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15 outubro 2017
O concurso
Reabro este blogue para falar de um filme que me perturbou imenso, Le Concours de Claire Simon exibido na Festa do Cinema Francês, sobre as provas de admissão dos estudantes franceses à Escola Superior des Métiers de l'Image et du Son - La Fémis.
O processo começa com uma prova escrita realizada por centenas de candidatos acotovelados num anfiteatro à cunha, e acaba com o retrato de grupo das poucas dezenas de admitidos. Pelo meio assistimos a um desfile interminável e insistente de entrevistas, provas orais e comentários dos jurados (que não são professores da escola, mas profissionais chamados para fazerem uma apreciação qualificada dos candidatos). Quando digo "interminável" não pretendo referir-me à duração do filme, mas apenas à dureza das provas que presenciamos e que a mim me pareceram uma verdadeira tortura moral. Não porque os seleccionadores sejam agressivos ou os candidatos mal tratados, mas apenas porque o sistema que engrena este regime de selecção é bruto, injusto, inútil e errado.
A ideia de organizar uma selecção independente por profissionais convidados é certamente bem intencionada, tal como os seus participantes; mas o resultado é confrangedor. O que ressalta deste documentário é a subjectividade e a arbitrariedade dos juízos feitos acerca dos candidatos entrevistados de modo bastante pessoal, que os seleccionadores depois comentam com base em presunções de psicologia novelesca. Uns encantam-se mais com a graça de uma menina, outras com a tenacidade do rapaz que vem de uma família provinciana, outras comentam o charme dos italianos ou a descontracção dos chilenos (sim, no plural), outros duvidam da autenticidade mostrada pelos jovens examinados em provas públicas, outro ainda chega a dizer que desconfia das pessoas que se mostram muito seguras e há quem faça menção à doidice ou autismo dos candidatos! Por fim, acabam todos a discutir e a divergir - e nós, espectadores, percebemos perfeitamente a mensagem.
Refiro-me naturalmente à mensagem subjacente que a realizadora formula, enquanto manipuladora-mor desta peça de teatro retirada do real. Tenho pois que relativizar e supor que outras opiniões mais ponderadas também existam neste universo em que participam 250 avaliadores. Coube à realizadora evidenciar os aspectos discutíveis do processo, marcando o seu ponto de vista pessoal. E fez um trabalho de muito mérito. Mas, na conversa que se seguiu à projecção, quando 4 ou 5 espectadores se mostraram críticos à realidade mostrada, de todas as vezes Claire Simon pareceu fugir ou contrariar a questão, frisando as boas intenções dos participantes, que o sistema é justo, que é usado em todo o mundo, que os envolvidos gostaram do filme, que os cidadãos devem poder conhecer o método de selecção de uma instituição pública, etc... Talvez o filme seja mais cruel do que lhe convém admitir, como professora que já foi da escola.
Sim, haveria outras formas de tornar esta avaliação mais objectiva, com exercícios preparados para testar capacidades, conhecimentos e criatividade. O senso comum não basta. Juízos psicológicos de algibeira também não. Bem sei que também por cá se usam métodos de selecção apertada, na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Não sei em que moldes, mas conheço muitos que foram rejeitados. Pensam que essa dor não dura toda a vida? Imaginam quanto esforço é preciso para, apesar disso, persistir em fazer cinema, quanto isso é uma necessidade interior? Felizmente nunca me sujeitei a tal prova, mantive intacto o meu entusiasmo.
Assim, ficou clara a profunda subjectividade, arbitrariedade e injustiça (desculpem repetir) deste sistema. Porque, além do processo, há os números. De todos os alunos que passam por estas provas, apenas 3% serão escolhidos. Desperdiçam-se talentos, capacidades, trabalho, criatividade, tempo, dinheiro - e tudo para um resultado provavelmente medíocre. Porque de certeza ficaram de fora, amargurados, de pernas cortadas, traumatizados, inseguros e infelizes, um mar de gente cuja grande vontade juvenil (se não fosse grande não se sujeitavam a tais provas) é fazer cinema. Mas o sistema só deixa entrar alguns eleitos. O sistema dá-se ao luxo de rejeitar centenas de jovens cheios de energia, sonhos, capacidades, vida e promessas. Em nome de quê? Em nome de uma ideologia (outro nome não tem) que considera isto normal: criar elites e inculcar o espírito de competição.
Ora, correndo o risco de generalizando errar, se nenhum dos participantes desta farsa acha isto uma aberração, então é porque interiorizaram e aceitam que o mundo assim seja; que acham normal o direito para poucos de fazer o que desejam na vida, que não questionem a falta de equidade deste jogo de azar, que se sujeitem a tudo suportar. Que acreditem afinal que a vida é como um concurso imbecil de televisão. Não seria o cinema (ou a sociedade) muito melhor, mais capaz e inteligente se, em vez de 3 alunos de "Distribuição", aceitassem 30, que viriam a ser distribuidores, programadores e difusores de cinema? Que, se calhar, além disso se tornariam críticos, professores, inventores do cinema do futuro. Se em vez de poucos realizadores (não disseram quantos admitem), tivessem dez vezes mais, não teríamos muito melhores filmes? Se em vez de competidores, carreiristas e individualistas, estes estudantes fossem cooperadores entre si? E mais e mais argumentistas e produtores e fotógrafos e técnicos cheios de sangue fresco não fariam uma revolução no cinema independente? Ups! Independente, revolução? O sistema deixaria isso acontecer? É claro que não. Talvez os candidatos recusados sejam mais felizes como arrumadores de salas de cinema, como o rapaz que no final da sessão veio conversar comigo...
