14 dezembro 2005

Manicómio (3)



O filme mais antigo desta tríade é Titicut Follies de Frederick Wiseman, filmado em 1966 e proibido nos EUA durante 25 anos (até 1991). Isto porque revela condições e tratamentos chocantes no espaço de um hospício prisional, dito “casa correccional”: homens nus vivendo em celas nuas e tratados como indigentes de forma que consideramos sub-humana.

O filme começa com um espectáculo de variedades – intitulado Titicut Follies - em que os prisioneiros cantam e dançam, numa imitação desajeitada de cabaret. Esta festa anual marca o início do filme, pontua-o a meio e conclui-o. Se estas actividades de animação se destinam a dar uma imagem de recuperação dos doentes ou a recuperá-los, não sabemos, porque não assistimos à sua preparação nem sabemos quem é o público deste sarau. Nesta omissão - ou delimitação da informação - está expressa uma intenção do realizador. Ele estabelece desta forma que há uma fachada da instituição que contrasta com o seu interior.

A segunda cena do filme, encadeada com uma mudança de cena no espectáculo e com a justificação da troca de roupa dos "rapazes", salta para uma grande vestiário colectivo, onde os homens nus trocam de roupa e são revistados por guardas. Não há violência expressa nem nada de anormal se passa aqui, para além da vulnerabilidade da nudez e da eficiência dos profissionais. A cena parece crua talvez para a sensibilidade de quem nunca foi à tropa. Mas parece cruel porque não está explicado de onde vêm, onde estão ou quem são estes homens - e porque está montada em contraste total com a cena musical anterior.

A terceira cena – numa escalada de choque - mostra uma espécie de conversa que, tendo a forma de um interrogatório, não se percebe bem se é uma consulta psiquiátrica ou jurídica, de tal modo as perguntas se sucedem e confundem, profissionalmente feitas sem inflexões de voz, a um homem novo, confesso violador de meninas, incluindo a sua própria filha, crime que ele atribui a um "problema". Aqui, finalmente, entendemos que estamos numa instituição prisional, onde os motivos do crime podem ser associados à doença mental.

Na sequência desta conversa, o preso, interrogado sobre a prática de masturbação, responde que a faz três vezes por dia, ao que o interrogador rapidamente replica: “É demais. Isso não é normal. Sente culpabilidade?”. Neste momento, propositadamente escolhido pelo realizador, a masturbação adquire o mesmo valor patológico que o abuso sexual de crianças. Neste momento, a instituição que julga, avalia e trata é posta em causa, pois os seus critérios tornam-se confusos. Se a sequência da conversa foi esta ou a inversa, não podemos saber, pois há uma intencionalidade que ultrapassa a questão da veracidade: a deliberação de provar um ponto de vista sobre a instituição.

Não vou aqui contar o filme todo. A mesma técnica, de demonstrar um ponto de vista através da montagem, aplica-se a todos os casos seguintes do filme: os homens nus que saem das celas para despejar os bacios na latrina; o ex-professor de matemática que berra de fúria, exposto em voz alta (e humilhado) por ter sujado a sua cela; aquele que, recusando-se a comer, é alimentado por uma sonda enfiada no nariz, e cuja cena é montada em paralelo com a da preparação de um morto, transformado assim em destino esperado do grevista de fome.

O caso que mais me impressionou foi o do jovem esquizofrénico que prefere voltar para a prisão, onde espera recuperar melhor do que no ambiente de berros e manicómio onde foi encarcerado há ano e meio contra sua vontade, e que, com argumentos perfeitamente lúcidos sobre os seus motivos e a sua saúde, é considerado pelos psiquiatras como paranóico típico sem apelo. Esta situação - em que uma pessoa clamando a sua sanidade é, na medida da sua insistência, considerada insana - é tão demente e inverosímil que só parecia possível em filmes de ficção.

Não é só a montagem que define esta abordagem. A decisão de Wiseman sobre o que filmar é muito importante. Ele opta por registar situações de interacção e diálogo - entre os doentes e os guardas, enfermeiros e médicos - as quais se tornam chave para revelar a equação de forças do sistema, que parece funcionar por si só, com uma indiferença pelo caso individual e com uma falta de intenções ou justificações expressas (que desconhecemos se é inexistente ou resultado de uma opção de montagem). Não há nada de equívoco neste olhar. Trata-se da denúncia de um sistema.

A diferença que vai deste filme para os outros posteriormente feitos em hospícios, é uma diferença de olhar. Depardon privilegiou situações de deambulação; Philibert, as de intimidade. Ambos se centraram nos sujeitos, alvos de um ensaio de compreensão. Wiseman apontou para a instituição. As suas intenções são diferentes, revelando não só a evolução da clínica psiquiátrica nas suas circunstâncias locais ou temporais, mas também a relação de cada realizador com elas.

(Visto no IFP, dia 12/12/2005, no ciclo “O mundo é um grande asilo”)

P.S. Olhamos para este filme como uma coisa do passado. Mas situações de encarceramento semelhantes continuam a existir. Por exemplo: os 30% de idosos que são maltratados em “lares”; os armazéns de imigrantes ilegais à espera de repatriamento, no Porto ou em Itália; a educadora de infância que, numa escola de Carcavelos, pôs pimenta na língua de um menino de 4 anos que disse “cocó” e que desde então se recusa a fazer cocó, apesar de ter mudado de escola, dos esforços da família, dos laxantes, do psicólogo...

2 comentários:

Josué disse...

De quando em vez encontram-se pérolas na net :)

chris alcazar disse...

Ola
Preciso muuuuito de ver os filmes citados nesse blog:
La moindre des choses é um documentário de Nicolas Philibert
e do
“San Clemente” de Raymond Depardon
Alguém pode me ajudar a conseguir estes filmes? estou fazendo uma pesquisa para um filme sobre loucura que estou fazendo (sou assistente direção)
obrigada!!!