16 novembro 2005

O manicómio

“San Clemente” (1982) é um filme extraordinário e perturbador. San Clemente é um hospício que ficava numa ilha de Veneza. Raymond Depardon começou por fotografá-lo e em 1980 filmou os seus habitantes, numa interacção assumida da câmara com os seus personagens, que, apesar de semi-alheados na normalidade, estão perfeitamente conscientes de estarem a ser filmados. Alguns rejeitam essa intrusão e manifestam-se contra a câmara, por gestos significativos, inquirindo-a, tapando-a, capturando o microfone.

Os realizadores optam por manter na montagem essas interacções, pondo em cheque duas coisas: por um lado a sua legitimidade para filmar; por outro, o respeito pela vontade dos intervenientes renitentes. Não é por acaso que o primeiro plano do filme mostra a expulsão da equipa de filmagem dos corredores do hospital. Raymond Depardon e Sophie Ristelhueber colocam assim, imediatamente sobre a mesa, isto é, estampado no texto do filme, questões de ética prementes.

Será que a vontade dos que não querem ser filmados – tanto quanto a indiferença ou a satisfação dos outros - deve ser respeitada como um acto de consciência (o que aconteceria cá fora) ou ignorada como uma diminuição da mesma? Ou será que a omissão desses casos de rejeição não teria como consequência a deformação da verdade essencial que o filme procura revelar? Os internados apareceriam como uns tontinhos infelizes - que não serão. A fronteira áspera, que se sente nestas pessoas, entre a sobreconsciência e a dor seria atenuada, camuflada por uma opção legalmente-correcta mas humanamente incorrecta. Onde se fixa a ética? No respeito pela afirmação da negativa, ou na anulação dessa negativa como se não existisse? Na afirmação do conflito inerente ao acto de filmar outros, ou na omissão dessa tensão?

Este filme não seria de todo o mesmo se não respeitasse com fidelidade a realidade que retrata. Depardon é um mestre do plano-sequência. Numa tomada de câmara contínua de vários minutos ele segue as inquietações quase inexpressas de uma personagem ou salta para os outros que se cruzam, acompanha interacções, move-se por corredores e apreende uma existência em moto continuo, que doutra qualquer forma nos escaparia. Este modo de filmar – que se desenvolve no tempo e ganha intensidade - é indispensável à compreensão da vivência das pessoas neste local. O seu dia é feito de esperas e deambulações, de vazios aparentes e de obsessões emergentes. O plano-contínuo vem da necessidade de fazer justiça a uma situação de clausura que não admite respirações nem cortes.

O movimento sintonizado da câmara faz-nos mergulhar num universo que aos poucos se vai tornando denso, vago, como um sonho quase. A presença dos paliativos que são a televisão na sala de convívio ou os rádios que alguns doentes transportam consigo – como mundos de evasão ou contactos com o exterior (e que não diferem dos nossos cá fora) - habitam aquele espaço de irrealidade. E, a certa altura do filme, começamos a perceber que a inquietação que paira está ainda mergulhada no torpor dos medicamentos administrados, do qual não se sai. É uma longa espera sem esperança.

Os pacientes deste manicómio – percebemo-lo pelas conversas e reuniões que há entre enfermeiros, doentes e famílias – estão cientes da sua situação e das razões por que ali estão. Dario, de 26 anos, faz um esforço insano para ser são e superar a morte do pai, mas o médico e a mãe cerceiam-lhe a liberdade, e ele enfurece-se com a clausura e queixa-se aos amigos, o cameraman e a soundwoman. Outros, pelo contrário, justificam com razoabilidade a sua opção pela protecção que recebem. Mas não parece haver objectivos quotidianos na existência ansiosa destas pessoas. Ouvem televisão, ou vão e vêm de um lado para o outro ruminando pensamentos, ou recitam frases repetidas sem esperar diálogo. De vez em quando acontece uma visita de familiares, um baile, uma saída ao carnaval de lá de fora, onde eles parecem tão normais como os outros mascarados. Mas eles são os considerados irrecuperáveis - desde a reunião inicial que esse facto é postulado diante de todos. E só a câmara de Depardon consegue a proeza de lhes restituir toda a dignidade que, por estarem escondidos do mundo, tinham perdido.

(Visto em 14 de Novembro no Instituto Franco-Português, integrado no ciclo de cinema "Le monde est un grand asile”, integrado no colóquio Michel Foucault: Lei, Segurança e Disciplina - Trinta anos depois de Vigiar e Punir.)

2 comentários:

JPN disse...

gostava tanto de ter visto!

Anónimo disse...

Ando há que tempos para ver esse documentário. O Raymond Depardon é absolutamente sincero com a câmara na mão. Parabéns pelo texto. Um blog destes já faltava.
ana