20 outubro 2006

Paradoxos da imagem

O colóquio sobre o fabrico das imagens, e particularmente a conferência de Monique Sicard acerca do vocabulário das imagens, fez-me pensar sobre o valor das palavras que usamos ao falarmos das imagens. A utilização coloquial dos termos “imagem”, “real”, “olhar” e “visão” – inevitavelmente multiforme - levanta o problema de diferenciarmos estes conceitos enquanto os usamos em diálogo, para conseguir atravessar as malhas paradoxais da linguagem. Das conversas que se geraram, retirei algumas propostas de definição, postas aqui à discussão:

1. Imagem será algo que se pode definir por oposição a coisa. A imagem é sempre uma representação - de qualquer outra coisa. Ou seja, não podemos abrir a janela, olhar a paisagem e dizer “que bela imagem”. O que não invalida que uma imagem (de outra coisa) se possa tornar ela mesma uma coisa (sem deixar de ser imagem originalmente).

2. Uma imagem será então, sempre, uma forma mediada, uma mediação entre um referente (a coisa) e a sua representação;

3. Poderíamos então definir diferentes tipos de imagem, ou níveis de imagem:
a. A imagem directa - a reprodução – com um referente real – captada através de um dispositivo (o caso mais comum);
b. A imagem criada – a fantasia, o sonho – representável de várias formas, literariamente, picturalmente, fotograficamente, etc. (Mas uma pintura, por exemplo, em si não é uma imagem, é um objecto, uma obra; poderá conter imagens de outras coisas, claro.)
c. A imagem interpretada, que não designa a imagem em si, mas a maneira como ela é vista por outrém, observada e semantizada – essa é a imagem mental, subjectiva e individual.

4. É neste ponto que entra o olhar (le regard) que facilmente podemos confundir com a visão. Que há diferença entre olhar e ver, todos reconhecemos. Uma diferença que se exprime de diversas maneiras: olhar seria ver melhor; ou ver seria comprender mais do que o simples olhar. O senso comum sabe diferenciar duas formas de ver, com maior ou menor atenção, com melhor ou pior percepção, com melhor ou pior entendimento. Pois olhar e ver significam também compreender. E ver pode ir até à visão visionária, muito para lá da imagem que foi aqui ponto de partida.

5. Uma coisa não podemos esquecer: que uma imagem é sempre uma mediação, e que, como qualquer mediação, por discreta que seja, objectiva, fiel ou inócua, pressupõe uma comunicação existente e uma intenção mínima. Por isso uma imagem é sempre semântica. Enquanto a realidade não tem que o ser.

6. E nessa imagem podemos ver o seu referente e ler a circunstância do seu emissor e sua intenção. Ambas estão contidas numa imagem. O que não impede que também uma imagem possa tornar-se assimbólica, o que acontece crescentemente num mundo dominado por imagens que por vezes se substituem à nossa experiência /ou conhecimento do real. Hoje, a imagem pode ser tomada como real (sem o ser). Ela ganha um valor social e um valor de recepção não simbólico, não comunicacional.

7. Ou, ao contrário, o real pode ser tomado como imagem, como, por exemplo, nas viagens turísticas - em que as pessoas vão visitar a natureza ou os monumentos em busca de imagens, numa forma de relação ao real através da imagem e para ela (a caricatura dos japoneses em todos nos tornámos desde que temos máquinas fotográficas digitais).

8. Começando a entrar nos inesgotáveis paradoxos da relação entre a imagem e o real, e do real com o representacional, é altura de remeter directamente para o livro A Fábrica do Olhar (Monique Sicard, ed. 70, 2006).

9. Sem querer apurar se a realidade é real, poderemos distinguir 3 diferentes instâncias do real (da imagem):
a. A imagem em si;
b. O “olhar” daquele que a produziu, fabricou ou imaginou;
c. O olhar daquele que a vê, lê ou interpreta;

10. Consoante falamos de a ou b ou c, falamos de coisas muito diferentes e de representações não partilhadas; por isso, quando falamos de imagens, é importante sabermos de “quem” falamos. Para que olhar não se confunda com imagem nem com imaginação.

11. Como disse Lídia Jorge no mesmo colóquio, “os escritores também criam imagens, não criam outra coisa senão imagens”. Estas imagens serão da mesma natureza das outras, as visuais, como se um ecrã interior habitasse o nosso pensamento. Na escrita, as imagens pertencem ao domínio da recordação e da imaginação – são a mesma coisa, porque nascem no mesmo lugar. Quando recordamos, não recordamos a mesma coisa, imaginamo-la de novo.

12. Por isso, para a escritora, a imaginação literária está em conflito com um mundo invadido por imagens feitas, que anulam a imaginação individual. A literatura impõe uma solidão, a liberdade, a individuação. A imagem visual impõe uma colectivização, quase um totalitarismo.

