29 setembro 2007

Cinema esquecido



Quem não aparece esquece, lá diz o ditado. Vidas sem Rumo, terceira longa-metragem de Manuel Guimarães estreada há mais de 50 anos - uma história passada entre mendigos, estivadores e contrabandistas dos cais de Lisboa - será exibido na segunda-feira, dia 1 de Outubro às 22 horas, na Cinemateca, onde não é visto há já 10 anos. Este é o momento único de o podermos apreciar e de reavaliar a má memória que lhe deram.

Vidas sem Rumo era projecto de filme pelo menos desde 1948, mas a sua rodagem só se iniciou em 1952, com um segundo argumento feito em colaboração com Alves Redol. Pouco antes, MG acabara de realizar dois filmes de enfiada: Saltimbancos (1951), aclamado pela crítica neo-realista, e Nazaré (1952) com argumento de Alves Redol, mas tendo sofrido cortes de censura que bastante o prejudicaram. Nessa época, Guimarães (que nascera em 1915) ainda era considerado uma esperança de renovação do cinema português.

Porém, Vidas sem Rumo haveria de sofrer inúmeros cortes da censura e o realizador só o deu por concluído em 1956, depois de ter refilmado uma boa parte e substituído uma actriz, para conseguir que o filme resultante tivesse ainda inteireza. Ainda assim, foi aprovado com cortes da censura e estreou-se em Setembro de 1956 no Teatro da Trindade, onde esteve em cartaz durante 3 semanas. Segundo Manuel Guimarães este foi um filme que se pagou a si mesmo (sem subsídios, note-se).

Dizia o realizador, em 1963, numa entrevista ao Diário de Lisboa: «Vidas sem Rumo era uma história minha, e talvez por isso o considere, entre todos os meus filmes, o melhor. Acontece que do verdadeiro filme que fiz, apenas uns 50 por cento foram apresentado ao público. Muita gente é disso testemunha. Considero que este filme teria sido o salto para um cinema português de expressão. Foi mal apresentado, mal compreendido e tive de consentir – ao fim de quatro anos da sua realização – a sua estreia porque de outro modo seria a ruína dos seus produtores. Caso curioso: foi o meu único filme que deu lucros apesar da sua mutilação. Foi um filme barato, 550 000$, o primeiro que, em Portugal, foi realizado sem estúdios, em compartimentos acanhadíssimos duma casa particular, na Ameixoeira.»

A crítica histórica foi todavia impiedosa e construiu um anti-mito acerca deste filme. Luís de Pina, que em 1977 (1) ainda reconhecia algum valor a este filme («mostrava a pobreza urbana e a dificuldade de viver, apesar das mutilações que sofreu.»), em 1986 (2) diria que “a censura [o] tornou irreconhecível”; depois Bénard da Costa (3) chama-lhe “desastre” e Jorge Leitão Ramos (4) afirma que “Guimarães tem o futuro negado e inúmeras dívidas às costas, fruto do insucesso”, o que não é propriamente correcto.

Desde então, são vários os autores que negam a existência de um neo-realismo no cinema português, mormente por não estar à altura ao seu modelo italiano, como se fossem equiparáveis as situações socio-políticas na Itália do pós-guerra e da libertação e em Portugal, cada vez mais fechado e apertado pelo regime fascista. Para circunstâncias diferentes, respostas diferentes, evidentemente. O neo-realismo no cinema português foi o que foi; talvez incipiente, talvez “melodramático e sentimental” (JBC), talvez aquém das expectativas, mas é uma falácia afirmar que não existiu. Importa ainda frisar que, na década de 50, Guimarães foi o único cineasta resistente, o único que então desafiou corajosamente a cultura oficiosa do Estado Novo, e sempre perdeu com isso. Os seus filmes são os sobreviventes possíveis desse paciente extermínio da cultura portuguesa às mãos da censura de Salazar, e devemos saber olhá-los, senão como obras perfeitas, como obras de resistência. É essa a minha proposta para dia 1.

(1) A Aventura do Cinema Português, 1977, p.56
(2) História do Cinema Português, 1986, p. 122
(3) Histórias do Cinema, 1991, p.108
(4) Dicionário do Cinema Português (1962-1988), 1989, p. 191

28 setembro 2007

Cinema fetichista



Metal e Melancolia (1993), documentário acerca dos taxistas de Lima, Peru, é o primeiro de muitos documentários que Heddy Honigmann desde então fez e aquele que inaugura e, claramente, estabelece um estilo, um método, um olhar pessoal - definindo uma abordagem original no cinema documental.

