31 outubro 2006

Tierra Negra e outras tendências do documentário



O filme “Tierra Negra” de Ricardo Iscar Alvarez (que ganhou o prémio internacional do doclisboa 2006) é um documentário temerário que nos faz descer às profundezas de uma mina de carvão quase primitiva (em Leão) e nos deixa viver o quotidiano dos mineiros como uma quase autêntica experiência de vida. Porque a vivência da equipa de filmagem naquele local é afinal a mesma que a dos mineiros.

A quantidade de actividades existentes na pequenez dos corredores e grutas intermináveis, a uma profundidade de 300 metros, são sentidos como uma perfeita aventura cuja escala avassaladora esmaga o pequeno homem que a defronta. Para além do trabalho árduo, os diálogos entre mineiros sentados num esconso ou fazendo ironias sobre a sua situação dão-nos uma visão do peso de viver uma vida debaixo de terra e dos riscos de vida confessados e sempre relembrados pela evocação dos colegas perecidos.

Mas a esta pequena filosofia da condição humana, sobreleva um humor trágico castelhano, semelhante ao que encontrámos noutros filmes da escola Pompeu Fabra (Barcelona) como “O céu gira” de Mercedes Alvarez ou “En construcción” de José Luis Guerín. Se este estado de espírito é uma constante cultural que percorre outros trilhos comuns, por exemplo, à literatura espanhola, ou se é uma técnica narrativa desta escola de documentário, é difícil decidir.

A estes três filmes é comum a escolha por observar a relação do indivíduo com o meio físico que o rodeia, seja o estaleiro de um prédio em construção, seja a desolação de uma aldeia aos poucos transladando os seus habitantes para o subsolo, seja a vivência dos homens-toupeiras posta em contraste com a relação telúrica vivida à superficie - nas cenas de passeio, por montes e grutas, do ex-mineiro com a criança, que descobre candidamente o mundo a partir da experiência do amigo mais velho. Desta relação nascem, com uma aparente espontaneidade, reflexões existenciais que nos tocam fortemente e acrescem à vivência sensorial um humanismo raro. Se é o dispositivo usado e preparado (os micros de lapela para nos fazer ouvir os diálogos das personagens a distância; ou alguma possível condução ou estímulo às conversas que nos seja omitida) ou se é o sentimento trágico espanhol, não o saberei dizer. São obras primas, isso é certo.

Curiosa foi ainda, nesta edição do doclisboa, a presença de vários filmes sobre minas: o clássico “Harlan County” (1976) de Barbara Kopple, “Surfarara” (1995) de Vittorio de Seta, “Sombras do Passado” de José Manuel Fernandes, e “Nosotros de Allá” que mostra a vivência do trabalho mineiro pelos olhos dos turistas em excursão que vão visitá-la como iriam a um parque temático, aqui em busca de emoções reais, e através da voz dos empreendedores guias turísticos que tiram proveito das misérias do operariado; esta bizarria do encontro entre a exploração turística e a exploração do trabalho humano pareceu-me (embora só tenha visto meio filme num guichet da videoteca do festival) abordada de modo ligeiro, em resultado de uma opção formal um tanto televisiva (feita de inserts rápidos, misturando entrevistas e depoimentos avulsos). Também “Kz” de Rex Bloomstein apresentava uma visita turística a um antigo campo de concentração na Áustria.

E outros filmes presentes no festival retratavam situações de clausura: “Mysterion” (1991) de Pirjo Honkasalo, filmado num convento na Estónia, “Into Great Silence” de Philip Gronig, num convento nos Alpes franceses, “El Comité” de Marcos Herrera, numa prisão no Equador, “Arcana” de Cristobal Vicente, numa prisão do Chile, “Ears, open. Eyeballs, Click” de Canaan Brumley, “uma imersão completa no universo da recruta”.

