à ideologia cultivada pelas instituições reguladoras da vida social, e o papel de uma ruptura anunciada de valores: a solidariedade humana versus a solidariedade institucional. É uma cena importante que, como assinalou José Manuel Costa, representa um ponto de viragem para a segunda parte mais sombria e violenta do filme. «Yes.», respondeu Fred secamente.

(Visto no Doc’s Kingdom em Serpa.)

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