24 setembro 2006

Comentário

Obrigado, Leonor, pelas palavras simpáticas. Temos trabalhado juntos nalguns projectos e isso criou alguns pontos de vista comuns, sobretudo ao nível da criação artística. Gosto do "Fora da Lei" como se fosse meu, podia, agora, tentar, pelo menos, corresponder à tua simpatia. Não é o caso. Não vai ser o caso.

Num post recente (Passado e futuro do documentário) falavas "numa inundação geral de obras informes, subjectivas e caóticas, que levarão os programadores de festivais ao colapso e os realizadores à depressão profunda", agora perguntas "Será que há demasiados filmes?". Bem, obras subjectivas e caóticas costumam estar entre as minhas obras de eleição, se os programadores não conseguem responder a essa "inundação" que deleguem responsabilidades, arranjem novos espaços.

Tenho uma desconfiança profunda em relação a vários aspectos organizativos do doclisboa, a começar pelo espaço de eleição. Havendo mais filmes, seriam necessários novos espaços (não me recordo doutro festival nacional confinado a um espaço único), bem, com outros espaços, a frase de apresentação do festival "e conseguiu trazer às salas da Culturgest um público muito numeroso e entusiasta" deixaria de fazer sentido.

Tratando-se do "único festival de cinema em Portugal exclusivamente dedicado ao cinema documental", haverá algum acordo de exclusividade entre Culturgest e o doclisboa, pergunto. É que nestas coisas de apoios, é dado público que os bancos só operam com exclusividades.

No que se refere a escolhas de programação, a selecção dos filmes também não me satisfaz. Vejo as referências, mas não vejo o desejo. As referências são os sete temas recorrentes (e cada vez mais previsíveis) na totalidade dos filmes seleccionados nos últimos dois anos: o passado/presente das memórias do fascismo, o confronto entre as leis vigentes e o uso do corpo e o papel dos media nesse confronto, caricaturas do povo português e particularidades do seu modo de vida, biografias ligadas ao cinema e/ou artes plásticas (no caso são seleccionados em função do currículo do biografado), a emigração, a felicidade humana (esse grande enigma que nos preocupa a todos), a música nacional e a guerra. Falta o desejo (de programar) porque o desejo não é assim tão sistematizável (se o fosse seria masturbação). Recordo-te que, desde 2001, quando o filme "Dentro" da Regina e do Saguenail foi agraciado com o prémio de melhor documentário português (lembras-te do quase inverosímil choque da crítica da época?) que não são seleccionados trabalhos que olhem, equacionem, como tu dizes, os "processos de legitimação do indivíduo perante o estado" (serviços, escolas, polícias ou militares, etc.).

Se o único festival dedicado ao documentário deveria reger-se unicamente por critérios de inclusão, não estou certo. São os festivais e a crítica que dão legitimidade às obras, essa legitimidade não é passível de ser inclusiva ou exclusiva, o que não pode acontecer é um festival abdicar das suas funções. Por acaso interessa a alguém um festival que não atribui legitimidades?

Sobre o concurso do icam não posso deixar, novamente, de discordar, quando referes que a "quantidade de ideias, de projectos escritos, de realizadores em expectativa, ultrapassa a sua possibilidade." A quantidade de ideias, de projectos escritos, de realizadores em expectativa, é o único sintoma que o documentário português está vivo e se recomenda. A programação de documentário nos canais públicos nunca foi tão elevada, não vejo é quem pergunte (a apordoc claro está) porque razão não existem nas televisões apoios directos à produção desses documentário, porque é que temos que aguentar as xaropadas massivas das cobras no deserto à hora do jantar, porque é que os documentários apoiados não passam.

Como vai o documentário português? Caricato mas o pessoal gosta assim, caladinhos ou ainda nos tomam de ponta, este ano não deu, no próximo será melhor. O filme "Como vai o documentário português?" já podia começar a ser feito.

Desculpa se contamino com o meu pessimismo o teu blog sempre tão cordial, espero que a discussão que aqui se inicia possa continuar aqui e noutros fóruns, e com outros protagonistas.

Porto, 24 de Setembro de 2006

Miguel Marques

miguel.marques70(at)gmail.com

1 comentário:

Leonor Areal disse...

POis, os filmes nunca são demais, se existem é porque nascem de uma necessidade; falo em "demasiados filmes" em relação à possibilidade de serem mostrados, de terem vida própria. A lógica da exclusividade que apontas ao doclisboa será a razão por que o funil é cada vez mais estreito. E quanto mais a produção crescer, mais os festivais, de facto, servem para atribuir legitimidades; e vender "o melhor da produção actual" como se o resto não existisse.