Há 10 anos ou 15 anos, não havia problema nenhum em filmar em espaços públicos ou outros. Nessa época longínqua, quem era possuidor de uma câmara, objecto pouco conhecido na sua volumetria, só podia ser considerado uma pessoa de bem, alguém em que se confiava. E já depois do aparecimento da televisões privadas - quando perguntavam “É para a SIC?” - essa câmara podia representar uma testemunha justiceira e era aceite com regozijo (e até com alguma vaidade no retrato). Ninguém temia que a sua imagem fosse abusada. E quem filmava tão-pouco se preocupava em declarar a sua benevolência ou outras garantias. Filmei imensos transeuntes em grande plano, crianças de escola, professores, dirigentes, encarregados, trabalhadores e até polícias - sem nunca pensar em pedir autorizações.
As coisas já não são assim. Hoje, com a proliferação de mini-câmaras na mão de qualquer um - e com a consciência acrescida do seu poder deformador (graças ao choque ético do Bigbrother) – também a atitude das pessoas filmadas se encheu de suspeições. Com a certeza, mais recente, de que tudo o que é filmado em digital pode ir parar à internet (e agora ao youtube), o risco está sempre em evidência – e já nem as escolas podem fotografar inocentemente os seus alunos.
Por outro lado, as câmaras ocultas e a vigilância – que se tornaram omnipresentes em meia dúzia de anos, tomando conta do espaço público - obrigam-nos a redefinir a nossa noção de identidade: pois já não somos donos da nossa imagem. Talvez por isso se torne mais importante defendermo-la noutras situações – naquelas onde temos um adversário atrás de uma câmara visível - para preservar a nossa integridade. É um pouco como a lei da selva: perante a ameaça oculta qualquer encontro deve ser defensivo.
Para muitos de nós, a identidade está definida inequivocamente pela fotografia, mas para outros só está em causa quando a essa imagem se associa a um nome, ou quando coincidam nome-imagem-email. Por isso proliferam os nicknames, os avatares, as identidades virtuais - que são adaptações variadas a essa insegurança, mecanismos de protecção contra a possibilidade da identidade irredutível, reacções a uma sensação de controle social que paira como ameaça e de que antecipadamente nos defendemos. Tudo isto, diga-se simplesmente, é fruto de (nada mais que) medo. No entanto, se olharmos para os blogues narcísicos dos adolescentes actuais, também constatamos que eles não passaram nem passarão por tais dúvidas identitárias. Serão demasiado confiados ou inconscientes? Será que já não conhecem o que é privacidade?
Por tudo isto, tornam-se hoje candentes as questões de ética em documentário, assunto que antes pouco nos incomodava. O uso de câmaras ocultas, por exemplo, era quase exclusivo do jornalismo de investigação e denúncia. Isso era há dez anos, quando, na Apordoc, passávamos horas a discutir as fronteiras estilísticas do documentário, fazendo questão de separá-lo da reportagem e do documentário televisivo. Hoje, esta discussão faz menos sentido, porque já foi feita e já foi integrada (nos regulamentos de concursos, por exemplo), e porque as fronteiras do documentário são muito mais abertas e fluidas, como aliás em todas as áreas artísticas.
O uso da câmara oculta obedece, apesar de tudo, a uma certa deontologia: as imagens captadas obliteram geralmente a identidade facial (e por vezes vocal) dos intervenientes – evitando posteriores acções judiciais. Há casos em que isso não acontece. Por exemplo, no documentário Lisboetas, Sérgio Trefaut utiliza uma câmara oculta e um homem-isco para demonstrar o funcionamento do mercado de trabalho ilegal. O angariador aparece ao longe e por isso não será inequivocamente identificável. Se o fosse, poderia esta cena constituir uma prova legal? Será que o realizador abusou dos seus limites éticos, ao gravar imagem e som sem o conhecimento do visado? Ou não será antes um imperativo de consciência que o obriga a denunciar, não especialmente aquela pessoa, mas um circuito instalado de abuso dos direitos humanos dos imigrantes?
Diante da omnipotência das câmaras que nos vigiam, diante das quais estamos condicionados a portarmo-nos correctamente, diante das quais abdicamos do valor da nossa imagem e diante das quais nos submetemos às regras estritas da empresa privada ou estatal que não nos deixa fotografar no seu espaço – como reagir? Há ou não um imperativo ético de reagir contra o fascismo silencioso – que é aquele que domina pelo medo? Há ou não a legitimidade de denunciar usando métodos similares? Foi este o embrião de discussão que, a semana passada na Apordoc, suscitou a proposta de um debate ético futuro.
Sem comentários:
Enviar um comentário