22 setembro 2007

Alice ou não



Durante esta semana de festival, tem surgido amiúde nas conversas a discussão acerca do filme A Casa de Alice (uma história hetero, digamos) ter sido adequadamente escolhido para a abertura de um festival especialmente intitulado, vocacionado e dirigido a um público gay e lésbico – este ano onomasticamente assumido como queer.

O termo queer, aceite nos estudos académicos, aparentemente não tem tradução portuguesa, ainda. Mas poderia bem chamar-se festival maricas – expressão perfeitamente inocente que nos acompanha desde tenra idade e que tanto se aplica a meninos como as meninas – assinalando um pendor de sensibilidade que exactamente a cultura masculinista rechaça. Mas enfim, o uso das palavras é sempre uma questão delicada e o termo queer torna-se eventualmente mais sério e evita eventualmente a fuga dos espectadores com receio de serem conotados, apontados, confundidos, estigmatizados, gozados e todos esses medos do que os outros vão dizer que contaminam a saloia sociedade lisboeta.

Ora, voltando à casa de Alice, e resumindo o plot: Alice vive com o marido, os 3 filhos matulões e sua mãe. O marido anda com a vizinha do lado, adolescente. Alice é manicura e será seduzida pelo marido da sua melhor cliente. O filho que anda na tropa é prostituto gay. Há uma afectividade vagamente incestuosa entre ele e o irmão mais novo. Quando os rapazes brigam, saltam os insultos. Neste pequeno espaço doméstico, cruzam-se diversas e secretas sexualidades, perante o olhar da avó, atento e silencioso, num papel que se confunde com o nosso olhar de espectadores daquela humanidade em família. Mas, só nós, espectadores, sabemos que ela sabe e nada diz. Nem diz à filha que o marido a engana, nem comenta nem censura nem interfere. Esta avó, com longa experiência de vida, é a figura da tolerância e da aceitação das diferenças dos outros e sobretudo das suas sexualidades, quaisquer que sejam, independentemente das traições, das ambiguidades morais e das mentiras que elas representam.

Perguntava-me alguém (que não viu o filme): então é um filme contra o casamento machista? Não, não é contra nada. (Não é um filme heterofóbico.) É um filme onde se pratica a aceitação plena do humano naquilo que sempre o define tão bem, ao contrário do conhecido preceito que diz “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”. Pois é o que toda a gente faz, encaremos a realidade. Aceitemos a contradição dos actos.

Haverá melhor filme para abrir um festival destes e demonstrar, sem moralismos quaisquer, que toda a sexualidade tem a mesma origem, apenas variam as suas vivências, preferências e concepções?

Leituras recomendadas:
http://danieljskramesto.blogspot.com/2007/09/subtilmente.html
http://damnqueer.blogspot.com/2007/09/s-voltas-com-o-queer.html

2 comentários:

Daniel J. Skråmestø disse...

A denominação em português é sempre problemática porque, tirando as palavras mais técnicas e clínicas, restam apenas as outra de base um pouco depreciativa. Por muito que se tenha banalizado o "maricas", a sua raiz não é inocente.
Os ingleses safam-se bem com o "gay" e o "queer" porque, de base significam "alegre" e "estranho/bizarro". Os noruegueses também têm uma palavra muito boa que é o "skeiv", que significa literalmente "inclinado" e se pode aplicar de modo muito abrangente.
Isto significa que, em português ainda é preciso falar muito de sexualidades porque só assim se contrói um vocabulário adequado.

Rui Zink disse...

Tolerância? O problema é, como sempre, o da casa, da oikos, da economia da casa, ou seja, um problema oikonómico. Se eu estou na casa de outro, ele/a "tolera-me" enquanto me portar "bem". Por isso só há tolerância (a q interessa) qd ninguém é dono da casa.