Honigmann aborda os taxistas a partir do objecto/instrumento que é o automóvel que conduzem e que, neste caso, apresenta aspectos quase bizarros de degradação usados como truques anti-roubo que, no contexto de crise económica, garantem a preservação do automóvel. A maior parte destes taxistas exercem a actividade como segunda profissão e no seu carro particular, ao qual apenas afixam um autocolante. A realizadora senta-se no banco ao lado ou atrás e, embora ausente da imagem, mantém uma interlocução sucinta com o condutor, a suficiente para os levar a desenvolver histórias pessoais – que, se por lado denunciam a situação económica do país, sobretudo revelam assuntos familiares e sentimentos (uma certa melancolia) com uma sinceridade tocante – que faz a força deste filme.

O automóvel é afinal apenas o pretexto para desvendar o resto e chegar ao grau mais íntimo de revelação da pessoa. Esta é a técnica privilegiada de Honigmann: partir do objecto – e do seu valor como fetiche, símbolo, projecção, transferência - para chegar ao âmago dos seus protagonistas. Ou seja, tirando partido de uma relação sempre latente entre as pessoas e os seus objectos significantes - prenhes de conotações, aspirações e significados – é como se o objecto fosse, na sua simplicidade, a porta aberta para a alma das pessoas. É afinal esse o papel dos objectos na vida das pessoas, e a razão por que tanta importância adquirem enquanto símbolos, amuletos, fetiches. O objecto tem um estatuto equivalente ao dos conceitos abstractos ou morais. Ele condensa e representa uma série de memórias, desejos e afectos.

O papel da interlocução é também essencial na definição do estilo de Honigmann. Mas distingue-se do género entrevista pela sua discrição e simplicidade, tanto quanto se distingue do cinema-(in)directo que mascara e omite as interlocuções para dar a ilusão de um universo auto-contido onde não se sentem as interferência do sujeito de enunciação estranho ao ambiente.

Outro filme é o extraordinário é O Amor Natural (1995), filmado no Brasil e tomando como ponto de partida o livro, assim intitulado, de poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade, que Heddy faz ler em voz alta por pessoas de idade, suscitando em conversa – mais uma vez a partir do objecto, aqui poético – a revelação de dimensões inusitadas da intimidade pessoal, como são o desejo e a vida sexual daqueles que a sociedade geralmente ignora. É um filme monumento. Um documentário revelador como poucos no mundo. Um poema em carne e osso.

O documentário sobre os músicos underground de Paris - The Underground Orchestra (1998) – é aqui literalmente sobre os músicos que tocam nos subterrâneos do metro, e que depois serão expulsos para a superfície das ruas. Na sua relação com a música e com o seu instrumento revelam-se histórias de vida, muitas delas relacionadas com migrações e episódios da história política na América do Sul, por exemplo.

Notável será ainda o documentário que rodou na Bósnia - Good Husband, Dear Son (2001) - acerca das terríveis guerras civis que assolaram a antiga Jugoslávia na década de 90. Mas como será possível falar da morte, dos massacres e de tantos horrores tão recentes? Joaquim Sapinho conheceu também essa dificuldade, ele que fez um filme – Diários da Bósnia - onde não há palavras para exprimir o horror. Mas Heddy Honigmann fez o que só para ela podia ser óbvio. Partiu dos retratos dos maridos e filhos mortos, para suscitar através deles todo um caudal de memórias de amor e de dor, que naquelas recordações todas se condensam.

O seu último filme – Forever (2006) - leva ainda mais longe essa relação, tão intrínseca e constitutiva do humano, entre os objectos e a dimensão espiritual do indivíduo. Deslocando-se até ao cemitério Père Lachaise em Paris, a realizadora indaga as motivaçãoes dos visitantes cultistas de artistas célebres ali enterrados e mostra uma forma de memória que, ao invés de mórbida, se apresenta como uma fonte de alimentação espiritual e de relação com o mundo da arte – que se simboliza nesse afecto aos grandes - através do qual se exprimem inclinações e sentimentos pessoais e intransmissíveis – não fosse o método de Honigmann de os conseguir transmitir. Este filme também extraordinário (perdoe o leitor falar num só texto de tantos filmes extraordinários, mas não posso evitá-lo) ganhou no IndieLisboa de 2007 o prémio do público. Que um filme sobre um cemitério seja o preferido do público só pode ser um atestado de excepcionalidade.
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Mas a excepcionalidade de Honigmann não se fica pelo método de abordagem. Os seus filmes conquistam-nos ainda através da construção narrativa e pelo domínio da grande forma (temas que não desenvolverei aqui).
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P.S. HOMENAGEM A PEDRO ALPIARÇA. Na Guilherme Cossoul. 30 de Setembro. 22 h.