Por que não deixar a selecção natural funcionar e esperar que os menos talentosos, os mais preguiçosos ou os enganados descubram por si o que querem e podem fazer. Em vez de serem os presumidos iluminados dos avaliadores a decidir antes sequer de aqueles terem começado. Quem é que sabe aos 18 ou 20 anos ao certo o quer ser na vida? Ninguém nasce com jeito para cineasta ou fotógrafo, senão o cinema já tinha aparecido há séculos. As pessoas e sobretudo os jovens descobrem o mundo ao mesmo tempo que se descobrem e desenvolvem. O que conta é ter vontade. Quem disse que não há lugar para todos? Quem disse que as pessoas não podem ser aquilo que desejam? As profissões criativas não precisam de patrão, são de geração espontânea.
P.S. Assinale-se os terríveis defeitos e falhas de projecção (que suponho devidas ao uso de bluray) inaceitáveis num festival.
Apresentação (em francês): https://www.youtube.com/watch?v=TKvFfqbDq3U
Outras críticas:
https://www.newyorker.com/culture/richard-brody/a-documentary-that-explains-the-dearth-of-innovative-young-french-filmmakers
http://www.hollywoodreporter.com/review/graduation-le-concours-venice-review-924851
https://www.theguardian.com/film/2017/sep/17/the-graduation-review-la-femis-spotlight-le-concours-claire-simon
http://leblogdocumentaire.fr/concours-claire-simon-face-aux-reves-de-cinema-futurs-etudiants-de-femis/
02 abril 2015
«Duas realidades» no dia em que Manoel de Oliveira nos deixou
DUAS REALIDADES, ENTRE OUTRAS...
por MANUEL DA FONSECA
RARAMENTE entramos
na Brasileira do Chiado. Mas, acontece isso a tanta gente, no País,
que supomos não valer a pena contar os motivos das longas ausências.
Ontem, por nosso mal, entrámos. Café cheio. Uma única mesa vaga,
junto à porta. Sentámo-nos, a olhar em volta.
As mesmas figuras do
costume. Figuras que se repetem, monotonamente, dia a dia, ano a ano,
e todas igualzinhas umas ás outras sabe-se lá por que milagre,
desde que o Café abriu.Causa tonturas.
Sempre a mesma gente, desde há dois séculos!
Fechámos
rapidamente os olhos, de modo a apagarmos as imagens do soturno
panteão. E os ouvidos, esses, quem os consegue fechar? Só dormindo.
Por infelicidade, estávamos e continuámos acordados. Pior ainda:
perto de nós, dois sujeitos atacavam, forte e feio, o cinema
nacional!
«Você já viu o
«Acto da Primavera»?, perguntava um deles, com enrugada e rouca
ironia.
«Vi. Vi até mais
que uma vez...», respondeu o outro, o do olho redondo, frio. «Obra
de arte, dizem os críticos... Arte!... Oito dias, e os últimos já
com a casa às moscas...»
«Pudera! Essas tais
obras de arte!... Mas o «Miúdo da Bica» aguentou-se meia dúzia de
semanas.» «Pois sim. Agora compare você as críticas ao «Miúdo
da Bica» com as críticas ao «Acto da Primavera»... O melhor filme
português, disseram. E por aí adiante; arte, arte e mais arte...
Claro que tem coisas bem feitas. Quase duas horas de fita!...»
«E o Manuel, como
amador, é estupendo.»
«Uum... Muito
dinheiro, multas facilidades, subsídios...»
«Bom. Com isso
tudo, qualquer um acaba por conseguir uns pedaçotes de arte. Mas,
repito, como amador, o Manuel é estupendo.»
«Será. No entanto,
veja você, os críticos tanto falaram do «Auto», que se esqueceram
das «Realidades Portuguesas n.2». E’ o que me chateia!»
«Infelizmente não
vi as «Realidades 2». Não tive tempo, não tenho tempo, nunca mais
terei tempo! Esta minha vida, sabe?... E o «Auto»?»
«Já lhe disse:
arte. Estaria tudo dito se, ainda por cima, não fosse arte popular.
Arte popular!... não é que não goste. Todos sabem que eu gosto.
Gosto imensamente da arte popular. Mas no sítio próprio. Aí, entre
o povo, a gozar e a beber um copázio, para me meter na cor local.
Mas um filme inteiro só com isso do nosso povo e da sua arte!... A
mim não me enfiam barretes até aos calcanhares! Enfiem-nos aos
críticos, a esses que nem falaram das «Realidades Portuguesas n."
2»! Bem os conheço a todos!...»
«Ora!... Já cá
estou há muito mais tempo que você, sei bem o que é a nossa
crítica e o nosso cinema...»
«Uma desgraça...»
«Não há dinheiro.
Não se encontra dinheiro. Ninguém entra com dinheiro. E sem
dinheiro que é que se faz?» «E’ preciso dinheiro. Já não digo
muito dinheiro. Mas algum dinheiro.»
«Algum dinheiro,
não. Muito, Muito dinheiro. Dinheiro, hem!» «Pois esses tipos
conseguem dinheiro... E onde vão eles gastá-lo? Em filmes sobre a
vida do povo, a arte do povo, as actividades do povo...
«Neo-realistas, é o que eu lhes chamo.»
«Verdade,
humanidade, sofrimento... E é com estas balelas que eles julgam
conquistar o pagode.
«Neo-realistas, e
basta!»
«Acto da
Primavera»!... E, diga-me cá, qual foi o crítico que falou como
devia das «Realidades Portuguesas n." 2»?»
