Sempre houve educação sexual mas continuará a não haver.
É o próprio parecer do Conselho Nacional de Educação sobre Educação Sexual que claramente distingue duas formas de educação da sexualidade: a informal e a formal. A primeira é aquela que sempre tivemos e que, acompanhando as mudanças sociais e culturais, vem evoluindo em termos de modelos, valores e práticas. A formal é aquela que é ensinada numa instituição, ou seja, na Igreja ou na Escola.
A Igreja tem a sua catequese e seu papa e age livremente em terreno próprio, no seu combate contra as realidades (o preservativo, o aborto, a homossexualidade). A Escola ainda não assumiu completamente o seu papel educativo neste campo, a não ser muito recentemente, precisamente com este relatório.
Na minha opinião, no campo da educação sexual, cabe à escola transmitir conhecimentos que não sejam passíveis de discussão. Ou seja, que não colidam com os valores de cada um, mas que transmitam valores universais e consensuais, como o respeito pela opinião alheia e a liberdade individual. O que significa que a escola, ao contrário da igreja, não deve impor modelos de comportamentos, nem julgar crenças, nem discriminar pessoas ou modos de vida.
Isto, aliás, o próprio relatório o diz: “A Educação Sexual em meio escolar não pode posicionar-se em relação a qualquer atitude e quadro de valores que não sejam consensuais (...)”.
Propondo que a educação sexual seja uma área curricular transversal integrada na educação para a saúde, a Comissão não recomenda que seja criado um programa nacional, mas apenas que cada escola defina o seu programa e o apresente ao Ministério para aprovação. Nem sequer avança com um esboço de intenções ou sequer objectivos gerais, como é prática corrente nos curricula escolares.
De um modo geral, de acordo com as práticas correntes e que o relatório colige, os objectivos gerais da Educação para a Saúde serão fornecer informação adequada e correcta e prevenir comportamentos de risco, como a obesidade, o alcoolismo, as drogas, a transmissão de doenças, nomeadamente a sida, ou a prevenção da gravidez não desejada, fruto em parte da desinformação. No fundo, um prolongamento das recomendações que um médico ou um centro de saúde dá, mas preventivamente.
Qual será então o objectivo geral da Educação Sexual, qual a estratégia a seguir? A única resposta que lá encontro é esta: “O CNE reitera que a Educação Sexual em meio escolar é uma componente da área de Formação Pessoal e Social, que se enquadra na educação em valores e para os valores.”
Insiste-se na educação dos valores. Mas que valores? É que valores são como os gostos, dificilmente se conseguem discutir, porque estão ancorados em convicções profundas, estruturais, emotivas, quase irracionais. O caso do aborto é o melhor exemplo: é impossível converter os oponentes do sim e do não. Ambos têm posições irredutíveis e não estão dispostos a abdicar delas. Num diálogo de surdos, o mais que uma discussão de valores pode fazer é ensinar a uns que respeitem as opções dos outros. E como é que se discute este assunto numa aula de educação sexual? Como é que evita que as convicções do professor ofendam as dos diferentes alunos?
Nem neste nem noutros valores, podem os cidadãos ser polícias das consciências alheias. O mérito que pode ter uma discussão de valores é levar uns a compreender ou a aceitar os valores dos outros. Mas mesmo isso é difícil. É uma luta sem tréguas. Veja-se o caso do direito ao casamento e à adopção por parte de pessoas do mesmo sexo.
Mas afinal, o próprio parecer reconhece até onde vai e onde acaba o consenso: “É consensual falar de Educação Sexual nas escolas numa vertente de natureza informativa, na medida em que se reconhece à escola a função de organizar em códigos de conhecimento o que o aluno precisa de saber sobre reprodução, fecundação, corpo, identidade, diferença, género, entre outros conteúdos curriculares. Falar de uma Educação Sexual na dimensão da Educação para a Sexualidade, ou Educação da Sexualidade, que se prende a afectos, emoções, amor, estádios maturativos, desenvolvimento da personalidade, para além de outras questões, significa reconhecer o dissenso.”
O modelo que agora se propõe correrá o risco de se diluir - e desresponsabilizar (como acautela o documento) todos os intervenientes transversalmente - como aconteceu com a disciplina de DPS – Desenvolvimento Pessoal e Social – criada há 16 anos e nunca implementada nas escolas (o que os pais comprovam todos os anos, quando inscrevem os filhos opcionalmente em Religião e Moral ou DPS).
O que eu encontro neste relatório, muito equilibrado mas totalmente ambíguo, é que procura agradar a todos, sem definir nada. Quem fala aqui é o medo, o desenrasquem-se como quiserem, que aliás é como sempre foi. Ou o “medo de existir” (de José Gil, como assinala Miguel Vale de Almeida).
A real educação sexual é informal, como sempre foi. Faz-se com os amigos, com os exemplos alheios, com as revistas cor-de-rosa, com a telenovelas, com os bigbrothers, com a internet, com a família (last and least). Todos estes meios são muito mais poderosos que a escola, para veicular modelos e valores. A escola, aliás, tem por incumbência transmitir conhecimentos e dar instrumentos de raciocínio necessários ao desenvolvimento da pessoa (o que não é missão de nenhum dos outros meios).
E no entanto, o meio de educação mais eficaz que existe é a televisão. Tanto pode educar como deseducar. É por isso que acho que, das obrigações da televisão pública, deveria constar uma componente pedagógica (não apenas cultural) - um programa de educação cívica com objectivos definidos (como nas escolas), que divulgasse informação indispensável ao cidadão comum: por exemplo, nesta área, a prevenção da sida, a informação sobre contracepção. Nada é pior que a ignorância.
Mas a educação cívica passa também pela educação para os media, ou como aprender a ler e descodificar as mensagens dos media. Perceber, or exemplo, que, quando se fala em aborto e em vez de mostrar um embrião se publica uma fotografia de um feto (após as 10 semanas), se está a mentir, a manipular sentimentos e a condicionar involuntariamente o leitor.
As recomendações desta Comissão, na minha opinião, escondem o medo de agir e orientar, o medo de ofender, não tanto as famílias em geral, mas as organizações fanáticas que falam em nome delas e da igreja. Tal é o peso do catolicismo nesta política de cobardes e inoperantes. E as coisas mais importantes, pessoal e socialmente, afinal são: evitar doenças fatais, gravidezes indesejadas, crianças abandonadas, pessoas discriminadas. Não é tão simples explicar isto a qualquer pessoa? Ou têm os meninos que ver o programa de sexo da TVI às escondidas?
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