29 maio 2006

Cinema-caçada



Da caça ao golfinho e ao lobo marinho, passando pela matança do porco, até à caça ao alce, aos ursos, aos coelhos, perdizes, patos e ouriços – a obra de Perrault evidencia uma ligação permanente às práticas de sobrevivência do animal-homem, pescador, camponês ou caçador. É desse mundo verdadeiro que nos fala, por ele esquecendo quase tudo o mais que caracteriza a sociedade urbana moderna (onde matar é uma prática escondida).

O país da terra sem árvores” (1980) acompanha três expedições – de caçadores e de arqueólogos - à tundra quase não habitada, onde o animal-urbano vai à procura da sua natureza em combate com o alce, onde os índios reencontram as suas raízes num respeito sacralizado pelo animal caçado, e onde os arquéologos procuram os vestígios antigos (pontas de sílex) da ocupação milenar do território – que assim recupera identidade como terra habitada.

Nestas expedições, Perrault usa (pela primeira vez*) o plano-sequência, pelo qual a câmara procura a cumplicidade com as personagens, e particularmente com a auto-ironia dos cientistas, pela qual reflecte e revela a natureza mesma do seu cinema: um cinema de caça ao homem e de arqueologia da cultura tradicional.

Em “A besta luminosa” (1982), Perrault acompanha um grupo de homens que durante uma semana vai para a floresta caçar. Isolados do mundo e cercados uns de outros, desenvolvem relações intensas – que passam pela tensão da caça e pela distensão das bebedeiras – onde se solta o animal humano de que Perrault anda à caça. Quando os homens escrutinam a paisagem em busca de um animal, a câmara faz como eles; enquanto eles olham são olhados; quando vacilam de bêbedos, a câmara vacila atrás deles.

Neste filme, o plano-sequência e a montagem criam uma espécie de fusão-directa entre homem-câmara e homem-objecto, numa identificação do realizador com o personagem-poeta-caçador que é protagonista e que se expressa intimamente, em conversa com os amigos, como num quase monólogo interior. É o puro discurso directo, que o realizador partilha inteiramente.

É aqui que Perrault expõe as conclusões de toda uma obra de tese sobre a natureza do homem, que, passo a passo, ao longo de 20 anos o cineasta foi desenvolvendo, sempre atraído por uma autenticidade primordial que encontrava nas comunidades de pescadores, camponeses e índios.

Mais do que o cineasta-poeta, como lhe chamaram, vejo nele um cineasta-caçador. Raras são as metáforas visuais (aparte as metáforas literárias dos primeiros filmes) que encontrei na sua extensa obra, muito atenta à palavra, é certo, mas sem alusões, sem ilusões, sem jogo formal. O que haja nele de poético é um extremo encanto pela vida prosaica, um idealismo.

Poeta, sim, mas em campo distinto, o da sua obra literária: « Para eles o alce não é apenas o animal a abater, mas um animal a amar, a tornar uma lenda, a recitar, para justificar a floresta e esse incrível refúgio fechado de certos homens que se fecham no seu mito.» (citado de Ainda não começámos a pensar)

(*neste ciclo da Cinemateca)

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