25 setembro 2007

Metal y melancolia



Hoje, não perder na Cinemateca, às 19h30, o documentário de Heddy Honigman, Metal y Melancolia (1993).

22 setembro 2007

Alice ou não



Durante esta semana de festival, tem surgido amiúde nas conversas a discussão acerca do filme A Casa de Alice (uma história hetero, digamos) ter sido adequadamente escolhido para a abertura de um festival especialmente intitulado, vocacionado e dirigido a um público gay e lésbico – este ano onomasticamente assumido como queer.

O termo queer, aceite nos estudos académicos, aparentemente não tem tradução portuguesa, ainda. Mas poderia bem chamar-se festival maricas – expressão perfeitamente inocente que nos acompanha desde tenra idade e que tanto se aplica a meninos como as meninas – assinalando um pendor de sensibilidade que exactamente a cultura masculinista rechaça. Mas enfim, o uso das palavras é sempre uma questão delicada e o termo queer torna-se eventualmente mais sério e evita eventualmente a fuga dos espectadores com receio de serem conotados, apontados, confundidos, estigmatizados, gozados e todos esses medos do que os outros vão dizer que contaminam a saloia sociedade lisboeta.

Ora, voltando à casa de Alice, e resumindo o plot: Alice vive com o marido, os 3 filhos matulões e sua mãe. O marido anda com a vizinha do lado, adolescente. Alice é manicura e será seduzida pelo marido da sua melhor cliente. O filho que anda na tropa é prostituto gay. Há uma afectividade vagamente incestuosa entre ele e o irmão mais novo. Quando os rapazes brigam, saltam os insultos. Neste pequeno espaço doméstico, cruzam-se diversas e secretas sexualidades, perante o olhar da avó, atento e silencioso, num papel que se confunde com o nosso olhar de espectadores daquela humanidade em família. Mas, só nós, espectadores, sabemos que ela sabe e nada diz. Nem diz à filha que o marido a engana, nem comenta nem censura nem interfere. Esta avó, com longa experiência de vida, é a figura da tolerância e da aceitação das diferenças dos outros e sobretudo das suas sexualidades, quaisquer que sejam, independentemente das traições, das ambiguidades morais e das mentiras que elas representam.

Perguntava-me alguém (que não viu o filme): então é um filme contra o casamento machista? Não, não é contra nada. (Não é um filme heterofóbico.) É um filme onde se pratica a aceitação plena do humano naquilo que sempre o define tão bem, ao contrário do conhecido preceito que diz “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”. Pois é o que toda a gente faz, encaremos a realidade. Aceitemos a contradição dos actos.

Haverá melhor filme para abrir um festival destes e demonstrar, sem moralismos quaisquer, que toda a sexualidade tem a mesma origem, apenas variam as suas vivências, preferências e concepções?

Leituras recomendadas:
http://danieljskramesto.blogspot.com/2007/09/subtilmente.html
http://damnqueer.blogspot.com/2007/09/s-voltas-com-o-queer.html

12 setembro 2007

Cinema queer



Começa na sexta-feira, dia 14, o festival Queer Lisboa 11, nova designação que abrange sexualidades diversas e temáticas mais abertas do que o anterior título “gay e lésbico”. Todavia, afirma-se tanto como evento político quanto como um festival de cinema. Será o cinema queer um género? Ou existirá um olhar queer? Um olhar - diferente - que atravessa filmes de vários géneros, filmes que passaram os limiares da moral normativa e se aventuram noutras áreas da vida humana...

Na abertura, às 21h30 no cinema S. Jorge, será mostrado um filme que nem sequer parece nitidamente gay e etc. – A Casa de Alice, de Chico Teixeira – “um retrato vivencial cativante e que, mesmo firme numa vontade de mostrar o que pode ser real, não procura ser bandeira de qualquer discurso ideológico”. “Sexo, suor (e algumas lágrimas) moram naquele apartamento, onde um casamento há muito se desmoronou, e os desejos vivos de Alice feitos agora palavras, ora com clientes em sessões de manicure, ora entre colegas e amigas, à noite, de cervejinha na mão”.

O texto atrás citado retirei-o do catálogo e não pertence à sinopse oficial. Os programadores do Queer Lisboa – João Ferreira e Nuno Galopim - fizeram algo extraordinário, que é a primeira vez que vejo: sobre cada filme escreveram um texto de apresentação e análise, que essencialmente aborda cada filme enquanto obra cinematográfica. São excelentes textos e contribuem muito para nos interessar pela qualidade dos filmes.

Também será apresentado o meu documentário Fora da Lei (domingo, dia 16, às 15h30), cujo trailer fica aqui - mais o link para o blogue queer.