Desisti de ouvir
mais. Paguei o café e, antes de desandar para a porta, abri os
olhos, de modo a não encalhar nas cadeiras e nas mesas. Só então
vi quem eram os dois sujeitos. Ambos realizadores. Um, de imagens com
entrecho. O outro, de imagens sem nenhuma espécie de entrecho.
Enfim, dentro do nosso cinema —- 2 realidades portuguesas.
In Diário de
Lisboa, 22-10-1963
25 outubro 2009
Ponto de encontro (4)
Alguns filmes vistos no Doclisboa 2009:
THE FORTRESS, Fernand Melgar
THE REVOLUTION THAT WASNT, Aliona Polunina
THE FORTRESS, Fernand Melgar
THE REVOLUTION THAT WASNT, Aliona Polunina
Loin do Vietnam, Joris Ivens, William Klein, Claude Lelouch, Chris Marker, Alain Resnais, Agnes Varda, Jean-Luc Godard, 1967.
The Mamas and the Papas, Janine Bakker
Loin do Vietnam, Joris Ivens, William Klein, Claude Lelouch, Chris Marker, Alain Resnais, Agnes Varda, Jean-Luc Godard, 1967.
On the Way to School, Orhan Eskiköy & Özgür Doğan
Lisboa Domiciliária, Marta Pessoa
Gente da Casa, Carlos Gomes
Pare, Escute, Olhe, Jorge Pelicano
Capitalism: A Love Story, Michael Moore
27 setembro 2009
07 julho 2009
Revista online
05: FILMES CASEIROS E FILMES PARA A INTERNET DEZEMBRO:2008 VERSÃO INTEGRAL
04: DOCUMENTÁRIO E TECNOLOGIA AGOSTO:2008 VERSÃO INTEGRAL
24 junho 2009
08 maio 2009
13 março 2009
21 janeiro 2009
10 dezembro 2008
Serviço público
04 outubro 2008
Associação Portuguesa de Realizadores
Os dois blogues da Associação Portuguesa de Realizadores:
um de política do cinema: http://apr-realizadores-portugal.blogspot.com/;
outro de actualidades sobre filmes e realizadores: http://apr-realizadores-actualidades.blogspot.com/.
24 setembro 2008
11 agosto 2008
10 março 2008
03 março 2008
Cinema nacional (2)
Voltou a estar activo o sítio Amor de Perdição, base de dados do cinema português muito útil, apesar de desactualizada. (Pena é também que a antiga base de dados do ICAM tenha desaparecido, pois era um instrumento de pesquisa muito completo.)
18 fevereiro 2008
Cinema utópico
O Ano Zero Um (L'An 01) é uma fantasia utópica sobre o fim da sociedade capitalista, um filme completamente maio-68, apesar de realizado só em 1972, assinado por Jacques Doillon, com participação de Alain Resnais e Jean Rouch. Vi-o em 1976 no cinema Universal (na Rua da Beneficiência, ao Rego, onde depois foi o Rock Rendez-vous), revi-o empolgada na semana seguinte (era ainda no tempo do pós-revolução) e nunca mais me esqueci dele. Segundo uma sinopse que encontrei por aí, é um ovni cinematográfico, baseado numa BD de Gébé, feito como um falso documentário e anunciando-se com o slogan: «On arrête tout et on refléchit».
Vai passar amanhã, terça, às 22h, na Cinemateca na rubrica "O que quero ver" e, adivinhem, fui eu que o pedi!
08 fevereiro 2008
Cinema nacional
Sinopses e Programação
«É já daqui a uma semana o início do Panorama, 2ª Mostra do Documentário Português no Cinema S. Jorge.
Este ano partindo da questão que cinema faz o documentário português?, o PANORAMA propõe cimentar-se como espaço de encontro e debate entre os filmes e as pessoas, uma troca de impressões e experiências que contribua para uma visão maior do documentário português.
A divisão da programação será novamente temática, propondo analisar as formas e as ferramentas dessa criação. Assim, essas ferramentas foram concentradas em três grandes núcleos onde estão agrupados os 76 filmes seleccionados: a CÂMARA, o SOM, e a MONTAGEM.
Os debates também regressam e é o momento em que um dos principais objectivos do Panorama ganha forma: o lugar onde os filmes e a programação, assente na multiplicidade e diversidade, ganham voz. Do painel de debates farão parte: João Pedro Rodrigues, Joaquim Pinto, Manuel Mozos, João Mário Grilo, Rui Poças, Pedro Marques, Luis Miguel Oliveira, Alberto Seixas Santos, José Manuel Costa, Margarida Cardoso e Catarina Alves Costa.
Uma retrospectiva do trabalho documental de Paulo Rocha em Percursos no Documentário Português completa a programação da segunda edição do Panorama. Serão exibidos cinco filmes deste autor que consideramos constituir um espólio essencial para pensar de que forma o documentário se inscreve no campo do cinema. A retrospectiva de Paulo Rocha culminará num debate com a presença do realizador. »
23 dezembro 2007
Cinema de emigração
Um programa de arromba, no S. Jorge, de 5 a 8 de Janeiro, a começar com O Salto (1967) de Christian de Chalonge e a acabar com Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha.
Aqui fica a apresentação do primeiro (do folheto do ciclo):
O Salto
De Christian de Chalonge
Ficção, França, 1967, 88’
Com Marco Pico, Antonio Passalia, Ludmila Mikael, Henrique de Sousa e António Assunção.
(versão original em português e francês, sem legendas)
«António é um marceneiro português que, para fugir à guerra colonial e à pobreza, decide emigrar para França, respondendo ao desafio de um amigo. À dureza da travessia da fronteira, somam-se as dificuldades em Paris. Sem documentos, sem trabalho e sem falar francês, António deambula pela cidade em busca de Carlos, o amigo que lhe prometera ajuda. Neste seu percurso solitário, a esperança e o optimismo vão dando lugar à desilusão, sentimento partilhado por muitos portugueses com quem se vai cruzando.
