26 abril 2006
A imagem-matéria (2)
Retomo a ideia: a matéria da vida coincide com a matéria do cinema. A imagem não é já uma forma de mediação do real exterior a ela. A imagem-matéria é o real tangível. Muitos filmes hoje reflectem esse universo comunicacional onde as relações humanas se confundem com os dispositivos de mediação e já não há distinção entre a vida e os sonhos. Alguns filmes (vistos no IndieLisboa) são bons testemunhos desse progresso estético (relativamente) recente.
Me and you and everyone we know, de Miranda July, demonstra a (estranha) relação das pessoas através das mediações da imagem, do vídeo, da internet, dos fetiches e das fantasias. A figura central, interpretada pela própria realizadora e artista multimedia, desenvolve uma relação com o mundo que tem origem numa procura e criação de imagens. A imagem faz parte da vida, como mais uma das suas facetas. Imaginário e realidade dificilmente se distinguem.
Carreiras, de Domingos Oliveira, persegue no tempo de uma noite o desespero activo de uma jornalista (“âncora” de noticiário) que se sente afastada do protagonismo na televisão e cuja impaciência, alimentada a doses de autoconfiança, cocaína e acessos de raiva, acompanhamos como um processo interiorizado pelo método de filmagem, fluido e imperfeito como a vida mesmo. Esta vítima da Televisão só existe em função da sua imagem - que é a sua identidade. A construção da personagem pela actriz é hiperrealista, na carga de improviso que aparenta. Imagem e vida são indestrinçáveis, mais uma vez.
Le Filmeur, de Alain Cavalier, reúne pedaços de vida filmados ao longo de 10 anos, aquilo que o filmador designa como “diário íntimo” onde não há distinção fácil entre viver para filmar ou filmar para viver, como o próprio explica: «Quando se filma ao vivo [sur le vif], não se fazem comentários, não se tenta ser compreensível, vive-se». «O exterior e o interior não estão nunca separados um do outro» (citado no blogue Ainda não começamos a pensar). De novo: imagem é vida.
Em La Sagrada Família, de Sebastián Campos, o trabalho de câmara mimetiza o improviso da vida e confere à cenas filmadas uma verdade única, especial e fugaz que contraria (na senda do Dogma 95) as técnicas convencionais da representação cinematográfica. A imagem agitada, hesitante, em modo automático de focus e iris, produz uma perturbação sensorial cumulativa com a cena dramática. A imagem tem vida própria. A consciência dessa vida da imagem exprime-se pela afirmação da presença do dispositivo: a câmara é interveniente viva da imagem.
Em toda a obra de Edgar Pêra, é preponderante a força da sua estilística essencialmente matérica, onde a manipulação das imagem é a praxis que dá origem a uma visão plástica do mundo. Nos seus filmes não há mundo que não o das imagens. Documentais ou ficcionais, tudo são imagens e visões que modelam um universo autónomo.
É certo que a noção ou a descoberta da matéria-da-imagem como forma autónoma de expressão e pensamento vem já dos experimentalismos dos anos 50, 60 e 70. Mas só com a era digital essa experiência se tornou abrangente, social e cultural. E só recentemente a imagem-matéria se impôs no mundo do cinema.
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