28 janeiro 2007

O cinema e o capital



“Visto um filme americano - estão vistos todos os outros. O mesmo fundo moral, a intriga anterior ligeiramente disfarçada; os artistas parecem todos gémeos, de igual estatura e com traços semelhantes, actuando sempre do mesmo modo. Tudo aquilo é em série: argumentos, realizações, processos, artistas, etc...

Quando um filme é um sucesso de bilheteira serve de modelo para dezenas de filmes semelhantes. Tal qual como na indústria de automóveis; depois de se ter estudado um tipo de carro, é reproduzido em série aos milhares.

Traíram os fins humanos, sociais e educativos duma arte utilizando os seus meios para simples especulação comercial, imprimindo no celulóide vida falsificada nos estúdios, a qual é tão funesta ao espírito e à cultura dum povo como o azeite falsificado pelo merceeiro o é ao estômago daqueles que inconscientemente o ingerem. (...)

Em vez de se estudarem temas humanos, escolhendo depois os intérpretes segundo as exigências desses temas, escrevem-se e adaptam-se histórias de propósito para esta ou aquela artista, de maneira a pôr em evidência toda a sua beleza física e todo o seu “sex-appeal”. (...)

Sendo o cinema, de todas as artes, a que maior e mais influência exerce sobre a mentalidade popular, sucede que se parte da falsa e criminosa opinião de que o espectador nada mais necessita e deseja do que saborear por um preço mínimo e confortavelmente instalado na sua cadeira, um espectáculo alegre e divertido que lhe faça esquecer as canseiras e dissabores de uma vida extenuante. E o público esquece que a sua vida é atribulada por uma péssima organização social e económica, aceitando por uma cómoda e grosseira cobardia aquela aviltante compensação que lhe oferecem.

Ora o cinema precisamente poderia, como nenhuma outra arte, apontar esses males e as suas consequências quando mais não fosse tomando como temas dominantes os múltiplos problemas que o homem defronta na sua vida sexual, na sua vida familiar, na sua vida profissional, na sua vida económica e na sua vida social. (...) »

Manoel de Oliveira, "O cinema e o capital" in revista Movimento, nº7 de 1 de Outubro de 1933
(Foto: Oliveira e José Régio)

1 comentário:

Sérgio A. Correia disse...

Sim e não. Combinatória da narrativa=listagem das possibilidades narrativas a vários níveis+observação atenta das mesmas+redução ao básico americano+expansão criativa do modelo mínimo+redescoberta da tradição europeia+incorporação de subplots (=não-estórias da estrutura "clássica") na estrutura clássica. Resumo: sim e não. Que vê um filme americano (que é isso?) viu mil. Quem viu uma pessoa viu um milhão. Repetição, narração, variação. Sim e não.