03 abril 2006
Documentário da ficção
Dois filmes sobre possíveis filmes. Dois documentários de répérages para futuras ficções, onde o realizador Pasolini (acompanhado de uma câmara, melhor será dizer, um cameraman, não esquecendo que uma câmara é sempre alguém) vai procurar no mundo real motivos, justificação, personagens, imagens e, por último, locais para uma ficção a rodar.
Num caso – Répérages na Palestina para O Evangelho Segundo Mateus (1964) - trata-se de uma viagem aos lugares originais da vida de Cristo, em Israel e na Jordânia, para o futuro filme que acabaria por filmar em Itália - porque este relato é o de uma decepção. Pasolini procurava sobrevivências com dois mil anos, mas o que encontra são ou lugares muitos pobres, de subproletariado árabe, ou cidades modernas edificadas. Mesmo a agricultura é já industrializada, embora subsistam traços de ruralidade primitiva, fisionomias arcaicas e indumentárias sugestivas. Os lugares míticos – as colinas, o rio Jordão, por exemplo - parecem-lhe demasiados pequeninos e próximos. Só o deserto tem dimensões épicas. As restantes paisagens todas lhe sugerem lugares de Itália, igualmente válidos para filmar.
Seguir o método de pesquisa, os comentários de Pasolini e do Padre que o acompanha como guia, as conversas que encenam sobre se a monumentalidade erigida nos locais santos se sobrepõe à humildade dos eventos originais, ou sobre que visão espiritual evocam esses lugares, sendo que a ideia de espiritualidade para um é religiosa, mas para outro estética – tudo isto é interessante, mas é também matéria para considerar como a ficção procura âncoras no real e dele depende para se desenvolver. A consciência que Pasolini tinha que disso é demonstrada pela sua decisão antecipada de filmar aquilo que poderia não passar de uma viagem de reconhecimento local (como terá feito depois em muitos outros filmes), percurso que aqui, por estar filmado, adquire o estatuto de reflexão sobre as afinidades e ligações entre o real e a ficção, mediados por aquilo que está de permeio: o processo imaginativo, que é um composto de especulações e imagens prévias.
No outro caso – Notas para um Filme sobre a Índia (1968) -, filme que não chegou a existir. Pasolini parte de uma história hipotética – um marajá que para matar a fome aos seus leões se oferece em sacrifício como alimento – para testar no real as suas possibilidades de verosimilhança e o desenvolvimento do argumento. Assim, pergunta a vários intervenientes se seria possível que um marajá o fizesse, e se a viúva e os órfãos caídos na miséria se misturariam ou pediriam auxílio às castas inferiores, onde iriam, como viveriam, quem seriam os filhos (especula filmando as caras dos meninos na rua), como seria o funeral do marajá, etc. Pasolini interroga todo o tipo de pessoas: marajás, pessoas da rua, intocáveis, um escritor, um cineasta, enquanto imagina cenários a partir de palácios reais. Neste inquérito para tornar viável uma ficção, confronta-se com a realidade que a autoriza, levando-nos numa viagem que não tem nada de turístico, porque busca entender um mundo para construir outro mundo. Ou, como escreve António Rodrigues (na folha da Cinemateca), "permite-nos ver um filme e imaginar outro".
A proximidade de Pasolini aos seus interlocutores - tão presente nestes filmes como no inquérito Comizi d’Amore (que passa dia 5 às 19h30 na Cinemateca) - em cada plano virado atentamente para cada pessoa, projecta um desejo de ficção num olhar único que absorve aquela existência fugaz para chegar a uma evidência de outra ordem, a que as suas palavras simples de narrador conferem uma espécie de amor à humanidade.
(Visto na Cinemateca em 31 de Março. Repete terça-feira, 4 de Abril, às 22 horas.)
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