28 setembro 2007

Cinema fetichista



Metal e Melancolia (1993), documentário acerca dos taxistas de Lima, Peru, é o primeiro de muitos documentários que Heddy Honigmann desde então fez e aquele que inaugura e, claramente, estabelece um estilo, um método, um olhar pessoal - definindo uma abordagem original no cinema documental.

Honigmann aborda os taxistas a partir do objecto/instrumento que é o automóvel que conduzem e que, neste caso, apresenta aspectos quase bizarros de degradação usados como truques anti-roubo que, no contexto de crise económica, garantem a preservação do automóvel. A maior parte destes taxistas exercem a actividade como segunda profissão e no seu carro particular, ao qual apenas afixam um autocolante. A realizadora senta-se no banco ao lado ou atrás e, embora ausente da imagem, mantém uma interlocução sucinta com o condutor, a suficiente para os levar a desenvolver histórias pessoais – que, se por lado denunciam a situação económica do país, sobretudo revelam assuntos familiares e sentimentos (uma certa melancolia) com uma sinceridade tocante – que faz a força deste filme.

O automóvel é afinal apenas o pretexto para desvendar o resto e chegar ao grau mais íntimo de revelação da pessoa. Esta é a técnica privilegiada de Honigmann: partir do objecto – e do seu valor como fetiche, símbolo, projecção, transferência - para chegar ao âmago dos seus protagonistas. Ou seja, tirando partido de uma relação sempre latente entre as pessoas e os seus objectos significantes - prenhes de conotações, aspirações e significados – é como se o objecto fosse, na sua simplicidade, a porta aberta para a alma das pessoas. É afinal esse o papel dos objectos na vida das pessoas, e a razão por que tanta importância adquirem enquanto símbolos, amuletos, fetiches. O objecto tem um estatuto equivalente ao dos conceitos abstractos ou morais. Ele condensa e representa uma série de memórias, desejos e afectos.

O papel da interlocução é também essencial na definição do estilo de Honigmann. Mas distingue-se do género entrevista pela sua discrição e simplicidade, tanto quanto se distingue do cinema-(in)directo que mascara e omite as interlocuções para dar a ilusão de um universo auto-contido onde não se sentem as interferência do sujeito de enunciação estranho ao ambiente.

Outro filme é o extraordinário é O Amor Natural (1995), filmado no Brasil e tomando como ponto de partida o livro, assim intitulado, de poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade, que Heddy faz ler em voz alta por pessoas de idade, suscitando em conversa – mais uma vez a partir do objecto, aqui poético – a revelação de dimensões inusitadas da intimidade pessoal, como são o desejo e a vida sexual daqueles que a sociedade geralmente ignora. É um filme monumento. Um documentário revelador como poucos no mundo. Um poema em carne e osso.

O documentário sobre os músicos underground de Paris - The Underground Orchestra (1998) – é aqui literalmente sobre os músicos que tocam nos subterrâneos do metro, e que depois serão expulsos para a superfície das ruas. Na sua relação com a música e com o seu instrumento revelam-se histórias de vida, muitas delas relacionadas com migrações e episódios da história política na América do Sul, por exemplo.

Notável será ainda o documentário que rodou na Bósnia - Good Husband, Dear Son (2001) - acerca das terríveis guerras civis que assolaram a antiga Jugoslávia na década de 90. Mas como será possível falar da morte, dos massacres e de tantos horrores tão recentes? Joaquim Sapinho conheceu também essa dificuldade, ele que fez um filme – Diários da Bósnia - onde não há palavras para exprimir o horror. Mas Heddy Honigmann fez o que só para ela podia ser óbvio. Partiu dos retratos dos maridos e filhos mortos, para suscitar através deles todo um caudal de memórias de amor e de dor, que naquelas recordações todas se condensam.

O seu último filme – Forever (2006) - leva ainda mais longe essa relação, tão intrínseca e constitutiva do humano, entre os objectos e a dimensão espiritual do indivíduo. Deslocando-se até ao cemitério Père Lachaise em Paris, a realizadora indaga as motivaçãoes dos visitantes cultistas de artistas célebres ali enterrados e mostra uma forma de memória que, ao invés de mórbida, se apresenta como uma fonte de alimentação espiritual e de relação com o mundo da arte – que se simboliza nesse afecto aos grandes - através do qual se exprimem inclinações e sentimentos pessoais e intransmissíveis – não fosse o método de Honigmann de os conseguir transmitir. Este filme também extraordinário (perdoe o leitor falar num só texto de tantos filmes extraordinários, mas não posso evitá-lo) ganhou no IndieLisboa de 2007 o prémio do público. Que um filme sobre um cemitério seja o preferido do público só pode ser um atestado de excepcionalidade.
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Mas a excepcionalidade de Honigmann não se fica pelo método de abordagem. Os seus filmes conquistam-nos ainda através da construção narrativa e pelo domínio da grande forma (temas que não desenvolverei aqui).
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P.S. HOMENAGEM A PEDRO ALPIARÇA. Na Guilherme Cossoul. 30 de Setembro. 22 h.

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