Noutra linha, mas conseguindo um efeito equivalente de sufocação, “Our Daily Bread” de Nikolaus Geyrhalter é um filme sem palavras, construído como uma sequência de planos fixos e de rigorosa simetria, virados para uma produção alimentar industrializada onde os raros humanos cumprem funções mecânicas. Com uma visão estética intensiva que martela a ideia da desumanização da vida moderna, torna-se um filme opressivo e um tanto maniqueista, redundante na afirmação do seu ponto de vista.

A industrialização desumanizada é tema ainda de “China Blue”, um filme com postulados politicos que nos mostra o quotidiano de umas adolescentes empregadas numa fábrica chinesa de calças de ganga, e a sua vida de sujeição sobrevivencial e precária diante do monstro capitalista que alimenta os mercados do primeiro mundo. É um filme-denúncia essencialmente comprometido com um humanismo universal.

Por um processo sistemático e analítico, “La Consultation” de Hélène de Crécy filma as sucessivas consultas de um médico de clínica geral: o casal apaixonado que quer fazer um aborto, o esquizofrénico que imagina sintomas e causas, a avó que não suporta o lar de idosos, a mãe que não soube amamentar o bebé, a mulher que deixou o prozac e quer experimentar o novo tranquizante da filha, a empregada de call center que se sente mal porque não suporta o stress laboral, o casal em crise cuja mulher tem ataques de ansiedade mas não quer ir ao psicólogo pois não está louca, a jovem fumadora cujas várias doenças são apenas os sintomas de uma bronquite, o homem que não consegue evitar beber, etc. etc. Encadeando apenas casos humanos, este documentário abre-nos ao universo da difícil relação dos doentes com o seu corpo, numa variedade de temores e representações, completadas com as questões de ética expressas pelo médico, onde reconhecemos a indestrinçável unidade entre corpo e psique que define a condição humana.

Também o filme “Logo, Existo” de Graça Castanheira se debruça sobre a vivência da doença, após um ataque de AVC, e sobre capacidade humana de regeneração das aprendizagens, dos afectos e das memórias. Com um dispositivo baseado em entrevistas e narração na primeira pessoa, a realizadora transforma o processo de investigação num ponto de vista essencialmente próximo e sensível do ser humano em cuja face se definem como indestrinçáveis as questões de identidade, emoção e biologia.

Um outro filme acerca da sobrevivência humana é “The Fisherman and the Dancing Girl” de Valeri Solomin, sobre a vida de uma família de pescadores isolada na natureza agreste, contada como uma história de amor reconstituída de fragmentos comoventes do real, ao longo dos meses.

A fechar o rol, “O Fim e o Princípio” de Eduardo Coutinho, uma arrojada declaração de documentarismo in extremis onde o realizador nos faz participar directamente na pesquisa do filme, filmando assumidamente a repérage dos seus personagens até encontrar uma povoação do nordeste brasileiro onde enceta improvisadamente uma série de entrevistas com os anciãos locais, cujas personalidades e concepções de vida rapidamente suplantam o expediente de reportagem usado para se tornarem emocionantes testemunhos existenciais.

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3 comentários:

Anónimo disse...

Esqueceste-te de um filme: "Fora da Lei" ;)

Anónimo disse...

Una pequeña corrección si "sao obras primas" significa opera prima o primera película. "Tierra negra" no es la opera prima de Ricardo Iscard, que cuenta con una interesante filmografía que comenzó en 1987 con la ficción Las palomas comen sandía. Tampoco es el caso de José Luis Guerin, que además de varios cortos en super 8 y otros formatos amateur ha dirigido: Los motivos de Berta (1985), Innisfree (1990) y Tren de sombras (1997). Saludos

Leonor Areal disse...

Talvez em espanhol seja esse o significado de 'prima', mas costumamos dar-lhe outro uso: o de obra-primeira no sentido em que é a melhor, embora a expressão se tenha alargado como equivalente a obra perfeita.