Quando em 1991 comecei a fazer documentários descobri a facilidade com que todas as pessoas (as crianças mais, os adultos também) se esqueciam de estarem a ser filmadas e agiam com total naturalidade, facto que frequentemente o público de documentário indaga junto dos realizadores: como conseguiu filmar sem que as pessoas parecessem importar-se? A verdade é que, como há muitos anos explicou Frederic Wiseman na Cinemateca, após os momentos iniciais, é a naturalidade que domina, porque ainda que as pessoas se sintam pouco à vontade, o papel que melhor sabem representar é o seu próprio. E daí vem a verdade que passa para o filme. Nessa época, as pessoas ainda posavam para câmara como para uma fotografia e no fim perguntavam "já está?"
Em 1993 ou 94, apareceram as televisões privadas e uma nova forma de televisão do real que se desloca a toda a parte veio reavivar o conceito de "país real". Cada vez que filmava na rua (com a minha câmara amadora), as pessoas vinham perguntar se era para SIC. Se fossem crianças, faziam fitas e brincavam, mas uma vez que não era para SIC, nem ia aparecer na TV, logo se desinteressavam. Já era mais difícil uma câmara passar despercebida.
Em 1999 apareceu o concurso Big Brother - que é duvidoso que o país real tenha percebido que se referia ao Grande Irmão do livro de Orwell - e as pessoas começaram a tomar consciência de que o real pode ser manipulado a desfavor dos seus actores. O crescimento imparável de câmaras de vigilância, não apenas das que são visíveis e assinaladas nos bancos, mas também das que estão escondidas atrás da prateleira dos cornflakes em pequenas mercearias de bairro, introduziu a noção desconfortável de que a imagem de cada um é passível de ser apropriada.
Depois veio o 11/9 e a paranóia da da suspeita e da vigilância. Lá para 2003(?) chegaram os fantásticos telemóveis fotográficos que tornam fácil e discreto qualquer um fotografar qualquer outro. E a guerra no Iraque. Foi nesse período que fui filmar algumas actividades de expressão artística numa escolinha primária de ambiente familiar. As crianças, sugestionadas pelas notícias da actualidade, quiseram fazer uma história (e um filme de animação) sobre a guerra no Iraque que então decorria nos ecrãs. Portaram-se muito bem nas aulas, mas decidiram acabar com a América. O filme só foi montado um ano depois e avisei então os meninos e as famílias de que estava concluído. Não houve objecções, até que apareceu na televisão um anúncio do DocLisboa que mostrava breves momentos do meu filme. Uma mãe indignada telefonou-me a pedir satisfações sobre os 2 segundos em que aparecia a filha dela: "A minha filha anda na rua sozinha, não posso permitir, e o assunto que é!" Assim foi retirado o anúncio.
Hoje, acho cada vez mais difícil filmar as pessoas. Todas se retraiem um pouco e desconfiam. Estabelecer que existe uma ética do documentarista que difere absolutamente da falta de ética do televisista ou do vizinho em frente é muito difícil. As pessoas perderam a inocência. Inúmeras vezes dizem que não querem ser filmadas e eu deixei de me sentir confortável na pele de documentarista. Chega a apetecer às vezes filmar nas costas das pessoas um filme sobre as costas das pessoas, como no caso da fotografia abaixo daquele arrumador tão demasiado consciente do seu papel.
Como dizia a advertência inicial ao filme sobre Lopes-Graça (abaixo referido), "há no Brasil 3 três raças de índios" (sic): uns que fogem das câmaras com medo de lhes ser roubada a alma; outros que desejam muito ser fotografados e posam insistentemente; outros que fazem de conta que não está ali câmara nenhuma e se comportam como na vida normal.
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2 comentários:
Bem-vinda aos blogs, leo! Pessoas sensigentes precisam-se.
PS: Sou totalmente contra a video-vigilância em zonas públicas, mesmo perigosas, e só isso basta-me para não votar Carrilho.
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