13. Mas não há só imagens fabricadas (conscientes), há sobretudo imagens involuntárias, cuja acção interior escapa ao nosso controlo. Nem todas são fantasmas, grande parte são estereótipos, clichés, marcas de água que moldam o nosso olhar e a percepção do mundo.

14. Afinal, existirá o poder das imagens (visuais) para provocar a imaginação? Terá o cinema capacidade de nos fazer imaginar a partir de imagens? E quando vemos, não nos limitamos a reconhecer apenas? Não olhamos só para o que nos interessa?

15. Se a literatura é rica em metáforas verbais que remetem para o visual – a “imagem literária” - , o cinema, por exemplo, é rico em metáforas visuais que remetem para conceitos, para símbolos, para o não-visto.

16. A imaginação será a capacidade que temos de associar uma imagem com outras imagens, alheias ou próprias. Dessa associação nascem (ou são fabricadas) novas imagens. Que por sua vez se reproduzem no ecrã interior de quem as vê (ou olha?).

17. O cinema será ilusão ou alusão? Se o processo de fazer é imaginativo, o processo de ver será desimaginativo? Ou imaginante?

18. Para quem fabrica imagens, é o olhar que domina; para quem as recebe é o ver que se exerce. Mas na vida, o olhar e o ver são primordiais, as imagens é que vêm depois.

19. Da extensão e qualidade das imagens, já não cabe aqui falar, senão que podem ser vestigiais ou gigantescas, complexas ou fragmentadas, simples ou abstractas, ou morais, sensoriais ou metafisicas. Etc.

Colóquio "Um dia a falar de imagens", em 17/10/2006, organizado por José Carlos Abrantes e Departamento de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com o apoio do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens (CECL).

5 comentários:

José Carlos Abrantes disse...
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José Carlos Abrantes disse...

Muito interessante que a Leonor estenda a discussão iniciada na Nova ao seu blogue. Apenas um comentário rápido: a imagem não pode ser sempre definida como representação de uma coisa. Em meu entender a arte abstracta iniciou um movimento, que nunca mais parou, de entender a imagem não como representação de uma coisa, mas sim como expressão do artista não necessariamente ligada à representação das "coisas". Há imagens que são impossíveis de compreender se as quisermos entender como representação de algo.

Leonor Areal disse...

Comento ainda: para mim, uma obra plástica abstracta não é uma imagem, é uma coisa, uma obra mesmo. A sua reprodução fotográfica, digital, essa é que ,sim, é uma imagem da coisa anterior. Mas como vivemos num mundo de reproduções (que chegam a ser iguais às coisas que reproduzem), acabamos por chamar imagem a tudo o que é visível. Mas não acho que uma paisagem seja imagem, apesar de haver quem assim a possa referir, talvez porque vê nela uma imagem que o seu ecrã interior reconhece, uma imagem interior - mas não exterior.

José Carlos Abrantes disse...

Claro que cada um de nós pode delimitar o campo do que considera imagem e tal delimitação pode ser ponto de partida para um trabalho pessoal. No entanto, se quisermos ter em conta a percepção social do que é uma imagem já não o poderemos fazer. Há imagens naturais (as da percepção, do sonho). No caso do livro da Monique as imagens são apenas as que são fabricadas através de uma mediação técnica. Por outro lado, deixar de fora a pintura (abstracta ou outra) do campo das imagens vai também contra essa percepção social do que é uma imagem. Alias há outro tipo de imagens sem referente: as imagens produzidas electronicamente, as imagens digitais. Um monstro marinho inentado num computador é uma imagem mas não tem um referente concreto. Nem é preciso ir tão longe: a imagem dos deuses, o adamastor, ou o ciclope, ou a sereia são imagens que não têm referente.

Leonor Areal disse...

Aceito o argumento. É claro que delimitar um conceito tem apenas um valor de conveniência num determinado diálogo. Podemos entender "imagem" num sentido mais estrito ou mais lato. A minha definição não deixa de ser uma provocação: as imagens digitais (como aquela que inseri acima) são realmente coisas mas mediadas por este dispositivo (o ecrã) que as torna imagens/espelhos de uma coisa existente noutro sítio virtual. Um dragão não tem referente real, mas tem-no imaginário ou imaginado. E tem equivalência (ou origem) em imagens literárias. Por outro lado, se uma escultura (abstracta) não é uma imagem, porque havemos de considerar que uma pintura (abstracta) será uma imagem? São obras da mesma natureza. Um desenho abstracto não é uma equivalência, ou um reflexo, ou uma reprodução de nada de outro, senão de si mesmo...