10 setembro 2005

Os primeiros filmes



"Sophia de Mello Breyner Andresen" e "27 minutos com Fernando Lopes-Graça". Dois filmes irmãos, dois documentários de 1969, dois retratos, um feito por João César Monteiro, outro por António Pedro Vasconcelos, passaram na Cinemateca esta semana. Dois primeiros filmes, dos então estudantes de cinema, que pertencem a uma série de cinco curtas-metragens sobre "vultos" da cultura portuguesa (um escritor, Fernando Namora, um pintor, Júlio Resende, um escultor, António Duarte, um poeta e um compositor). Os vultos aceitam dar a cara e não é sem dificuldade que o fazem. Esse processo de desvelamento parece, em ambos os casos, o nó central do filme.

Sophia é filmada na praia com os filhos, visivelmente embaraçada com a presença da câmara. Depois, em casa, lê ao filho mais novo a sua história A Menina do Mar, cuja leitura no final a criança critica por ser "pouco natural", desconcertando a mãe. Em seguida ensaia um discurso sentado para a câmara, que é interrompido pelo ruído das adolescentes que, a pedido clandestino do realizador, puseram o gira-discos a tocar. Sophia só não desespera porque sabe que está a ser filmada. Mas estala o verniz e é interrompido o seu discurso que começara por algo como “sempre disse que não acredito em biografias senão na nudez..." (cito mal de memória).

Com Fernando Lopes-Graça, mostrado no seu ambiente doméstico e campestre, copiando pautas, o mesmo embaraço. Momentos da vida - as crianças vizinhas que o visitam, tímidas como parece que eram as crianças nos anos 60, para quem ele põe a tocar o disco da mesma Menina do Mar, história por si musicada e lida por Eunice Muñoz - são intercalados com momentos de uma entrevista que não o parece, pois o compositor redigiu um texto para responder às perguntas previamente preparadas. E diz (reproduzo de memória apenas as ideias e mal): “Pediram-me que falasse da minha obra, mas não sei se poderei falar de Obra num sentido uno e coerente, mas antes de obras que ao longo de 40 anos fui fazendo suceder. Só se deve falar em obra a respeito de casos ímpares, de génios...”

O excesso de modéstia destes agora génios da cultura, que tem tanto de retórica politicamente correcta como de modéstia real, contrasta com o culto do ego dos tempos actuais. O seu embaraço perante a câmara, mas sobretudo perante a fixação em imagem de um retrato pessoal para a posteridade, assinala um estádio ingénuo de consciência de uma tensão própria ao registo documental (que nessa altura já passaria pela descoberta ainda recente da televisão na vida diária). É notável que ambos os realizadores tenham optado por conservar essa tensão expressa no interior dos filmes, atitude de questionamento de linguagens própria de um cinema novo.

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