Quando o cinema transita da sala de espectáculos para uma sala de museu, já não lhe chamamos cinema, mas outra coisa: video-instalação, multimedia, expanded cinema... Mas se o ecrã de vídeo cresce à dimensão de uma parede de sala e nos encosta à parede em frente, como se estivéssemos nós mesmos no interior de um contentor-televisão, isso já é cinema. No entanto, a ausência de cadeiras, ou o seu número escasso, indica uma relação subjectiva diferente. Esta forma de cinema não convida à contemplação, mas ao trânsito.
Em Serralves, vi as exposições-video de Pedro Costa, cineasta, também documentarista, formado na escola de cinema, discípulo do cinema como montagem, que, pela primeira vez aqui, abdica dela e se estende ao comprido no tempo: as 8 horas que dura um dos filmes expostos. Um quarto onde estão Ventura e Vanda, sentados na cama, com a televisão ao canto, conversando. É um plano geral do quarto, fixo sobre tripé, e pode considerar-se um registo documental em bruto (que aparentemente pertence a um filme anterior, O Quarto de Vanda). O espectador é convidado assistir à cena, enquanto lhe interessar. O som é pouco perceptível, a conversa mole, a acção estática e não esperei mais de 15 minutos para saber o que adiante viria. À porta o visitante recolhe um folheto agrafado com a transcrição extensa do diálogo. O processo fílmico inverteu-se: o registo documental foi transformado em argumento. A obra resultante é texto. (Acho isto notável.)
Noutra sala, isolada e escura, dois homens conversam junto a uma janela. Parece interessante, mas como não há cadeiras onde sentar, não deu para entrar no filme. Pois é assim que funciona este dispositivo: uma pessoa entra, casualmente, no filme, e sai, aceitando que não verá tudo, pois admite que dura muito (apesar de este só durar 10’). Aqui ver é viver. A tela de projecção é uma janela sobre outro mundo: aquele. O cineasta não tem um discurso, nem uma história. Tem um acontecimento, cuja história se conta a si; e afirma um só propósito: mostrar aquele espaço, aquelas pessoas, o tempo delas. Não pretende cativar o visitante, nem torná-lo em espectador. O visitante leva e traz consigo sensações, imagens, associações, uma certa vivência que é só sua, e não controlada pelo autor do filme.
Noutra sala, um longo corredor com uma luz ténue ao fundo, aproximamo-nos devagar e a medo, enquanto nos habituamos à escuridão, de um ecrã onde o mesmo Ventura em grande plano fala. Esta forma de instalação torna fortíssima a sua estranha aparição, quase de fantasma. Percebem-se as palavras, mas o discurso escapa-nos na sua vaguidão. Só depois, lendo o folheto, percebemos que o texto não é a voz do próprio, mas a leitura de uma carta de escritor em Auschwitz, o que, de repente, parece de uma violência abusiva. O efeito de real e de despojamento conseguido nas outras salas, aqui transforma-se num artifício teatral, desmesurado e confusamente político.
A experiência de ir a um museu moderno asséptico como um hospital para assistir à melancolia sem fim de duas pessoas num quarto, ou seus dramas, ou seus sussurros - é brutal. A coragem de apresentar um bruto de 8 horas, de que ninguém vai ver a mesma parcela que outro espectador, parece um gesto talvez vão, ou no mínimo, a negação total da ideia de cinema. É uma estética negra, um caminho difícil. O que leva um cineasta maduro ao grau zero da expressão (como Kiarostami)?
Na verdade, estas peças de vídeo resultam de uma encomenda e foram pensadas para dialogarem com as esculturas (horrorosas) de Rui Chafes, o que acontece de forma muito ténue, pela proximidade apenas. Em comum, resta talvez a atitude: uma afirmação de violência quotidiana, uma aceitação niilista do limbo, a poder das formas contra o espaço sacralizado do museu onde estas instalações só por sarcasmo se lêem.
Este o resultado duvidoso de um casamento arranjado entre um escultor e um cineasta, estratégia mais de marketing que artística, pois pega em dois “consagrados” e vamos lá a ver o que dá. Uma experiência de cruzamento genético semelhante já tinha sido feita com o escultor e a bailarina Vera Mantero (para a 26ª Bienal de S. Paulo em 2004). Os comissários de hoje assumem-se como criadores de programas artísticos. E os criadores aceitam ser programados.
Como os próprios dizem: «Rui Chafes - [...] O meu ponto de partida é tentar chegar a algum ponto, não sabemos qual, partindo do princípio da impossibilidade, da incompatibilidade. Com essa consciência, a gente há-de chegar a algum ponto, não no sentido da ilusão que seja possível, mas sim da certeza que é impossível. [...] A ideia foi uma proposta concreta do João Fernandes [ director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves], que depois ficou cheio de medo do resultado.» (in Público - Mil Folhas de 22/10/2005. Retirado de http://ocritica.blogspot.com/2005/11/opresso.html)
1 comentário:
O quarto onde estão Ventura e Vanda, sentados na cama, pertence afinal a um filme posterior, Juventude em Marcha (http://doc-log.blogspot.com/2006/12/hbrido-2-desventura.html).
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