24 fevereiro 2006
Barronhos
Revi “Barronhos – Quem teve medo do poder popular?” (1976), um documentário de Luís Filipe Rocha que foi mostrado no domingo passado - 30 anos depois - perante os antigos moradores do bairro-da-lata de Barronhos, hoje Bairro 18 de Maio (logo abaixo da SIC em Carnaxide).
Após a projecção, o realizador disse que considera este o seu primeiro filme, “embora seja um documentário” e tendo depois realizado já muitos filmes, todos ficções. Para mim, este é talvez o seu melhor filme (não por ser um documentário), porque é aquele onde há mais invenção (apesar de ser um documentário...). A invenção de que falo não está na imaginação ficcional, mas na forma cinematográfica encontrada como solução fílmica original para um problema singular. Esse problema era contar aquele real, lidar com ele, tomar uma atitude. Desse desafio surgiram formas narrativas e visuais únicas e irrepetíveis. Este modo de trabalhar é apanágio do género documental.
Neste filme, o realizador conseguiu conciliar duas intenções: por um lado, ser fiel a uma objectividade dos factos, por outro, assumir um ponto de vista pessoal (estético e político) sobre esses acontecimentos, sem que os dois planos se confundam um ao outro e, portanto, respeitando um equilíbrio entre o seu olhar interior que é exterior ao bairro e o olhar exterior dos habitantes que é interior aos acontecimentos. O ponto onde o olhar do realizador encontra o dos actores é aquele que se suspende nos planos numerosos de crianças – as que tudo vêem mas nada contam - e que hoje se reviram no filme, talvez com surpresa, completando o círculo virtual desenhado.
O filme dá voz aos moradores na explicação do crime ocorrido - Bráulio foi morto por Jaime, durante uma disputa relacionada com um abaixo-assinado pela electrificação do velho bairro da lata - e enquadra-o no contexto político-social da revolução popular em curso. Assim, os dados do crime adquirirem significados precisos e também valores de universalidade, ao expor motivos que pertencem à eterna luta de classes. (O que me faz lembrar o final de Brandos Costumes (1974) de Alberto Seixas Santos, com a filha mais nova lendo Marx: “a história da humanidade é a história da luta de classes”.)
E se, para o realizador, à distância de 30 anos, o filme provoca sobretudo nostalgia, e para outras pessoas na assistência evoca a época em que descobriram que podiam lutar colectivamente por uma vida diferente e obter resultados, viemos a saber, no debate, que não foi tudo conseguido, que a luta esbarrou em dificuldades sucessivas e mudanças políticas que não permitiram, naquela época, construir mais que 95 dos 450 fogos previstos.
Essas dificuldades começam aliás, no filme, com a divergência entre os moradores mais abastados ou comerciantes, que pretendem trazer a luz ao bairro velho, e os mais pobres, que vêem nessa iniciativa uma ameaça aos planos de construção de raiz de um bairro novo. Essas distinções sociais estão latentes hoje ainda, após a projecção, quando um dos moradores pergunta ao realizador por que filmou só casas pobres havendo muitas barracas-por-fora que eram por-dentro-impecáveis e “sem um grão de pó” (e rejeitando a assimilação da pobreza à sujidade). LFR responde que foi o que encontrou e outros moradores esclarecem que havia três zonas no bairro: a dos trasmontanos, a dos minhotos (ou galegos) e a dos alentejanos, ou noutra toponímia, Barronhos-de-cima e Barronhos-de-baixo. E um morador mais sentido chama a atenção para um aspecto que não lhe pareceu suficientemente vincado no filme: que o criminoso pertencia aos ricos do bairro, o que inevitavelmente descarrega uma culpabilidade sobre aqueles, acrescida de contornos trágicos associados à luta de classes.
E se outros moradores acham o filme importante por permitir mostrar aos mais novos as dificuldades que passaram seus pais e avós, os dirigentes da Associação de Moradores lembram aos locais para participarem mais na vida associativa e colectiva do bairro e na melhoria dos espaços comuns. E uma senhora assinala aos presentes que, ali perto, existem ainda bairros clandestinos com os mesmos problemas que eles tinham há 30 anos.
Entretanto, um arquitecto do antigo SAAL explica que mais tarde foram construídos ao todo 2000 fogos, que acabaram por ser ocupados por muitos imigrantes africanos, o que, dizem outros, trouxe também muitos problemas, numa sugestão de segregação social e racial que parece demonstrar, de novo, outras modalidades da luta de classes e levantar a dúvida sobre a capacidade humana de aprender com as gerações anteriores.
Em suma, o documentário não é apenas sobre o verão de 75 e as lutas sociais de então; é um filme que parte do particular (o crime) para explicar o geral (o país), abrindo sucessivos círculos de compreensão (o Bráulio, o Jaime; o bairro) que se incluem num movimento temporal mais amplo. É um filme que, na sua solução formal e no seu cometimento ideológico, não está preso à contingência e à época. E faz pensar como a utopia é difícil.
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