23 janeiro 2007

Duas causas (2)



Divididos entre duas causas está um séquito de pessoas confusas que diz Nim, ou seja, vota com uma opinião dividida ou nem sequer irá votar, por não saber resolver as suas contradições. É o caso de Marques Mendes, que, tal como o herói do filme de há cinquenta anos, é contra o aborto e é contra a prisão:

«É certo que se pode verificar um conflito de interesses entre o seu [do feto] direito à vida e o direito da mulher à sua autonomia, princípio que também merece o meu apoio. (Muito bem dito.) De facto, não se pode contestar o direito da mulher a só conceber um filho se e quando o desejar, usando da sua plena liberdade e utilizando os métodos anticoncepcionais que entender. Só que esta escolha tem de ser feita, responsavelmente, antes da concepção livre de um novo ser

Ora aí está uma escolha que é tanto responsabilidade das mulheres como dos homens. E continua: «Mas, fora das situações que a lei já consagra, o direito da mulher à sua liberdade de escolha termina quando começa o direito à vida de um novo ser humano.»

Finalmente, está aqui dito, com todas as letras: o direito da mulher à sua liberdade termina quando começa o direito à vida do embrião. É claro como a água. A liberdade da mulher acabou quando engravida. A vida da mulher conta menos que a do embrião. E mesmo que ela tenha outros planos para a vida (planos comuns, como estudar ou trabalhar), mesmo que saiba (por razões que só ela pode saber) que não tem condições para ter um filho desejado e bem tratado, esse embrião tem primazia e a sua vida incipiente é mais importante que a da mulher. Apetece perguntar onde é que o senhor Marques Mendes acha que acaba a liberdade do homem que lhe fez o embrião.

Outro argumento que usa é o de que segundo a constituição (artigo 24.º) “A vida humana é inviolável.” Mas a constituição não define o que é uma vida humana, nem estabelece o seu início, podendo mesmo presumir-se que seja o nascimento, já que não prevê o caso de duas vidas existirem no mesmo corpo. É possível a uma lei violar a vida humana de uma mulher para lhe impôr a carga obrigatória de criar uma outra vida? Achará ele que o valor das vidas humanas é absoluto e independente dos seus sentimentos, dos seus sofrimentos, da sua qualidade de vida? Se eu fosse do Não, defenderia então trabalhos forçados para os homens que se descuidaram.

Continua o presidente do PSD: «Coisa diferente é saber se, nestes casos, a pena de prisão é correcta. Não fujo, também, a esta questão e repito o que já antes afirmei: não sou favorável à pena de prisão para a mulher que decide abortar, seja antes ou depois das 10 semanas de gravidez

Ora aí estão as duas causas. Então se é contra a prisão, devia votar Sim à despenalização. Mas vota Não, porque acha mal que se aborte. As duas causas são incompatíveis, mas ele explica que é uma questão de a lei não facilitar:

«Consagrando-a, ela traduzirá um sinal de facilidade, não uma ideia de responsabilidade É como aqueles pais que ameaçam "se te portas mal, castigo-te" e depois não castigam nada, é só para ir avisando, para os miúdos saberem quem manda, percebendo estes perfeitamente que é tudo a fingir. Pelo sim, pelo não, ele diz que Não.

É realmente muito difícil deslindar os paradoxos do Não, mas há mais quem se esforce... E o adeptos das duas causas crescem: agora também o abominável homem das Neves e professor Martelo.

Apesar das contradições, é para eles muito fácil decidir. É uma questão meramente filosófica - o valor da vida em abstracto - que se resolve como uma equação absoluta: 1+1=2. A questão do sofrimento não existe. Não conta o sofrimento da mulher, não conta a sua angústia, nem conta que o tal embrião não sofra nadinha com a IVG nem tenha o sistema nervoso desenvolvido e sinta tanto como uma borbulha (que só dói a quem a possui). Nem conta que ele venha a ser um infeliz, um abandonado, um maltratado ou um mal-amado. É um pedaço de vida. E a vida é para sofrer. Ter filhos não custa nada às mulheres. Será precisamente para isso que elas existem.

Que interessa a Mulher? Se as mulheres teriam alma era uma dúvida medieval. Os teólogos descobriram mais tarde que sim. Depois achava-se que eram os negros que não tinham alma. Outros há que defendem que os cães ou as vacas como sofrem têm alma e não querem matá-los. Agora um embrião, não me venham dizer que tem alma. Nem que sofre. Mais sofre uma mosca.

P.S. Fala-se frequentemente em feto, mas devia falar-se apenas de embriões. Clinicamente o embrião passa a chamar-se feto depois da décima semana. Aliás não tem sido contestada a questão dos embriões excedentários congelados nos processos de fertilização in vitro e reprodução medicamente assistida, aqueles que ficam de reserva para o caso de os outros não pegarem e que, consoante a vontade do casal, hão-de ser desmanchados se não forem usados para experiências científicas. São tão embriões como todos os outros, mas como não estão na barriga das mulheres, como ainda não são parasitas, talvez não pareçam assim ter tanta vida, não é? Nem têm os mesmos "direitos".

Desenho de Alice Geirinhas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Os defensores do Não comerão frango ao almoço e bacalhau ao jantar e perú no Natal? Li não sei onde que o embrião, nos primeiros dias, é potencialmente o embrião de um qualquer animal, isto é, não se diferencia substancialmente do embrião de um cão, gato, etc. Ora, daqui podemos inferir o seguinte: 1) O defensores do Não têm, como referência última, a Bíblia; 2) Esta e, por conseguinte, a representação judaico-cristã do mundo defende a teoria da "superioridade do homem sobre os outros animais"; 3) Por conseguinte, é, segundo a Bíblia, perfeitamente legítimo matar um animal na medida em que Deus nos concedeu esse direito...Ora, o que quero dizer é que os defensores do Não só poderão ser coerentes com as suas crenças em relação ao aborto a partir do momento em que deixem automaticamente de comer às refeiçãos a carne dos animais. O que não compreendo é que eles respeitem tanto o embrião humano e desrespeitem tanto o embrião das vacas, apesar de, nos primeiros dias, serem iguais. Posto isto, só nos resta concluir que não é nem pelos argumentos de ordem médica que lá vamos (a comunidade científica está dividida), nem pelos argumentos de cariz religioso (os quais não resistem a uma análise racional, pois não é essa a sua função no imaginário). Que é que nos resta, pois, então? A ética, os valores, as crenças. E aqui é que bate o ponto. Admitindo que todos têm razão (nós e eles, em simultâneo e em contradição),poderemos dizer: vocês têm a liberdade de decidir matar, da mesma forma que matam uma galinha, um coelho, uma vaca ou um macaco (o qual tem apenas menos um gene que nós, ou seja, menos um gene de alma que nós). Matem e sejam mais responsáveis da próxima vez:)

Sérgio A. Correia