Filme emblemático sobre a emigração portuguesa clandestina, O Salto está imbuído de uma forte carga política e ideológica, fruto do ambiente efervescente vivido em França na época. O crescente fluxo migratório, as condições em que partiam os emigrantes – a pé e em camionetas de carga – e a forma como eram recebidos em França são questões retratadas de forma crua e realista. Com esta primeira obra o francês Christian de Chalonge viria a arrecadar, em 1968, o prestigiado Prémio Jean Vigo.»
13 dezembro 2007
A arte do cinema
29 outubro 2007
O que é espanhol é lol
Revista Docs, la primera revista de documental en castellano.
Gostava de saber onde é que se pode comprá-la cá.
O que é nacional é mal
Nota final sobre o Doclisboa: a triste constatação da falta de atenção a que os documentários portugueses foram votados na imprensa diária, começando pelo Público, jornal associado ao evento, onde só se escreveu sobre os filmes estrangeiros, como se os filmes portugas não merecessem uma recensãozita, já que crítica nem há, como se pudessem só interessar a outro qualquer público que não o nacional, supostamente tão desinteressado como os jornalistas, o que se tem provado erróneo. A verdade é que este ano as sessões nacionais tiveram bastante menos público do que nos anos anteriores... Nas páginas de roteiro cultural, sim, havia um pequeno anúncio com todas as sessões do dia, mas incomprensivelmente os anúncios de página inteira do festival omitiam sistematicamente as projecções nacionais. Não há maneira de entender isto.
Mea culpa: também eu não escrevi aqui sobre o doc nacional, mas eu não tenho obrigações públicas. Ainda sou do tempo de "o que é nacional é bom". E quero felicitar o Daniel pela sua assídua cobertura do festival.
27 outubro 2007
Documentário político
É certo e aceitável que um festival de documentário – e tendo o mérito de se assumir como político – englobe muitos filmes que devem mais ao seu conteúdo do que devem à arte cinematográfica. Não é de estranhar portanto que tenham sido muitos aqueles que vi de onde parece ter desaparecido qualquer preocupação com o trabalho de câmara. É que hoje qualquer pessoa com acesso a uma câmara barata consegue filmar os temas mais quentes: guerras, prisões, torturas, ditaduras, miséria, escravatura, prostituição, etc.
Porém, a minha insatisfação não advém apenas do uso imponderável e caótico da câmara, mas também da falta de ponderação prévia ou posterior ao momento da filmagem, que se reflecte numa construção ou sequência expositiva aparentemente arbitrária e subordinada a um objectivo meramente mostrativo: vejam o que eu vi. Há filmes onde não encontrei uma intenção e muito menos um olhar. São filmes onde parece que só interessa o que está do lado de lá, e não interessa a mediação que alguém faz. Ora um filme, como qualquer outra forma de comunicação, tem obrigação de ser consciente sobre o seu discurso.
O caso torna-se mais grave quando o documentário quer ser “político” e nesse propósito deve saber assumir uma ética. O filme These Girls, sobre prostitutas adolescentes do Cairo, apresenta cenas fortíssimas e preocupantes. Em várias ocasiões aparece por lá uma espécie de assistente social espontânea, uma mulher caridosa a quem uma das raparigas diz que quer deixar a rua. Imediatamente, o plano é cortado e saltamos para outra situação qualquer. Fica pendente a continuação daquele diálogo: o que lhe terá respondido a amiga? Não é compreensível que a realizadora (que esteve presente no Doclisboa, mas a cujo debate não pude assistir) corte uma cena daquelas sem nos dar a conhecer a resposta, ou a falta de resposta, àquele apelo. Porque o assunto do filme e a sua intenção última não pode ser senão a de que querer salvar aquelas raparigas – independentemente de isso ser ou não ser possível. E como o filme não nos diz se é ou não, presumimos que não. O que é imperdoável é que a questão central seja omitida por um mero corte irresponsável.
These Girls fica-se pelo charme da denúncia e assim percorre os maiores festivais do mundo e dele se dizem coisas incríveis, como que mostra a alegria das jovens prostitutas – as pobres que se drogam com cola para suportarem dormir no meio da rua e sofrerem o estigma que as cicatrizes com que foram marcadas na cara assinalam e as várias violentações de que são alvo. Diz-se ainda que o filme foge ao sentimentalismo e evita as armadilhas da culpa ou da piedade barata. Que ideia é essa de que sentir pena é uma visão adulterada do primeiro mundo? Essa pena dá responsabilidades. Mas a hipocrisia parece mais confortável.
A partir daqui, levantam-se ainda outras questões – que incidem também sobre o excelente e non plus ultra Papel não embrulha brasas de Rithy Panh, um filme de uma delicadeza enorme, feito com prostitutas no Cambodja e encenado já quase como uma ficção, numa linha equiparável à de Pedro Costa. A questão que aqui ponho já não é a da forma ou a da distinção entre o melhor e o pior cinema, mas a questão da relação do realizador ao real que filma. A pergunta é: o que fez a produção destes filmes – o último financiado com dinheiros europeus – para ajudar aquelas raparigas, cuja condição miserável é resultado da pobreza extrema e insuperável. Qualquer filme que se defronte com uma realidade destas tem a obrigação de revelar, dentro do próprio filme, qual o seu compromisso perante essas pessoas que lhe dão a vida. Nenhum deles o faz. Esta falta de ética faz-nos duvidar da sua intenção realmente política: a de ser actuante sobre o mundo.
