12 fevereiro 2006

Panorâmica

O debate final sobre os documentários portugueses apresentados no Panorama foi muito interessante, longo e sumarento. José Manuel Costa - cujas reservas acerca da “panóplia de obras audiovisuais que se sustentam só do seu assunto” já vinham expressas no catálogo da mostra - levantou o problema que ocupou a maior parte do tempo de debate: a questão da qualidade das obras e da não existência de um critério de selecção.

O boom tecnológico e criativo dos últimos anos – que se tem manifestado por níveis de produção, conceptualização e amadurecimento muito diversos, incluindo filmes de escola, filmes institucionais e registos muito diferentes – mostra que não podem todos caber no mesmo saco. Será preciso definir um limite, um crivo, para o que se aceita como sendo documentário?

JMC explicou que a dificuldade de delimitar o que é documentário (embora para algumas pessoas seja ainda recente) é já uma discussão antiga. Documentário não é toda a não-ficção. Desde os anos 20 e 30, sempre houve outras coisas: documentário científico, didáctico, institucional, com bons acabamentos, com alguma eficácia... Mas o que o atrai no campo do documentário é a ambição de construção, não só estética, não só de entretenimento; nunca houve, aliás, documentário puramente lúdico; e nas zonas não artísticas do documentário houve outras influências. Vale a pena identificar esse território sem criar fronteiras estanques, e tendo atenção a outras coisas que não são bem documentário mas que trazem novidades.

Quanto à questão de os filmes serem objecto de uma selecção, JMC referiu que o DocLisboa e o Doc’s Kingdom (Serpa) já são muito selectivos; mas a ideia de que tudo vai poder passar num festival é utopia: quanto mais se abre o leque mais coisas ficam de lado. Na sua perspectiva, o futuro do Panorama será “assumir a selecção e dar a cara por isso”. E continuou: “Surpreende-me encontrar filmes que têm um acabamento que parece ignorar completamente a história” (do cinema). Por exemplo, o comentário em off, a entrevista para a câmara; as pessoas que os usam estão a fazer tábua rasa de uma história. JMC acrescentou ainda: “gosto muito do documentário observacional, mas longe de mim dizer que não é interessante de houver comentário off ou entrevistas”. O mais importante na história do documentário é ter balizas abertas, olhar o outro.

O papel do documentário na história do cinema sempre foi ir contra as convenções. Hoje temos que estar atentos, pois a televisão criou novas convenções que impõem um empobrecimento da linguagem do documentário – parece que estamos a recuar décadas. É preciso haver consciência de que o documentário tem uma história – que só faz sentido se formos capazes de continuar a inventar. E deu como exemplo o filme “O Encontro” de Luciana Fina, onde encontrou uma vontade de reinventar o dispositivo que é o falar para a câmara.

Uma segunda questão levantada por JMC foi que: não apareceu, nesta mostra, uma vertente que se cruza com o território documental e onde se passam coisas interessantes – a área das instalações e das intervenções da imagem no espaço artístico plástico - em sobreposição com o terreno do documentário e desafiando a história do cinema.

Uma terceira questão ainda, pelo lado mais positivo (do documentário mais rico), é mais difícil e mais injusta de analisar: parece-lhe que, nos melhores exemplos, está a faltar um fôlego no documentário; questões de produção ou não? “Quando gosto muito falta-me sempre alguma coisa, sabe-me a pouco.” Interessam-no os filmes humanamente ricos, com um fluxo que reúne parcelas, mas - não que tivessem de ser mais longos – sente que era preciso haver mais fôlego, material para algo mais vasto, mergulhar com mais profundidade naquelas figuras. E terminou com a pergunta: “o documentário português está demasiado económico – porquê?”

Graça Castanheira expressou também dúvidas acerca da suposta democraticidade da total abertura da mostra, achando que é preciso haver critérios. “A ausência de critérios é mais anarquia que democracia”. Com os computadores toda a gente acha que consegue fazer filmes, mas o documentário é “uma disciplina com método, gramática, uma história”. Porque faltará ímpeto, grandeza? Talvez porque falta formação e uma cultura do documentário, um certo profissionalismo que se afaste do documentário naif. As portas abertas do documentário falam uma linguagem muito específica que é a do cinema. Há filmes indigentes – mal acabados ou com uma linguagem de tv - que afastam as pessoas e são contraproducentes.

