Duas Causas é um filme de 1952, do realizador Henrique Campos, que põe em evidência o problema do aborto naquela época. É uma história de família pequeno-burguesa preocupada em casar bem a filha crescida e encaminhar o filho estudante de direito, família que inclui ainda uma rapariga enjeitada, humildemente grata por ser protegida e tratada carinhosamente "como se fosse da família", e por quem se enamora o rapaz, um tanto estouvado, que logo a desdenha, enquanto procura casamento mais conveniente, para subir de classe...
Entretanto, como ficou grávida, a "ingénua" (personagem-tipo do cinema dessa época) vai ter que abandonar a casa, para não envergonhar a família. O pater familias fica furioso com o canalha que desonrou a menina, sem suspeitar que era o seu próprio filho, o que ela também nunca revela, assumindo a desonra sozinha.
O rapaz entretanto defende a sua primeira causa em tribunal: a de uma rapariga que tentou sem sucesso interromper uma gravidez, ou seja, atentou contra o filho que traz em si e vai ser julgada por isso. Como advogado defende que não é ela a culpada mas o sim o homem cobarde que a abandonou naquele estado e a deixou desesperada e sem ter como sustentar a futura criança. A sua eloquência comove todo o auditório e consegue suscitar o arrependimento do homem, presente na plateia, que assume a culpa e promete casar com a mulher.
Depois de muito felicitado por todos e recebendo os agradecimentos do casal reconciliado, o herói dá-se conta da contradição entre a causa alheia que defendeu e o seu próprio egoísmo, e os remorsos levam-no a casar com a namorada grávida. É uma reconversão quase artificial, porque a contradição interna é meramente esquemática, mas tem uma função ideológica aqui: sanar a "dialéctica" masculina entre a fuga e o dever, se tudo entrar na ordem estabelecida e reconhecida do casamento. O que foi abuso, desonestidade, arrivismo ou hipocrisia, tudo isso se resolve desde que as personagens aceitem o seu lugar na sociedade.
O filme não pretende apresentar um problema, nem evidenciar as contradições interiores das personagens, pretende apenas apresentar o casamento como solução óbvia para o problema da gravidez, mandando o espectador para casa com as certezas no lugar. A asneira é bem tolerada, desde que aconteça dentro da ordem social.
Hoje, que o casamento já não é um imperativo social, ser mãe solteira já não é um estigma (como ainda há 30 anos), deixou de haver filhos “naturais” e o divórcio é frequente, na questão do aborto continua a responsabilizar-se moralmente a mulher, esquecendo-se que há por certo um homem também responsável, já não pela desonra, mas pela “falta de cuidado” e frequentes vezes pelo desinteresse que demonstra pelo produto “vivo” dessa sua inconsciência, fraqueza ou deslize. É o caso, de que tanto se fala, do tal pai biológico que acordou tarde de mais para a criança que não queria, e que só depois decidiu reclamar...
Em 50 anos mudou muita coisa: as mulheres são livres e independentes, já ninguém espera a tutela dos homens, facilitando-se a desresponsabilização masculina em relação à procriação natural, embora haja por lei averiguações de paternidade. Mas mantém-se igual a penalização criminal do aborto centrada nas mulheres, sobre quem recai toda a culpabilidade. É isso que falta mudar.
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