20 outubro 2007
Documentário de denúncia
El Ejido - A Lei do lucro, de Jawad Rhalib, realizador marroquino, com produção belga, denuncia as condições de vida sub-humana dos trabalhadores magrebinos no sul de Espanha, em estufas de plástico que cobrem completamente a paisagem. A verdade é que o filme deixa muitas questões em aberto - muitas perguntas por responder na cabeça do espectador. E, se é evidente que tem um propósito de denúncia, fica um tanto aquém de politizar o seu assunto - como diz uma agricultora no filme: "aí já entramos em política, disso não quero falar".
É o que de certo modo o realizador faz: fala dos bairros de plástico onde vivem como porcos os imigrantes clandestinos ou não, fala da exploração, fala da segregação social e do racismo, fala da precaridade do vínculo laboral, fala do pagamento à jorna (em valores absolutos 25/30 euros, mas sem relativizar, pois não nos diz qual é o salário mínimo em Espanha), fala de activismo social perseguido (?), fala de agricultura química - só não fala de política, de leis, de medidas e sanções para defender estas pessoas de condições de escravatura.
Uma entrevista com o realizador parece destinar o filme aos marroquinos que ainda não partiram, desiludindo-os acerca do eldorado europeu. Propósito inglório, pois é evidente que o filme não será mostrado em Marrocos... Ora, o debate que este filme lança só pode ser continuado através de outros meios, através da sua emissão e discussão pública - que parece não ter acontecido ainda em Espanha (nem sequer em festivais), onde a recepção prima pelas reacções: La ley del beneficio. Enfado de los agricultores de El Ejido. e Nueva campaña contra El Ejido que desprestigia su modelo de agricultura. O filme tem sido visto noutros países em vários festivais e passou no canal de televisão Arte. Repete no Doclisboa, dia 23, às 20h30 no cinema Londres, e o debate que se lhe segue, com o realizador, poderá esclarecer muitas dúvidas.
19 outubro 2007
Documentário manipulativo
Fala-se muito de ética quando se fala sobre documentário - como ainda ontem a realizadora dinamarquesa Eva Mulvad na discussão do seu filme Enemies of Happiness - e essa ética é referida geralmente às pessoas filmadas. Mas igualmente importante será a ética relativa ao espectador - que evita que um documentário seja manipulativo e dá ao espectador uma prova de confiança. Não é o que encontramos nos dois filmes que ontem abriram o Doclisboa.
Taxi to the Dark Side, de Alex Gibney, é um documentário do mais televisivo que há e altamente manipulativo: frases de poucos segundos retiradas aos intervenientes - que por breves momentos surgem do negro qual oráculos - são montadas fora do seu contexto discursivo - segundo uma narrativa precipitada cuja lógica nos escapa e nos conduz num labirinto argumentativo cujo objectivo não é apelar ao nosso raciocínio (é tudo demasiado rápido) mas às nossas emoções - aliás, ao nosso horror, que ao fim de pouco tempo se naturaliza e começa a aceitar o que antes - verbal e abstractamente - nos parecia intolerável (as torturas exercidas sobre prisioneiros iraquianos) e por via da exposição se torna mais tolerável (pelo menos aos olhos). (Confesso que não aguentei ver o filme até ao fim.)
Além disso, acho nojento o recurso a um género de banda sonora, que não chega a ser música, mas uma espécie de cama harmónica (um tique do actual cinema mainstream) que pretende subliminarmente suscitar emoções no espectador - expectativa, suspense, tristeza, melancolia, resignação, etc.
Apesar de ter achado Enemies of Happiness um filme muito interessante, também não gostei do uso que faz do mesmo tipo de banda sonora, porque é uma forma de hipocrisia o duplo discurso que ostenta: por lado diz ao espectador: olha, vê como é a realidade; por outro, junta-lhe um tempero de emoçõezinhas adequadas à sua cultura americanizada, para o fazer sentir mais intensamente - como se não bastassem as emoções da protagonista, suficientemente interessantes e reveladoras sobre o que é ser mulher afegã. Acho que isto é um desrespeito pelo espectador.
Também não gostei de ver que, quando Malalai pede para não ser filmada, a câmara continue ligada para apanhar as lágrimas furtivas da heroína, garantindo o momento de clímax emocional que todo o cinema comercial almeja. O que mostra uma falta de honestidade fundamental - a de não ter parado de filmar quando a isso foi instado - e a falta de vergonha em mostrar esse desrespeito.
É o estilo documentário de emoção (que é muito cultivado na América e, sim, no cinema dinamarquês). Para mim, é um embuste. São filmes montados a uma cadência a que as muitas perguntas que se podem suscitar na mente do espectador nunca têm respostas. São filmes construídos para evitar que o espectador pense alguma coisa senão o que está previsto. São feitos de forma a anular o pensamento crítico. São filmes anti-pensamento. São manipulativos. São indecentes.
18 outubro 2007
Maratona
Antecipadamente esmagados pela avalanche de documentários que se aproxima, fazem-se as apostas, dão-se palpites e os comentadores apresentam o seu menu à la carte, porque já sabem que, durante a maratona do doclisboa, quase não terão tempo para respirar e muito menos capacidade para reflectir por escrito.
No Expresso (Actual), Sérgio Tréfaut, enquanto programador do festival, escolheu o seu top10. O Público de hoje (P2) apostou noutros tantos filmes de tendência hardcore. Daniel Oliveira fez sua selecção de política quente. André Dias reflecte sobre a angústia da escolha e faz antecipações cegas. O Animatógrafo escolhe 9.
