14 novembro 2006

Moldar a imagem (2)



Gustav Deutsch trabalha sobre imagens cinematográficas antigas – imagens de arquivo ou found footage - que ele reproduz a uma velocidade mais lenta, dando-nos acesso a uma leitura atenta dos pormenores e sobretudo dos gestos das pessoas cuja imagem foi por instantes capturada.

Em “Mundo Espelho Cinema”, partindo de uma imagem panorâmica inicial, à qual regressa várias vezes, Deutsch faz zooms digitais a certas figuras a partir das quais dá um salto para outras imagens semelhantes (de uma rapariga para outra, de um homem de bigode para outro, de um homem de boné para outro, de um automóvel para outro, etc., etc.) – um procedimento formal de raccord que lhe permite associar todas essa imagens encontradas e criar a partir delas um tecido de relações que parte e volta à imagem-mãe.

No filme que ontem vimos, dividido em três partes, essas imagens iniciais eram imagens de rua – panorâmicas - em que a multidão se vira para a câmara entre o divertida, o curiosa e o desafiadora. A primeira imagem do primeiro filme é numa rua de Viena, em 1912, frente a um cinema. No segundo filme, em Surabaya, Indonésia, 1929, a imagem inicial mostra um cine-teatro onde se exibe os Nibelungos. Em S. Mamede de Infesta, Porto, 1930, o cinema local apresenta Zé do Telhado. A consciência dos passantes acerca do papel da câmara que filma a rua é já informada pelo seu conhecimento e experiência do cinema em sala. Não há inocência em relação à presença da máquina, mesmo quando o riso envergonhado de quem se mostra diante dela ainda revela a virgindade dessa relação.

A partir de cada uma destas imagens introdutórias, associam-se imagens soltas que tanto pertencem a filmes de ficção, a experiências, a documentários ou a filmes oficiais. O conjunto recria um quadro imaginário composto de auto-representações de época, que a uma distância de muitas décadas se reconstituem para nós como fragmentos de vida e de pensamento cujos hiatos e omissões devemos preencher com a nossa memória e imaginação. As imagens contam-nos qualquer coisa cujo referente se perdeu no tempo, e é o nosso papel de espectadores o de as recontar interpretando livremente.

Ou de como imagens documentais se podem transformar em puras manifestações do desejo de imaginar, reinterpretação de sinais e emoções que nos chegam obliteradas – e sem som. Aliás, a criação de uma banda sonora - a partir de canções de época, retomadas composicionalmente numa linguagem musical mais contemporânea – sustenta a visão das imagens e o seu ritmo, criando uma cama sonora para a contemplação. Fascinante.

Welt Spiegel Kino. Episode 1–3 (2005), visto ontem na Cinemateca. Hoje, às 21h30, passa “Film ist”/O cinema é.
No blogue
Ainda não começamos a pensar, uma filmagem, feita por Nuno Lisboa, de G.D. pesquisando na moviola.
Em exibição em Vila do Conde: http://www.curtasmetragens.pt/solar/index.php?menu=5&submenu=122
A extensa filmografia de Gustav Deutsch pode ser consultada em
http://www.sixpackfilm.com/catalogue.php?pid=1596&lang=de

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