27 março 2006

A lei da terra



A Lei da Terra é um filme típico do pós-revolução. É um documentário totalmente engajado, tanto pelas posições políticas veiculadas como pelo seu (aparente) modo de produção: feito por um colectivo – a cooperativa de filmes Grupo Zero – cujos membros se assinam sem diferenciação de funções, a sua realização é no entanto atribuída a Alberto Seixas Santos, em cuja mostra retrospectiva pude vê-lo.

Concluído em 1977, incorpora o início da reforma agrária e o seu fim anunciado pela contra-ofensiva dos proprietários e a retomada das terras ocupadas pelas cooperativas. O desenlace da situação fica ainda por conhecer, terminando-se o filme no impasse desta luta frontal pelas mesmas terras.

Embora ideologicamente empenhado e claramente apoiando a luta dos trabalhadores, o documentário opta por uma abordagem de estilo objectivo: há uma narração em voz off que expõe os factos com (aparente) objectividade e contextualizando historicamente a luta dos trabalhadores alentejanos com recurso a fotografias e filmes mais antigos.

Pela voz de alguns entrevistados, declaram-se as condições de vida dos trabalhadores sujeitos ao emprego sazonal, ao trabalho jornaleiro incerto e árduo, às caminhadas longas, à fome e à miséria. Depois, testemunhando alguns casos, é explicado pelos próprios como as cooperativas se organizaram para trabalhar as terras abandonadas. A voz de narração reforça os exemplos, concluindo e generalizando. Neste salto do particular para o geral, o exemplo tomado como regra cumpre uma função de validação e assume uma posição partidária da luta.

A entrevista a dois rendeiros – pequenos agricultores que arrendavam e exploravam parcelas das grandes propriedades e que constituíam uma classe socio-profissional intermediária entre os latifundiários e os trabalhadores braçais – mostra a sua duplicidade insolúvel: na procura de uma posição fora do conflito entre uns e outros, o seu juízo prefere distinguir entre os que querem trabalhar e os que não querem fazer nada (sejam proprietários ou trabalhadores). Os proprietários, por seu lado, reclamam as terras em manifestações exaltadas, com a mesma linguagem e técnicas dos trabalhadores - como avisa a narração. Neste ponto do conflito, o filme acaba, prenunciando uma derrota que não será mostrada, porque talvez ainda não se acreditasse nela.

Hoje poderá fazer-nos confusão o engajamento cego deste documentário, não porque o género documental não continue a ser um território de convicções pessoais e muita subjectividade, mas mais porque tendemos a olhar para a realidade como uma matéria mais ambígua e com poucas certezas. Naquela época havia princípios políticos inquestionáveis, noções colectivas do politicamente correcto, dogmas mesmo - que hoje não conhecemos e cujos pressupostos não expressos aparecem como omissões, enquanto os corolários expressos soam a doutrinação. O recurso à narração-objectiva é quase como uma compensação para a impossível distância crítica.

E a sensação com que fiquei é a de nos faltam imensos dados para perceber aquele percurso. O filme não explica, não abrange, não documenta com coesão os factos. Não acompanhamos apenas uma ou duas cooperativas; pelo contrário, assistimos a um encadeamento de casos diferentes, aparentemente não relacionados, misturados com imagens de arquivo dos assaltos às sedes do Partido Comunista no norte, cujas repercussões chegam depois ao Alentejo sob a forma de retaliação dos proprietários. O filme, nesta mistura de registo do real com uma versão oficializada da história recente, mostra uma concatenação arbitrária. Os meios de persuasão são desadequados à expressão de uma verdade relativa. A 30 anos de distância, o filme levanta mais incógnitas do que esclarece um processo. Tudo o que, na época, por ser recente e óbvio, não é equacionado, hoje levanta dúvidas e lacunas em relação às tensões presentes.

O filme é um testemunho riquíssimo de acontecimentos, depoimentos, histórias e, principalmente, de uma crença revolucionária extinguida. Mas ficamos com a sensação incompleta de que, para bem o entendermos, teremos que o cotejar com outros filmes ou fontes da época.

* A Lei da Terra está editado em DVD na colecção do Público 25 Abril-30 anos (Vol.6)

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