09 dezembro 2006
Híbrido (2) – Desventura
Juventude em Marcha, de Pedro Costa, filma uma comunidade-família transferida do seu bairro clandestino para os novos apartamentos sociais. Centrado nas figuras de Ventura e de Vanda, e com um argumento baseado nas histórias de vida dos seus protagonistas - que se representam nos seus próprios papeis - poderíamos classificá-lo de documentário se não fosse o grau de elaboração plástica e teatral que o filme assume. Há uma depuração formal máxima. Cada cena é formada por apenas um, ou dois ou três planos - aquilo que poderemos chamar de sequência-plano. A imobilidade do plano acentua o recorte do movimento, o tempo do gesto, a voz que rompe o silêncio – e atinge uma intensidade dramática única. A fotografia, com um exigente trabalho da luz, consegue criar cenários feitos de contrastes fortes e manchas difusas. A composição é perfeita.
Através de uma encenação rigorosa e quase ascética, que entala as personagens sempre entre-paredes, Costa recria uma clausura existencial. O peso das palavras ensaiadas e reditas em tensão, como um esforço de memória pessoal e representação do vivido, encena uma espécie de luto, como diz Vanda: “parece que estou de luto por mim” - única personagem, aliás, cujo discurso espontâneo e não controlado contrabalança a tensão construída e tem a força da vida dita, em vez de escrita. A fusão dos dois registos recria um universo fechado, a que Ventura dá unidade, pela sua personalidade própria e nesse périplo de visita a cada um dos seus “filhos”. As cenas de recuo ao passado (da barraca reconstituída e do acidente de Ventura) têm a mesma espessura que as actuais e um efeito de sobreposição e anulação do tempo.
Neste filme entre paredes onde falta o ar, cada cena é como uma respiração forçada, como as bombadas para a asma de Vanda. As personagens esperam, não fazem senão esperar, sem saber o quê. Diz Vanda: “também eu queria ter muitas coisas que não tenho” e enumera-as. O quotidiano é feito de visitas aos filhos da desventura, do vazio do bairro deixado para trás, do vazio das paredes brancas em frente, da ténue esperança de Vanda de poder criar a sua filha pequena, nascida a ressacar como a mãe drogada. É o grau zero da existência pintado como idealização – que a (célebre) carta tão repetida evoca (a mesma carta que já aparecia em Casa da Lava (1995) e na instalação de Serralves). Pedro Costa busca a perfeição num filme sobre vidas arruinadas. Transforma um quotidiano insolúvel numa obra épica - fundadora de identidade.
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