Catarina Mourão perguntou então: Porquê estes resultados? Um certo desequilíbrio, filmes mal acabados, filmes de tv, institucionais – todos são um espelho da produção actual. Isto é que é preciso analisar, e esta é a oportunidade de o fazer. Por outro lado, o boom de produção não tem sido acompanhado pelo ICAM nem pelas televisões. E só lentamente se vem fazendo formação em documentário.

Manuel Mozos acrescentou que o mais complicado é divulgar o que se faz; por isso é necessário haver um espaço para divulgação, onde se possa conhecer o que se faz, com seus defeitos e qualidades, para então se discutir o que é válido ou não. As televisões fazem pressão sobre como se deve fazer um documentário: não há liberdade. Assim, é importante haver espaço para os filmes, mesmo sendo mais amadores.

Madalena Miranda, da organização do Panorama, explicou a “necessidade de arrumar a casa: já não é possível continuar a olhar apenas para aquilo que nós gostaríamos que fosse o documentário”. A persistência de um meio profissional que continua a existir pede um espaço onde se possa olhar para tudo ao mesmo nível – com a mesma generosidade e disponibilidade – para conhecer o que existe e porquê. Foi isso que levou a criar grupos de filmes, jogos de equilíbrio e debates, que conseguiram levantar questões sobre o cinema a partir de como os diferentes filmes olham e falam da realidade. “Acredito que o documentário deve ser empenhado socialmente, mesmo que seja uma forma de arte cinematográfica”. A ideia é criar mais dúvidas. Por isso, o programa assentou numa organização dos espaços de debate e não numa selecção.

António Cunha, defendendo a abertura não-selectiva que é apanágio das mostras da Videoteca (de que é director), interrogou: “Que critérios? O gosto das pessoas, modas, a história?”

Miguel Gaspar, contrapôs, dando o exemplo da sessão de abertura, em que a mistura de filmes de Manuel de Oliveira com filmes de escola fora penosa, e disse que distinguir os filmes com uma qualidade técnica mínima seria ter um mínimo de respeito por quem ali está sentado.

Luciana Fina sugeriu que, além de “arrumar a casa”, seria bom “arrumar também as ideias”, levando à necessidade de um critério assumido – não um critério técnico, mas um critério sobre a escrita em cinema.

Graça Castanheira defendeu que “qualquer artista tem de lutar por uma certa qualidade, até atingir parâmetros consensuais: critérios de identidade do documentário. A unidade mínima de trabalho em documentário, como em cinema, é o plano. A reportagem, pelo contrário, assenta na palavra. Há certos critérios que é preciso discutir, por respeito pelo espectador.

Miguel Ribeiro, autor de um filme de escola, defendeu a abertura do Panorama, único espaço onde se pode mostrar o que se faz.

José Manuel Costa voltou a reclamar que se assumam as escolhas e que elas sejam ditas. “Mas não se pode cair na definição do que seja documentário. A melhor definição é aquela que Joris Ivens deu: o documentário é uma terra de ninguém entre a reportagem e a ficção. Assim, não podemos dizer o que é que vai ser. O critério da identidade dos géneros assusta-me”. Mas poderá haver critérios que mudem de ano para ano; não apenas um olhar de programador, mas vários. Sugeriu também que, no próximo ano se exibam, em espaços alternativos, outras formas fílmicas: instalações, objectos, videoarte.

Referiu ainda a importância de um debate sobre o que é o ensino do documentário. Mas ressalvando que ser autodidacta não é ser ignorante; a maior parte dos cineastas históricos foram autodidactas. Por outro lado, o ensino do documentário vocacionado para o “cinema directo”, aquele que é feito pelo método dos Ateliers Varan (nos cursos da Gulbenkian), parece excessivamente normativo, impondo regras sobre o que se pode e não pode fazer. O documentário é o espaço do ensino onde tem de haver menos regras.

Também concordei que o documentário deve manter-se um campo de liberdade e descoberta, longe de especificações formais e de género que se queiram fazer. Mas acho necessário haver critérios que salvem o espectador de apanhar uma irritação profunda e uma dor de cabeça. É que ver maus filmes faz realmente mal à saúde. Tentando conciliar posições, sugeri que, como acontece em tantos festivais no mundo, se criassem secções para acolher diferentes tipos de obras: filmes de escola, documentários de televisão, etc. No entanto, esta ideia não foi muito bem recebida... No calor da discussão esqueci-me de tomar notas e já não me lembro do que mais foi dito. É difícil tentar traduzir as opiniões ali desenvolvidas. As que aqui coligi (a partir das notas que tomei, algumas já ilegíveis) espero que não fujam tanto ao espírito como à letra.

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