11 julho 2006

Cinema polifónico



Na obra de Iosseliani, a música está sempre presente: como um elemento da vida diária e como veio estruturante de cada filme. No documentário “Velhas Canções Georgianas” (1969), encontramos o canto polifónico georgiano como forma tradicional de convívio em volta de uma garrafa de vinho e a sua relação com os trabalhos agrícolas – a vindima e a fabricação do vinho. A presença do canto espontâneo e da música no quotidiano já se notava em “Folhas Caídas” (1967) - centrado numa cooperativa vinícola - e no documentário “A Fundição” (1964).

“Abril” (1962) - pequena parábola sobre a transição da aldeia para os prédios urbanos, através da alteração dos gestos, das relações humanas e das interferências musicais – já era um filme construído como um jogo sonoro complexo e subtil, excluindo toda a palavra. Em “Era Uma Vez Um Melro Cantor” (1971 ), a teia narrativa é encadeada e atravessadas de fluxos sonoros, ”vozes” diferentes, umas interiores ao plano, outras vindas de fora de campo – fontes musicais mais ou menos precisas, vozearias ou ruídos de máquinas - todas com a mesma importância. Aqui o personagem central é um músico, e torna-se explícita a importância da música e, particularmente, do canto polifónico improvisado como forma convivial quotidiana. Também "Pastoral" (1976), descrevendo o retiro de um quarteto que vai para uma aldeia estudar, toma a música - erudita ou popular, mas também natural ou mecânica – como núcleo de uma visão cinematográfica. São filmes sem palavras quase. O que conta são os gestos, as relações entre pessoas, a sensorialidade dos sons.

Desse jogo polifónico de sons e de personagens que se cruzam, geram-se espaços sonoros diversos que põem em contraste música e ruído, vozes e silêncios, passos, ritmos, movimentos. A conjugação destes estímulos sensoriais constrói uma visão do mundo em que natureza (humana) e a civilização (mecânica) se cotejam permanentemente (por exemplo: os músicos procuram a aldeia para estudar em sossego, mas não encontram silêncio: há o machado, o tractor, o avião, as discussões familiares, a chuva, etc.). Mas a visão de Iosseliani não é a da vulgar oposição campo/cidade ou tradição/modernidade. Pelo contrário, há uma compreensão da vida como processo transformação. A subtileza com que consegue guiar a nossa atenção e continuamente criar surpresas, aproxima-o de Jacques Tati, numa certa visão encantada dos pequenos absurdos da vida humana. Um olhar generoso acerca das pessoas e das suas idiossincrasias. Talvez uma visão crítica, mas não um pessimismo.

É certo que um outro veio percorre esta obra - o apego, a admiração por uma cultura tradicional em extinção - e que esta ligação profunda pode ser sentida como um pessimismo ou um saudosismo equivalente ao dos filmes polifónicos de Pierre-Marie Goulet. Mas a inflexão de Iosseliani é outra: é a vertente ritual das relações humanas e das rotinas sociais que se destaca, como um jogo codificado de acções, ritmos e variações. “A Caça às Borboletas” (1992) é disso exemplo, tal como o anterior filme “E fez-se luz” (1989) onde se recria uma aldeia africana ficcionada através de gestos universais. Também os dois documentários que fez (por encomenda) – “Euskadi” (1982), sobre as festas pascais no país basco francês, e “Um pequeno mosteiro na Toscânia” (1988) - mostram igualmente essa atenção aos ritmos, à gestualidade, aos movimentos. É como uma descrição detalhada dos códigos da vida, sem necessidade quase de palavras, uma etnografia feita de pequenos apontamentos que nos fazem olhar para cada micro-sociedade como para uma cultura quase estranha. Há muito humor nessa descoberta contínua. E a surpresa constante como filosofia.

Filmes vistos na Cinemateca.

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