29 abril 2006

Retratos (lisboetas)



Partindo de uma personagem e do seu quotidiano centrado na profissão, o retrato assume-se como um género documental que, neste caso, resulta de uma proposta escolar (curso de documentário da Gulbenkian) talvez por ser fazível num tempo curto e num regime de experiência. São retratos sucintos, mas não superficiais, antes são revelações. Quatro retratos que mostram uma verdade simples: cada pessoa é um mundo.

Vestígios, filme de Tiago Afonso, é o retrato de um artesão de estatuetas de gesso, cuja oficina repleta de ícones suscita curiosos comentários, e cujo antigo hobby de cineasta amador, de filmes super8 que ele projecta e comenta, nos surpreende e constrói um personagem único.

Quinta da Curraleira, de Tiago Hespanha, acompanha o dia de um tratador de pombos e de um miúdo que o visita, através de cujas conversas entrevemos um bairro e a sua vida oculta decifrada pelos intervenientes. (E é muito curioso que o documentário se passe, aparentemente, no mesmo local que serviu de cenário e embrião para a ficção de Rosa Coutinho Cabral, Lavado em Lágrimas.)

Do Fundo da Gaveta, de Joana Pinho Neves, é um retrato mais interior, o que decorre da actividade reflexiva da protagonista, pesquisadora de arquivos botânicos, mas também do tom da conversa desenvolvida, que desvenda uma perspectiva muito pessoal da vida.

Pé na Terra, de João Vladimiro, sobre um homem e a sua horta num baldio perto da linha de comboio, é um filme de poucas palavras, tal como o seu personagem, cuja solidão ocupa o mundo vegetal que ele rodeia de muros.

Nestes retratos, perante a força das personagens, o trabalho do realizador pode parecer muito discreto. Mas, na verdade, não é assim. Em documentário, este é talvez o género mais delicado, pois depende de uma relação próxima com o retratado e de uma sensibilidade e um respeito que permita construir um retrato no qual o próprio se reveja; tarefa quase impossível, pois ninguém se vê a si mesmo como os outros o vêem e nenhum retrato consegue evitar o choque do protagonista diante desse espelho falso que é a própria imagem projectada por outro.

E se qualquer retrato é sempre incompleto, nunca definitivo, há no entanto uma aproximação à verdade da personagem que é tocante, que nos abre a uma compreensão humana maior que a permitida na vida do dia-a-dia, onde olhamos para os outros como turistas.

É importante notar que este tipo de retrato não tem nada a ver com aquele outro género biográfico mais televisivo, apologético, encomiástico e mitificador de pessoas que se salientaram no espaço público: actrizes, escritores, artistas. Ao contrário, estes documentários jogam sempre na corda bamba, numa relação de afecto, complexa como todas as relações humanas.

(Filmes vistos no IndieLisboa)

1 comentário:

Nuno Pires disse...

Vi o "Pé na Terra", de João Vladimiro, e gostei muito. A câmara está a uma boa distância das suas "personagens", e além disso é muito engraçado !