E eu fico-me por uma visão generalista das tendências do documentário nacional contempladas na selecção. Deixo aqui a lista e mais não quero especular, pois antes é preciso ver os filmes. Se estas tendências são representativas, ou não, é o que veremos mais tarde, possivelmente no próximo Panorama. Usando apenas as sinopses como referência, encontrei os seguintes grupos temáticos, do maior para os menores:
13 FILMES DE ARTES & LETRAS
4 sobre escritores:
A Terra Antes do Céu – de João Botelho
19 Out. 21.00 - Cinema Londres (Sala 1)
Sobre o Lado Esquerdo - de Margarida Gil
20 Out. 21.00 - Cinema Londres (Sala 1)
Poeticamente exausto, verticalmente só - de Luísa Marinho
19 Out. 16.30 - Culturgest (Grande Auditório)
21 Out. 16.00 - Cinema Londres (Sala 2)
& etc - de Cláudia Clemente
19 Out. 16.30 - Culturgest (Grande Auditório)
21 Out. 16.00 - Cinema Londres (Sala 2)
3 sobre o trabalho de artistas:
Piccolo Lavoro - de António Nuno Júnior
26 Out. 18.30 - Culturgest (Grande Auditório)
24 Out. 20.30 - Cinema Londres (Sala 2)
Blind Runner, An Artist Under Surveillance - de Luís Alves de Matos
26 Out. 18.30 - Culturgest (Grande Auditório)
24 Out. 20.30 - Cinema Londres (Sala 2)
Homens que São como Lugares Mal Situados - de João Trabulo
26 Out. 18.30 - Culturgest (Grande Auditório)
24 Out. 20.30 - Cinema Londres (Sala 2)
2 filmados nos bastidores de peças de teatro:
Era preciso fazer as coisas - de Margarida Cardoso
22 Out. 14.00 - Cinema Londres (Sala 2)
Metamorfoses - de Bruno Cabral
22 Out. 14.00 - Cinema Londres (Sala 2)
2 sobre música popular sobrevivente:
Não me Obriguem a Vir para a Rua Gritar - de Rui de Brito
21 Out. 21.00 - Cinema Londres (Sala 1)
Encontros - de Pierre-Marie Goulet
26 Out. 16.30 - Culturgest (Grande Auditório)
24 Out. 16.00 - Cinema Londres (Sala 2)
1 sobre dança:
Outras Frases - de Jorge António
26 Out. 23.00 - Culturgest (Grande Auditório)
1 sobre arquitectura:
Arquitectura de peso - de Edgar Pêra
25 Out. 18.30 - Culturgest (Grande Auditório)
22 Out. 16.00 - Cinema Londres (Sala 2)
5 FILMES SOBRE MUNDOS EM VIAS DE EXTINÇÃO
3 sobre pescadores:
Praia de Monte Gordo - de Sofia Trincão e Óscar Clemente
22 Out. 16.30 - Culturgest (Grande Auditório)
24 Out. 14.00 - Cinema Londres (Sala 2)
A Casa do Barqueiro - de Jorge Murteira
23 Out. 21.00 - Cinema Londres (Sala 1)
Gentes do mar - de Dânia Filipa Ferreira Lucas
24 Out. 14.00 - Cinema Londres (Sala 2)
2 sobre decadência da arquitectura urbana:
Lisboa dentro - de Muriel Jaquerod e Eduardo Saraiva Pereira
25 Out. 18.30 - Culturgest (Grande Auditório)
22 Out. 16.00 - Cinema Londres (Sala 2)
Nocturno - de João Nisa
20 Out. 18.15 - Culturgest (Pequeno Auditório)
23 Out. 21.00 - Cinema Londres (Sala 1)
3 HISTÓRICOS
2 sobre África:
As 2 Faces da Guerra - de Diana Andringa e Flora Gomes
19 Out. 23.00 - Culturgest (Grande Auditório)
22 Out. 23.00 - Cinema Londres (Sala 1)
Adeus, até amanhã - de António Escudeiro
21 Out. 18.30 - Culturgest (Grande Auditório)
22 Out. 20.30 - Cinema Londres (Sala 2)
e mais 1 sobre arquitectura:
As operações SAAL - de João Dias
23 Out. 16.45 - Culturgest (Grande Auditório)
19 Out. 14.00 - Cinema Londres (Sala 2)
2 SOBRE VIDA ACTUAL (e sexualidades)
Convicções - de Julie Frères
20 Out. 16.30 - Culturgest (Grande Auditório)
21 Out. 14.00 - Cinema Londres (Sala 2)
Mulheres traídas (making of) - de Miguel Marques
24 Out. 16.30 - Culturgest (Grande Auditório)
23 Out. 16.00 - Cinema Londres (Sala 2)
E 2 OBJECTOS NÃO IDENTIFICADOS (ditos “encomendas”)
La petite fille et le chien vont au bal de la reine - de Ana Margarida Fernandes Gil
24 Out. 18.30 - Culturgest (Grande Auditório)
23 Out. 14.00 - Cinema Londres (Sala 2)
Jardim - de João Vladimiro
24 Out. 18.30 - Culturgest (Grande Auditório)
23 Out. 14.00 - Cinema Londres (Sala 2)
14 outubro 2007
Hard doc
Se é do documentário actual, ou da programação, ou da promoção, não sei, mas os spots do doclisboa 2007 mostram uma certa tendência hardcore...
