09 janeiro 2007

Borat – na tradição do cómico



a) Ele cumpre a gramática do humor tal como ficou estabelecida na idade do ouro – o primeiro quartel do século XX, com Buster Keaton, Harold Lloyd, Chaplin, etc. Poderia dar dezenas de exemplos, mas fico-me por um: o filme cómico devia fazer-nos rir até às lágrimas durante dois terços do filme mas, em dois ou três momentos e, sobretudo no final, devia comover-nos, suscitando eventualmente lágrimas que nós disfarçávamos com um sorriso. Chaplin fazia isto magistralmente – Woody Allen, nos seus primeiros filmes cómicos, também. E Buster Keaton é Deus.

b) Quando Borat ataca “toda a gente” está, reconheço e faz-me recear o pior, a incorrer no risco “burguês” do niilismo. Ou, embora menos, noutro tipo de niilismo, o aristocrático: gozamos com todos, “because we can”, porque todos nos são inferiores. Mas quando mostra de que lado está – a prostituta sulista é ali uma encarnação do povo, ou, se preferirmos, da Zéza Povinho – deixa de ser niilista, para passar a ser construtivo, positivo. E, se ninguém se ofender por eu dizer isto, até moral.

c) Há um sábio equilíbrio entre grandes episódios, alguns fortíssimos, outros surpreendentemente poéticos, e o fio narrativo. Até nisso o filme é bom: consegue, a partir de um material muito variado (aposto que deixaram litros e litros de cenas pelo chão da sala de montagem, e alguns deve ter-lhes doído deixar de fora), ter um mínimo decente de compostura narrativa.

d) Episódios poéticos? A visita à casa do Judeu, onde todo o delírio depende do trabalho dos protagonistas, e não da reacção dos involuntários às suas provocações. O medo do Judeu da personagem Borat roça o infantil e por isso não nos horroriza tanto como, se o levássemos a sério, deveria fazer. E esse é o génio do seu criador: o anti-semitismo e machismo alarves não nos fazem odiá-lo, porque ele os “pratica” com a inocência de quem não sabe o que diz. E acho que Jesus já tinha uma frase a respeito disso, era algo como “Pai, perdoa-lhes...”

e) Outro momento revelador é o reencontro entre Borat e o seu produtor, que está em Los Angeles a ganhar a vida, mascarado de palhaço. Ora o palhaço é, para alguns amantes da provocação, da performance e do humor não-gargarejável, o símbolo máximo desta Grande Arte que é o cómico de implicações trágicas.

f) Claro que Borat roça o mau gosto! Pode-se lá viver sem roçar o mau gosto! A alternativa era fazer o mesmo que a França nos anos 80 fez ao punk inglês: embalsamou-o, tornou-o decorativo, sofisticado, fútil, inútil.

g) Acontece que, em Portugal, até os anglófilos têm tendência a ser decorativos, sofisticados, fúteis, inúteis...

h) A cena do rodeo é espantosa. A piadola em si seria banal se fosse feita com rede. Mas essa é a diferença entre a performance, para um público cúmplice, e o happening, em que o público não sabe sequer que é público – nem de que está a ser público.

i) Com quem está Borat a gozar? Bem, o próprio Sacha Cohen explica: não é com o Cazaquistão, é com os americanos. E aqui uma vez mais limita-se (no bom sentido do verbo limitar) a aplicar à letra a cartilha que tanto Buster Keaton como Chaplin ou mesmo Laurel & Hardy tão bem cristalizaram: um pobre diabo, um pequeno soldado Schweik, ao qual acontecem coisas, malentendidos, desaires e que, precisamente por ser um “ingénuo de coração puro”, consegue passar pelo fogo sem se queimar.

j) Gil Vicente disse isto de outra maneira, da mesma maneira, no Auto da Barca do Inferno. Ao contrário do fidalgo e da alcoviteira, o néscio Joane vai mesmo para a barca do Céu porque, embora seja grotesco e malcriado – “Caganita de coelho! Pelourinho da Pampulha! Mija n’agulha! Mija n’agulha”, etc. – tem o coração no sítio certo. À esquerda, exactamente no local onde (segundo a lenda) até Paulo Portas tem esse simpático órgão.
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Rui Zink

1 comentário:

Sérgio A. Correia disse...

Descobriu-se recentemente que o coração dispõe de um cérebro (no seu sistema nervoso) com neurónios que transmitem informações para o outro cérebro, condicionando-lhe fortemente as emoções/decisões. Duvido que tal aconteça com o Portas. Do que não duvido, no entanto, é que este texto foi escrito com os dois cérebros, pois enquadra
muitíssimo bem o filme não só na genealogia americana do género, como na tradição literária universal.