02 abril 2015

«Duas realidades» no dia em que Manoel de Oliveira nos deixou


DUAS REALIDADES, ENTRE OUTRAS...
por MANUEL DA FONSECA

RARAMENTE entramos na Brasileira do Chiado. Mas, acontece isso a tanta gente, no País, que supomos não valer a pena contar os motivos das longas ausências. Ontem, por nosso mal, entrámos. Café cheio. Uma única mesa vaga, junto à porta. Sentámo-nos, a olhar em volta.
As mesmas figuras do costume. Figuras que se repetem, monotonamente, dia a dia, ano a ano, e todas igualzinhas umas ás outras sabe-se lá por que milagre, desde que o Café abriu.Causa tonturas. Sempre a mesma gente, desde há dois séculos!
Fechámos rapidamente os olhos, de modo a apagarmos as imagens do soturno panteão. E os ouvidos, esses, quem os consegue fechar? Só dormindo. Por infelicidade, estávamos e continuámos acordados. Pior ainda: perto de nós, dois sujeitos atacavam, forte e feio, o cinema nacional!
«Você já viu o «Acto da Primavera»?, perguntava um deles, com enrugada e rouca ironia.
«Vi. Vi até mais que uma vez...», respondeu o outro, o do olho redondo, frio. «Obra de arte, dizem os críticos... Arte!... Oito dias, e os últimos já com a casa às moscas...»
«Pudera! Essas tais obras de arte!... Mas o «Miúdo da Bica» aguentou-se meia dúzia de semanas.» «Pois sim. Agora compare você as críticas ao «Miúdo da Bica» com as críticas ao «Acto da Primavera»... O melhor filme português, disseram. E por aí adiante; arte, arte e mais arte... Claro que tem coisas bem feitas. Quase duas horas de fita!...»
«E o Manuel, como amador, é estupendo.»
«Uum... Muito dinheiro, multas facilidades, subsídios...»
«Bom. Com isso tudo, qualquer um acaba por conseguir uns pedaçotes de arte. Mas, repito, como amador, o Manuel é estupendo.»
«Será. No entanto, veja você, os críticos tanto falaram do «Auto», que se esqueceram das «Realidades Portuguesas n.2». E’ o que me chateia!»
«Infelizmente não vi as «Realidades 2». Não tive tempo, não tenho tempo, nunca mais terei tempo! Esta minha vida, sabe?... E o «Auto»?»
«Já lhe disse: arte. Estaria tudo dito se, ainda por cima, não fosse arte popular. Arte popular!... não é que não goste. Todos sabem que eu gosto. Gosto imensamente da arte popular. Mas no sítio próprio. Aí, entre o povo, a gozar e a beber um copázio, para me meter na cor local. Mas um filme inteiro só com isso do nosso povo e da sua arte!... A mim não me enfiam barretes até aos calcanhares! Enfiem-nos aos críticos, a esses que nem falaram das «Realidades Portuguesas n." 2»! Bem os conheço a todos!...»
«Ora!... Já cá estou há muito mais tempo que você, sei bem o que é a nossa crítica e o nosso cinema...»
«Uma desgraça...»
«Não há dinheiro. Não se encontra dinheiro. Ninguém entra com dinheiro. E sem dinheiro que é que se faz?» «E’ preciso dinheiro. Já não digo muito dinheiro. Mas algum dinheiro.»
«Algum dinheiro, não. Muito, Muito dinheiro. Dinheiro, hem!» «Pois esses tipos conseguem dinheiro... E onde vão eles gastá-lo? Em filmes sobre a vida do povo, a arte do povo, as actividades do povo... «Neo-realistas, é o que eu lhes chamo.»
«Verdade, humanidade, sofrimento... E é com estas balelas que eles julgam conquistar o pagode.
«Neo-realistas, e basta!»
«Acto da Primavera»!... E, diga-me cá, qual foi o crítico que falou como devia das «Realidades Portuguesas n." 2»?»
Desisti de ouvir mais. Paguei o café e, antes de desandar para a porta, abri os olhos, de modo a não encalhar nas cadeiras e nas mesas. Só então vi quem eram os dois sujeitos. Ambos realizadores. Um, de imagens com entrecho. O outro, de imagens sem nenhuma espécie de entrecho. Enfim, dentro do nosso cinema —- 2 realidades portuguesas.
In Diário de Lisboa, 22-10-1963