05 outubro 2007
02 outubro 2007
A praga do DVD
«Ao chegar à sala, repara numa série de pessoas a ver televisão através de um projector vídeo. A projecção do filme seguir-se-ia, dizem-lhe. Mas, desconfiado, e não vendo à sua volta equipamento de projecção, o espectador dirige-se à jovem senhora italiana que o tinha anteriormente orientado para a sala. Pergunta-lhe se, por mero acaso, a projecção não será eventualmente em vídeo, quer dizer, pior ainda, de Dvd. A senhora demora um pouco a perceber a questão, como se nunca tivesse reparado na diferença que este espectador, talvez desactualizadamente, tentava estabelecer entre projecção de película e de Dvd. Que sim, que era de Dvd. Ah! O espectador esboça um sorriso, só acessível aos verdadeiramente ociosos, e sugere delicadamente à senhora italiana que talvez não fosse má ideia mencionar no programa, por sinal com uns tons de azul tão bonitos, que a projecção ia ser, precisamente, de Dvd. E que em português havia uma expressão muito gira, talvez a senhora italiana não conhecesse, que é a de «gato por lebre», que podia talvez ser usada para descrever a situação, apesar da generosa entrada gratuita.» (...)
André Dias in http://aindanaocomecamos.blogspot.com/2007/10/em-dvd.html
Eu pensava que as edições de filmes em dvd ou vhs eram exclusivamente para projecção privada, segundo o aviso geralmente constante nas caixas: «Toda a cópia, exibição, aluguer, troca, sub-aluguer, empréstimo, exibição pública, difusão ou emissão são proibidos por lei e farão incorrer em responsabilidade civil e criminal». Enfim, o que seria dos clubes de vídeo...
André Dias in http://aindanaocomecamos.blogspot.com/2007/10/em-dvd.html
Eu pensava que as edições de filmes em dvd ou vhs eram exclusivamente para projecção privada, segundo o aviso geralmente constante nas caixas: «Toda a cópia, exibição, aluguer, troca, sub-aluguer, empréstimo, exibição pública, difusão ou emissão são proibidos por lei e farão incorrer em responsabilidade civil e criminal». Enfim, o que seria dos clubes de vídeo...
29 setembro 2007
Cinema esquecido
Quem não aparece esquece, lá diz o ditado. Vidas sem Rumo, terceira longa-metragem de Manuel Guimarães estreada há mais de 50 anos - uma história passada entre mendigos, estivadores e contrabandistas dos cais de Lisboa - será exibido na segunda-feira, dia 1 de Outubro às 22 horas, na Cinemateca, onde não é visto há já 10 anos. Este é o momento único de o podermos apreciar e de reavaliar a má memória que lhe deram.
Vidas sem Rumo era projecto de filme pelo menos desde 1948, mas a sua rodagem só se iniciou em 1952, com um segundo argumento feito em colaboração com Alves Redol. Pouco antes, MG acabara de realizar dois filmes de enfiada: Saltimbancos (1951), aclamado pela crítica neo-realista, e Nazaré (1952) com argumento de Alves Redol, mas tendo sofrido cortes de censura que bastante o prejudicaram. Nessa época, Guimarães (que nascera em 1915) ainda era considerado uma esperança de renovação do cinema português.
Porém, Vidas sem Rumo haveria de sofrer inúmeros cortes da censura e o realizador só o deu por concluído em 1956, depois de ter refilmado uma boa parte e substituído uma actriz, para conseguir que o filme resultante tivesse ainda inteireza. Ainda assim, foi aprovado com cortes da censura e estreou-se em Setembro de 1956 no Teatro da Trindade, onde esteve em cartaz durante 3 semanas. Segundo Manuel Guimarães este foi um filme que se pagou a si mesmo (sem subsídios, note-se).
Dizia o realizador, em 1963, numa entrevista ao Diário de Lisboa: «Vidas sem Rumo era uma história minha, e talvez por isso o considere, entre todos os meus filmes, o melhor. Acontece que do verdadeiro filme que fiz, apenas uns 50 por cento foram apresentado ao público. Muita gente é disso testemunha. Considero que este filme teria sido o salto para um cinema português de expressão. Foi mal apresentado, mal compreendido e tive de consentir – ao fim de quatro anos da sua realização – a sua estreia porque de outro modo seria a ruína dos seus produtores. Caso curioso: foi o meu único filme que deu lucros apesar da sua mutilação. Foi um filme barato, 550 000$, o primeiro que, em Portugal, foi realizado sem estúdios, em compartimentos acanhadíssimos duma casa particular, na Ameixoeira.»
A crítica histórica foi todavia impiedosa e construiu um anti-mito acerca deste filme. Luís de Pina, que em 1977 (1) ainda reconhecia algum valor a este filme («mostrava a pobreza urbana e a dificuldade de viver, apesar das mutilações que sofreu.»), em 1986 (2) diria que “a censura [o] tornou irreconhecível”; depois Bénard da Costa (3) chama-lhe “desastre” e Jorge Leitão Ramos (4) afirma que “Guimarães tem o futuro negado e inúmeras dívidas às costas, fruto do insucesso”, o que não é propriamente correcto.
Desde então, são vários os autores que negam a existência de um neo-realismo no cinema português, mormente por não estar à altura ao seu modelo italiano, como se fossem equiparáveis as situações socio-políticas na Itália do pós-guerra e da libertação e em Portugal, cada vez mais fechado e apertado pelo regime fascista. Para circunstâncias diferentes, respostas diferentes, evidentemente. O neo-realismo no cinema português foi o que foi; talvez incipiente, talvez “melodramático e sentimental” (JBC), talvez aquém das expectativas, mas é uma falácia afirmar que não existiu. Importa ainda frisar que, na década de 50, Guimarães foi o único cineasta resistente, o único que então desafiou corajosamente a cultura oficiosa do Estado Novo, e sempre perdeu com isso. Os seus filmes são os sobreviventes possíveis desse paciente extermínio da cultura portuguesa às mãos da censura de Salazar, e devemos saber olhá-los, senão como obras perfeitas, como obras de resistência. É essa a minha proposta para dia 1.
