01 abril 2006

Paranóia (2)



Outra paranóia típica do rescaldo pós-bigbrother é a que deriva de as pessoas terem percebido que a sua presença (vulgar) em filmes (e fotografias) pode valer dinheiro. São os chamados direitos de imagem, tão exclusivos como os direitos de autor. Estes dois direitos convergem numa espécie de convicção narcísica: a de que cada pessoa é uma personagem; a de que cada personalidade é uma obra.

Nasce a ilusão de que cada pessoa é resultado da sua própria criação autoral. Como se nós não fôssemos o produto involuntário de tantos factores psico-sociais cujo controlo e interpretação nos escapam de todo, por mais que nos olhemos ao espelho. Como se a nossa personagem não fosse apenas aquela que os outros metem na história que eles contam.

Esse é o trabalho propriamente autoral de um documentarista: contar uma história de outros, transformar pessoas em personas, extrair da massa do quotidiano uma ideia sobre a vida.

Quando um documentário tem êxito de bilheteira - foi o caso de Ser e Ter de Nicholas Philibert - a cegueira do vil metal pode levar à inversão total de papeis, transformando um professor feito personagem terno e modesto num narciso ressabiado e ávido, um realizador admirado pelo seu relacionamento de proximidade e confiança num ladrão de almas, umas crianças doces e provincianas numa máquina rancorosa de ganhar dinheiro dos pais. Todo o idílio criado pelo filme (pura ficção, dir-se-á) acabou. Talvez seja inevitável que os idílios acabem, excepto nos filmes.

Para resolver o assunto, o professor pôs o realizador em tribunal, clamando ser ele próprio o autor de si-mesmo. Este processo já deu muito que falar e escrever e finalmente foi pronunciada a sentença: o professor perdeu. Traduzo adiante extractos da notícia do Le Monde.

«O tribunal considera que as lições de M. Lopez não relevam do direito de autor. É certo que um curso oral dum professor "pode, tal como uma conferência, uma alocução, um sermão ou uma argumentação, ser considerado como uma obra do espírito". Mas deve responder ao "critério de originalidade". Ora o tribunal não constata nem "método pedagógico original" nem "escolha inédita de exercícios e testes".

«O tribunal mostra-se ainda mais preciso acerca dos direitos sobre o filme propriamente dito: "O filme em litígio pertence ao género documental, cujo objecto é a filmagem de pessoas que não representam ou seguem argumentos, mas executam perante a câmara a sua tarefa ou função habitual". Ora "não é usual prever remuneração para os participantes, a fim de preservar a autenticidade das cenas filmadas". A não ser que M. Lopez tivesse concebido ele mesmo a obra... Mas "a escolha do assunto - relatar a vida quotidiana de uma turma única - pertence só a Nicholas Philibert". Quanto às lições e aos diálogos com os alunos, o tribunal considera que "eles não foram concebidos para as necessidades da obra audiovisual".

«As reivindicações de "artista intérprete" de M. Lopez são igualmente rebatidas. "Ao logo de todo o documentário, ele foi filmado no exercício da sua profissão de professor, tal como na entrevista feita, e não como intérprete de um papel que não fosse o seu", escrevem os magistrados. Por outras palavras: não há ficção, não há actores, não há remuneração exigível...»

La cour d'appel de Paris déboute l'instituteur d'"Etre et avoir" LEMONDE.FR 29.03.06
L'instituteur du film "Etre et avoir" débouté LE MONDE 30.03.06
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