(1) A Aventura do Cinema Português, 1977, p.56
(2) História do Cinema Português, 1986, p. 122
(3) Histórias do Cinema, 1991, p.108
(4) Dicionário do Cinema Português (1962-1988), 1989, p. 191
28 setembro 2007
Cinema fetichista
Metal e Melancolia (1993), documentário acerca dos taxistas de Lima, Peru, é o primeiro de muitos documentários que Heddy Honigmann desde então fez e aquele que inaugura e, claramente, estabelece um estilo, um método, um olhar pessoal - definindo uma abordagem original no cinema documental.
Honigmann aborda os taxistas a partir do objecto/instrumento que é o automóvel que conduzem e que, neste caso, apresenta aspectos quase bizarros de degradação usados como truques anti-roubo que, no contexto de crise económica, garantem a preservação do automóvel. A maior parte destes taxistas exercem a actividade como segunda profissão e no seu carro particular, ao qual apenas afixam um autocolante. A realizadora senta-se no banco ao lado ou atrás e, embora ausente da imagem, mantém uma interlocução sucinta com o condutor, a suficiente para os levar a desenvolver histórias pessoais – que, se por lado denunciam a situação económica do país, sobretudo revelam assuntos familiares e sentimentos (uma certa melancolia) com uma sinceridade tocante – que faz a força deste filme.
O automóvel é afinal apenas o pretexto para desvendar o resto e chegar ao grau mais íntimo de revelação da pessoa. Esta é a técnica privilegiada de Honigmann: partir do objecto – e do seu valor como fetiche, símbolo, projecção, transferência - para chegar ao âmago dos seus protagonistas. Ou seja, tirando partido de uma relação sempre latente entre as pessoas e os seus objectos significantes - prenhes de conotações, aspirações e significados – é como se o objecto fosse, na sua simplicidade, a porta aberta para a alma das pessoas. É afinal esse o papel dos objectos na vida das pessoas, e a razão por que tanta importância adquirem enquanto símbolos, amuletos, fetiches. O objecto tem um estatuto equivalente ao dos conceitos abstractos ou morais. Ele condensa e representa uma série de memórias, desejos e afectos.
O papel da interlocução é também essencial na definição do estilo de Honigmann. Mas distingue-se do género entrevista pela sua discrição e simplicidade, tanto quanto se distingue do cinema-(in)directo que mascara e omite as interlocuções para dar a ilusão de um universo auto-contido onde não se sentem as interferência do sujeito de enunciação estranho ao ambiente.
Outro filme é o extraordinário é O Amor Natural (1995), filmado no Brasil e tomando como ponto de partida o livro, assim intitulado, de poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade, que Heddy faz ler em voz alta por pessoas de idade, suscitando em conversa – mais uma vez a partir do objecto, aqui poético – a revelação de dimensões inusitadas da intimidade pessoal, como são o desejo e a vida sexual daqueles que a sociedade geralmente ignora. É um filme monumento. Um documentário revelador como poucos no mundo. Um poema em carne e osso.
O documentário sobre os músicos underground de Paris - The Underground Orchestra (1998) – é aqui literalmente sobre os músicos que tocam nos subterrâneos do metro, e que depois serão expulsos para a superfície das ruas. Na sua relação com a música e com o seu instrumento revelam-se histórias de vida, muitas delas relacionadas com migrações e episódios da história política na América do Sul, por exemplo.
Notável será ainda o documentário que rodou na Bósnia - Good Husband, Dear Son (2001) - acerca das terríveis guerras civis que assolaram a antiga Jugoslávia na década de 90. Mas como será possível falar da morte, dos massacres e de tantos horrores tão recentes? Joaquim Sapinho conheceu também essa dificuldade, ele que fez um filme – Diários da Bósnia - onde não há palavras para exprimir o horror. Mas Heddy Honigmann fez o que só para ela podia ser óbvio. Partiu dos retratos dos maridos e filhos mortos, para suscitar através deles todo um caudal de memórias de amor e de dor, que naquelas recordações todas se condensam.
O seu último filme – Forever (2006) - leva ainda mais longe essa relação, tão intrínseca e constitutiva do humano, entre os objectos e a dimensão espiritual do indivíduo. Deslocando-se até ao cemitério Père Lachaise em Paris, a realizadora indaga as motivaçãoes dos visitantes cultistas de artistas célebres ali enterrados e mostra uma forma de memória que, ao invés de mórbida, se apresenta como uma fonte de alimentação espiritual e de relação com o mundo da arte – que se simboliza nesse afecto aos grandes - através do qual se exprimem inclinações e sentimentos pessoais e intransmissíveis – não fosse o método de Honigmann de os conseguir transmitir. Este filme também extraordinário (perdoe o leitor falar num só texto de tantos filmes extraordinários, mas não posso evitá-lo) ganhou no IndieLisboa de 2007 o prémio do público. Que um filme sobre um cemitério seja o preferido do público só pode ser um atestado de excepcionalidade.
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Mas a excepcionalidade de Honigmann não se fica pelo método de abordagem. Os seus filmes conquistam-nos ainda através da construção narrativa e pelo domínio da grande forma (temas que não desenvolverei aqui).
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P.S. HOMENAGEM A PEDRO ALPIARÇA. Na Guilherme Cossoul. 30 de Setembro. 22 h.
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